quinta-feira, 28 de maio de 2009


"Amar é dá o que não se tem".
J.Lacan

domingo, 17 de maio de 2009

FRACASSO ESCOLAR: UM GOZO DE NÃO QUERER SABER

Sandra Conrado
Psicanalista,Membro da Escola Brasileira de Psicanálise.

Do ponto de vista da psicanálise, o fracasso escolar, entre as bulimias, anorexias e depressões, está inserido no que chamamos “novos sintomas”. Embora, diferentemente desses sintomas, o fracasso escolar existem há tempos, sua novidade é que hoje ele surge também como uma resposta a esse modelo atual de denunciar o declínio dos ideais na cultura. Para que se estuda hoje? Não é raro se ouvir dos pais: “para concorrer, para ser o melhor, para ter melhor lugar no mercado, etc”.
Se o fracasso escolar está inscrito na ordem de um sintoma é porque ele se coloca, por outro lado, na via de um gozo que incomoda e, por isso, também apela ao analista como aquele que pode produzir uma resposta para seu mal-estar.
É em busca dessa resposta que produzi esse trabalho
Um dia, numa sala de aula de professores de criança, fiz a afirmação de que o fracasso escolar, do ponto de vista psicanalítico, era visto como um gozo de não querer saber. Depois de uma discussão acirrada, cuja polêmica se deu por causa do termo gozo, um professor, muito entusiasmado diz: “acho que não se trata de um gozo, mas de uma tortura. Discordo de você!”. Ora, dizendo a esse professor que estávamos discutindo a mesma coisa, trouxe apenas que, entre os termos gozo e tortura faltava apenas a noção de inconsciente. O gozo é inconsciente, embora, a tortura sobre como mal-estar para a criança, pais, professores, escola e os que encontram-se ao seu redor.
Para falar sobre essa questão vou me subsidiar do campo freudiano e de seu conhecimento do sintoma, do gozo, do saber e da transferência, os quais, sendo lido por Lacan, nos trazem uma imensa contribuição.
Na situação clínica ele aparece muito claramente e não sei se é tão diferente do que temos nas escolas, onde a criança parece ficar um tanto quanto alheia ao referencial do Outro, que na última etapa de seu ensino, Lacan nos mostrou como inexistente.
Ao justificar o conceito de inconsciente na metapsicologia, Freud nos diz que na vida mental do indivíduo há sempre um outro alguém envolvido, Outro que lhe confere o estatuto de uma inferência. Ele diz:
“todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo e que não sei ligar ao resto de minha vida mental, devem ser como se pertencessem a outrem” [1]
Lacan, ao longo do seu ensino, nos fala do Outro de três maneiras: primeiro como absoluto - o Outro concreto. Depois como Outro do desejo – inconsistente; e, na última fase de seu ensino, o Outro inexistente e, por isso, impossível de dar a resposta ao sujeito.
Trago esse três momentos do Outro em Lacan na tentativa de especular a condição da escola. Em que acredita a educação? Entre outros aspectos que os professores ensinem os conteúdos. No ideal da educação o professor precisar ser bem concreto, um Outro absoluto que dê conta de um saber.
Na minha experiência com professores de ensino fundamental, por ocasião da disciplina Psicologia da Aprendizagem num curso de Pedagogia, ouvi várias vezes essa pergunta: “como faço para os meus alunos gostarem de estudar?”. Uma pergunta que não deixa de carregar uma cota de angústia, pois, como poder, do lado do professor que não tem a consistência do saber, resgatar o desejo da ignorância, se a educação não admite em seu meio, sujeitos barrados?
Pelos ensinamentos de Freud e Lacan pude, nessa experiência, tirar muito proveito dela, situando-me dentro da dificuldade do que é o modelo pedagógico, mas, sobretudo do que é a angústia de um professor diante do fracasso escolar, que na visão de muitos deles, é do aluno.
É nesse sentido, de como fazer, que apontamos a inexistência do Outro. Nossa sociedade tem sofrido por isso e a escola como instrumento dela não está isenta desse processo. Há hoje em dia uma descrença. “Se o Outro não existe, em quem vamos acreditar?”
Na verdade o Outro nunca existiu, o que fizemos foi dar uma entidade a ele através de um supereu que almejava ideais em torno de um nome, o Nome-do-Pai como nos ensinou Lacan. Só que hoje, esses ideais mudaram de configuração.
Retomando a questão do professor e a sua angústia diante do fracasso escolar, diria: não é por causa da inconsistência do Outro que o professor não tenha uma resposta. A falta de resposta cria um complicador sério, dando muitas vezes margem ao espontaneismo. A escola é uma estrada, ela tem um fim, um lugar a se chegar e todo processo deve seguir uma direção. O professor pode dar uma resposta, o que é muito diferente de dar o “saber como fazer” ou o “saber como verdade”.
O filme “Sociedade dos Poetas Mortos” nos mostra um exemplo disso. Um professor que exerce certa função para os alunos, no sentido de provocar não só a transferência ao saber particular e o valor do subjetivo, mas que não sustentou as conseqüências dos seus atos. Ele foi expulso da escola, os alunos punidos e, entre tudo isso, uma passagem ao ato: o suicídio.
Na análise, por exemplo, não é porque um sujeito possa se servir da associação livre que seu tratamento deixe de ter uma direção. Se estamos nesse ponto de que o Outro não existe, a psicanálise se posiciona diferente desses encaminhamentos onde se visa modelos espontaneistas. A posição ética da psicanálise é a de que sejamos responsáveis pelo que fazemos. Se frente ao Outro que não existe não temos resposta, insisto: isso é um complicador, na medida em que cada um vá poder se autorizar de si mesmo ao que bem entende. O que a psicanálise diferencia nisso, e ai vai a minha questão, é que a resposta não tenha que ser dita nem com o saber ponto, nem com o espontaneismo, mas, como diz Lacan, com uma suposição.
Se esse “Outro que não existe” não puder ser questionado como lugar de saber suposto, corre-se o risco de um cinismo e isso traz um imenso perigo para qualquer processo. Um sujeito, principalmente uma criança, na posição de construção de saber, não suporta ficar à toa, à deriva. O lugar do professor é fundamental. A questão, nos diz Lacan:
“consiste em saber em que lugar é preciso está para fazer o sujeito sustentar esse saber•””. [2]
Penso que ao longo dos tempos a Pedagogia sempre trabalhou no sentido de encontrar uma saída com a intenção de oferecer formas de um melhor ensino e uma melhor aprendizagem. Ampliam-se conceitos, mudam-se outros. O alvo das tentativas de mudança tem sido geralmente o professor. Nos fins dos anos 60 tiram ele e o seu bureau de cima das plataformas, depois trocam seu nome para o de educador, na tentativa de tirar-lhe a pompa do saber todo. A medicina é chamada para criar as patologias escolares, assim ficaria mais fácil para a escola, pois o problema da insuficiência fica sob a responsabilidade da criança. As Universidades continuam fazendo pesquisas, mais formação, mais informação, mais estudo. Vira e mexe e a dificuldade continua. Hoje, o problema do fracasso escolar bate a porta dos consultórios dos psicanalistas. E há quem diga que bom seria se voltar ao modelo clássico. Outros criticam Vygostky por ter defendido a intervenção pedagógica.
Freud nos diz que há três missões impossíveis: governar, analisar e educar, impossível por que ele tinha a clareza do real do educar. Então, nessa perspectiva, o que a psicanálise pode oferecer como contribuição à Educação, sobretudo quando ela aparece como um fracasso para sustentar o desejo de saber, é um novo posicionamento diante do real do gozo de não querer saber, mas de não querer saber da ignorância.
A questão, dentro do meu ponto de vista, é a desconsideração que a educação tem com relação à ignorância. Para a ignorância a escola faz vista grossa, quando na verdade ela é um elemento real. Cito Lacan
“A ignorância, acabo de dizer, é uma paixão, não é para mim como uma menos valia, tampouco um déficit. É outra coisa, a ignorância está ligada ao saber”[3]
Podemos perguntar até que ponto um professor pode suportar essa condição de ignorância se o Outro da educação vocifera “saiba!” O gozo é isso, é o logotipo de um sujeito alienado, que sem desejo de saber, ignora a ignorância como arma contra o impossível do educar.
Talvez, antes de questionar porque o aluno não aprende, a saída do professor seja a de produzir um saber sobre o seu ato de educar. Ninguém tem a resposta de como fazer, o Outro não existe e é inútil pensar que os programas de qualificação bastam para inserir o professor no cerne da dificuldade da aprendizagem.
Outro aspecto que podemos destacar, como operador da aprendizagem, diz da possibilidade de uma virada nessa transferência que se estabelece entre professsor-aluno, pois ao invés dessa relação imaginária de um que ensina e outro que aprende, a transferência pode ser estabelecida como um ato de criação, onde a palavra não tenha um único sentido, que ela possa ir além, sustentar muitas funções e envolver muitos sentidos.
Na escola, em função da transferência, o professor pode dispor de um manejo onde o aluno possa sair de uma ação não pensada, para outra onde ele possa expressar melhor o seu pensamento. Como diz Vygotsky:
“tornar-se consciente de uma operação mental significa transformá-la do plano da ação para o pano da linguagem, isto é, recriá-la na imaginação de modo que possa ser expressa em palavras” [4]
A ação impulsiva de uma criança na escola não é sem intenções. O que ela deseja nessa intenção é saber de uma forma melhor o que está fazendo, só que num espaço mais elaborado (Mrech, 1980). Fracassar na escola pode ser uma forma de manifestar a falta de compreensão da ação dos outros sobre ela e nisso produzir um sofrimento, uma dificuldade, um sintoma especificamente escolar.
O fracasso não é da criança, nem do professor, ou do diretor em si, mas da estrutura escolar. A sua causa é da ordem de uma conjuntura onde todos nós estamos inseridos – a escola na civilização atual – naquilo que se tem de mais real: o gozo de não querer saber do desejo, o gozo de não querer saber da ignorância, da douta ignorância, lembrando aqui, mais uma vez, Lacan. Será que o fracasso não é uma denúncia de que diante da inexistência do Outro, há que haver uma nova invenção para barrar o gozo imaginário do mestre, que sem desejo, comanda o devoramento ao saber tudo para ser feliz e realizado? A ansiedade, a angústia, a preocupação de aprender, sintoma do estudante, cedeu lugar às depressões e ao inominável - o aprender parece sem sentido e sem lugar. O efeito disso é um gozo superegóico, devorador, que na falta de um referencial, produz atualmente um alheiamento, quero dizer, produz a falta de algo com valor significante que não esteja pronto, que não seja dado, para que simbolizações ou como nos diz Freud, para que sublimações sejam feitas.
Freud nos diz:
“Quando os educadores se familiarizarem com as descobertas da psicanálise, será mais fácil se reconciliarem com certos fatos do desenvolvimento infantil e, entre outras coisas, não correrão o risco de superestimar a importância das ulsões socialmente imprestáveis ou perversas que surgem nas crianças”[5]
É óbvio que um professor não vai poder dar conta de alguns predicados dos psicanalistas, mas por outro lado ele pode se dá ao privilégio de ensinar com perdas e nisso proporcionar um resto, um lugar vazio apto ao desejo, para que aí possa se operar uma transferência ao saber e consequentemente à aprendizagem.
O psicanalista em meio a toda essa estrutura deve apostar no professor como:
Primeiro: agente de sustentação e de criação para garantir, no sujeito infantil, a clareza de que o que fracassa não é ele, mas o que dele se pretenda atender aos ideais devoradores dessa cultura que exige a perfeição;
Segundo: agente do desejo de saber para que o aluno possa dizer: “você é aquele que me transmite, mas que ao fazer isso, me surpreende e me conduz ao novo”.

Referências Bibliográfica:

Barros, R. Conferência “O Inconsciente Hoje” , João Pessoa, março/2000
Freud, S – Artigos sobre a Metapsicologia, vol. XIV, Imago, Rio de Janeiro,, 1980
_____- O interesse Cientifico da Psicanálise, vol. XII, Imago, Rio de Janeiro, 1980
Lacan, J. - “O Saber Psicanalítico”, Seminário Mimeografado
_____ - ”Radiuofonia” (CEF do Recife), Seminário Mimeografado
Teixeira Lopes, E.M (org) –“A Psicanálise Escuta a Educação”, Autêntica, Belo Horizonte, 1998
Mrech, L. M – “Psicanálise Educação – Novos Operadores de Leitura”, Pioneira, São Paulo, 1999
1- Freud, S – Artigos sobre a Metapsicologia, vol. VIX, p. 195
2 – Lacan, J – O Saber Psicanalítico, seminário inédito, p. 26
[3] Idem, p. 10
[4] APUD Leny Magalhães Mrech. Psicanálise e Educação. Novos Operadores de leitura p. 65
[5] Freud, S – O Interesse da Psicanálise para as Ciências Não-Psicológicas, vol. XIII, p. 225

terça-feira, 12 de maio de 2009

dEsEnrEdoS



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quarta-feira, 6 de maio de 2009


" O desejo do analista não é da ordem do fazer. O desejo do analista não é desejo de cura. A posição do analista é de desapego". (J.A.Miller)

sábado, 2 de maio de 2009

PSICANÁLISE E LITERATURA: Dom Quixote de La Mancha, o Cavaleiro da Triste Figura.

Pensar no engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha pela via da psicanálise, uma figura que em si não possui humor, mas cuja seriedade oferece-nos um prazer humorístico, remete originalmente a uma figura cômica, uma criança grande. Suas fantasias originárias dos livros de cavalaria se sobrepõem à realidade. Sabe-se que o autor não tinha maiores pretensões acerca dele e que essa criação gradualmente cresceu além das primeiras intenções do criador. Mas depois que o autor equipou essa figura ridícula com a mais profunda sabedoria e os mais nobres propósitos, tornando-o representação simbólica de um idealismo que acredita na realização de seus objetivos, que toma suas promessas literalmente, essa figura deixa de ter efeito cômico.

Nessa perspectiva há um dito de D. Quixote: “ Sei perfeitamente que estou enfeitiçado e isso basta para me tranqüilizar a consciência” (p. 72). Uma reflexão acerca do mecanismo do humor reproduz-se como fórmula análoga àquelas referentes ao prazer cômico e aos chistes. Entretanto, o prazer nos chistes parece proceder de uma economia relativa à inibição, sendo que o prazer no cômico, uma economia relativa à ideação (catexia) e o prazer no humor está relacionado ao sentimento (afeto). Enquanto que o chiste é uma contribuição feita ao cômico pelo inconsciente, o humor seria a contribuição feita ao cômico pela intervenção do supereu. Quando o prazer humorístico alcança uma intensidade comparável ao chiste, o supereu está repudiando a realidade e servindo a uma ilusão.

No que se refere ao aspecto topológico Freud define a metapsicologia pela síntese de três pontos de vista: Dinâmico, Tópico e Econômico – entendendo por este último “ a tentativa de acompanhar o destino das quantidades de excitação (energia psíquica) e de chegar a uma estimativa relativa de sua grandeza”. O ponto de vista econômico consiste em considerar os investimentos psíquicos em sua mobilidade, nas variações da sua intensidade, nas oposições que entre eles se estabelecem. Para Freud a descrição completa de um processo psíquico somente é possível com a apreciação da economia dos investimentos. Uma explicação dinâmica da atitude humorística consiste em retirar a ênfase psíquica de seu eu, transpondo-a para o supereu. Os motivos dessa exigência do pensamento freudiano encontram-se, por um lado, num espírito científico e num aparelho conceitual inteiramente impregnados de noções energéticas e por outro, na experiência clínica, um certo número de dados que, para ele só uma linguagem econômica pode explicar. O que Freud entende por economia libidinal é a circulação de valor que opera no interior do aparelho psíquico, a maior parte das vezes num desconhecimento que impede o sujeito de perceber, a satisfação sexual no sofrimento do sintoma. Deste modo, a hipótese econômica está constantemente presente na teoria freudiana, na qual a idéia princeps é a de aparelho psíquico, cuja função é manter no nível mais baixo possível, a energia que ali circula. Este aparelho executa um certo trabalho descrito por Freud de diversas maneiras: transformação da energia livre em energia ligada, adiamento da descarga de afeto, elaboração psíquica das excitações. Esta elaboração pressupõe a distinção entre representação e quantum de afeto ou soma de excitação, esta susceptível de circular ao longo de cadeias associativas, de investir determinada representação. Daí o aspecto econômico de que se revestem as noções de condensação (metáfora), um dos modos essenciais do funcionamento dos processos inconscientes.

O lingüista Roman Jakobson chegou a relacionar os mecanismos inconsciente descritos por Freud com os processos retóricos da metáfora e metonímia, considerados os dois pólos fundamentais de toda linguagem. Assim relacionou o deslocamento com a metonímia, onde a ligação de contigüidade é que está em causa, enquanto que o simbolismo corresponderia à dimensão metafórica, onde reina a associação por semelhança.

Vale enunciar outro momento do livro:“ Considerou Sancho que, sendo louco o seu patrão, e de uma loucura que fazia tomar uma coisa pela outra” (p.94). Uma representação única representa por si só várias cadeias associativas, em cuja interseção ela se encontra. Do ponto de vista econômico, é investida das energias, que ligadas a estas diferentes cadeias, se adicionam nela. A condensação (processo primário) é uma característica do pensamento inconsciente (efeito de censura). Como no deslocamento, a condensação é para Freud um processo que encontra seu fundamento na hipótese econômica. Determinadas imagens, particularmente no sonho, só adquirem vivacidade na medida em que, produtos da condensação estão fortemente investidas. O deslocamento refere-se à hipótese econômica de uma energia de investimento suscetível de se desligar das representações e de deslizar por caminhos associativos. Esse fenômeno é visível na análise do sonho,na formação do inconsciente. “ A estranha loucura que o acometia, apenas quando se tratava de assuntos de cavalaria, a partir de inúmeros livros que lera”. (p.74). O deslocamento tem função defensiva evidente: numa fobia, por exemplo, sobre um objeto fóbico permite localizar, circunscrever a angústia.

Jacques Lacan, retomando e desenvolvendo as indicações de Jakobson assimila o deslocamento à metonímia e a condensação à metáfora. O desejo humano sendo estruturado pelas leis do inconsciente e constituído como metonímia.

“ Que mal fiz eu em lê-los, crê-los e imitá-los? Quem está enfeitiçado como eu, não tem a liberdade para fazer de sua pessoa o que quiser (p. 74). As palavras de Quixote demonstram a sobreposição da fantasia à realidade, sendo quixotismo, uma expressão utilizada para quem toma esta postura. A fantasia, segundo Freud é um roteiro imaginário em que o sujeito está presente e representa, de maneira deformada pelos processos defensivos, a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo inconsciente.

No texto “ Formulação sobre os dois princípios do princípio mental “ (1911), Freud opõe ao mundo interior, que tende para a satisfação pela ilusão, um mundo exterior que impõe progressivamente ao sujeito, por intermédio do sistema perceptivo, o princípio da realidade.

“ Cavaleiro andante, generoso, que ao invés de ficar só na corte imaginando aventuras, enfrenta o sol, o frio, as inclemências do céu e nada teme, nem gigante, cuja cabeça toca as nuvens.”(p.93). A importância da fantasia na etiologia das neuroses, cenas infantis patogênicas encontradas no decorrer da análise, levam Freud a percebê-la de forma diversa do que anteriormente fora mencionado, na medida em que a realidade aparentemente material dessas cenas não passava de “realidade psíquica”.

“ Já te disse que os encantos mudam umas coisas em outras, dando-lhes aparência diversa da verdadeira” (p. 130). No sentido psicanalítico a “ realidade psíquica” é uma forma especial que não pode ser confundida com a “ realidade material”. No texto inaugural da psicanálise, “ A interpretação dos sonhos” (1900), Freud analisa a fantasia e mostra que a sua estrutura é comparável à do sonho. A fantasia está na mais estreita relação com o desejo, na medida em que o desejo tem a sua origem e o seu modelo na vivência de satisfação. Na medida em que o desejo é articulado à fantasia, também é lugar de operações defensivas, dando oportunidades de defesa mais primitivos como: retorno sobre a pessoa (introjeção), a inversão de uma pulsão em seu contrário, a negação e a projeção.

Em “Conversações Clínicas com Miller” (2008), há o relato de um caso no qual há a construção do mito de si próprio como “o cavaleiro da armadura enferrujada”, onde o sujeito experimenta um ciúme patológico em tom delirante. A armadura enferrujada como uma metáfora da dificuldade desse sujeito, que na identificação com o pai denomina-se “ eu sou infiel”, caracterizando um ponto de basta enquanto metáfora paterna. Dom Quixote pela melancolia que lhe causara a tristeza prolongada, fora vencido. À liberdade de Sancho, sobrepõe-se a solidão do fidalgo, que perdendo o sentido da própria existência, é tragado por sua melancolia (p.217). Miller repensa a figura de Dom Quixote na clínica, com um possível diagnóstico de uma psicose extraordinária, onde no final recupera a razão e tem que procurar um sentido para sua existência. Não pensando enquanto cura, porém como algo que permite ao sujeito dar sentidos à própria vida.

“ D. Quixote queria experimentar as asperezas do mundo e assim conquistar a imortalidade” (p.137). Nesta obra de ficção, fundadora da literatura moderna, na qual o personagem conta sua própria estória, percebe-se Quixote desejando amar, Sancho enriquecer (p.132). Pensar a psicanálise pela via das artes, em especial através da literatura, permite uma aproximação com o quotidiano de nossas vivências, bem como interlocução com outros campos do saber, possibilitando um diálogo mais amplo acerca de conceitos psicanalíticos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CERVANTES, Miguel. Dom Quixote – Tradução Ferreira Gullar. Ed. Revan, R.J.
FREUD, Sigmund. Edição Standard das obras completas. Ed. Imago, RJ.
- A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901) Vol. VI
- Os Chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Vol. VIII
- “Escritores Criativos e devaneios” (1907). Vol. IX
- O Ego e o ID (1923). Vol. XIX
- “O Humor” (1927). Vol XXI

MILLER, Jacques-Alain
Efeitos Terapêuticos Rápidos em Psicanálise: Conversação Clínica com Jacques Alain Miller em Barcelona. Belo Horizonte: EBP - Scriptum Livros, 2008.