segunda-feira, 21 de dezembro de 2009



A Diretoria do CEPP deseja a todos Boas Festas e um 2010 bastante produtivo.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

A PSICANÁLISE HOJE, SEGUNDO JUDITH MILLER



A filha de Jacques Lacan
fala das modas e dos modos de diagnosticar, da tendência a medicar as crianças e dos limites entre o público
e o privado. E de suas diferenças com Anna Freud.

Por Diego Rojas
Quem poderia suspeitar que a delgada mulher que sustenta um livro em seus braços e se nega a soltá-lo enquanto tomamos suas fotos que ilustram esta entrevista, é Judith Miller, a filha de Jacques Lacan? A presidenta da Fundación del Campo Freudiano se aferra ao livrinho, uma compilação de textos lacanianos escritos em português. “Só uma foto sem ele”, roga o fotógrafo, mas ela se nega. “É meu tesouro”, assegura, e toda a sessão transcorre enquanto Miller abraça o ditoso livro. Sabe-se, as neuroses não reconhecem fronteiras; por que a filha do homem que repensou Freud e a esposa de Jacques Alain Miller, seu discípulo dileto, seria imune a elas? Miller esteve em Buenos Aires para participar do XVI Encuentro Internacional del Campo Freudiano e o Encuentro Americano de Psicoanálisis Aplicado de Orientación Lacaniana. Durante um descanso, compartiu a seguinte conversação com Veintitrés.

Certos diagnósticos psicológicos parecem alcançar a categoria de modas. Os ataques de pânico, a bipolaridade. Inclusive, na Argentina, certas revistas assinalaram que a gestão de Cristina Fernández estava marcada por sua suposta bipolaridade.

Há uma diferença entre “moda” e “modo”. Diagnosticar os atos do governo ao diagnosticar a senhora Kirchner como bipolar é uma nova maneira de fazê-lo. É uma certa maneira de não ter respeito a sua pessoa. Essa falta de respeito socava uma diferença que me parece fundamental entre o privado e o público. Está na moda falar do privado como se a intimidade estivesse exposta diante dos olhos dos demais. E os responsáveis pela política e pelos governos costumam ser objetos destes diagnósticos. É uma desvalorização da singularidade e a subvalorização desta pessoa singular, que o é ainda que seja um chefe de Estado. A classificação é uma maneira de dizer que uma pessoa é similar a muitas outras. A psicanálise faz o contrário da moda.

Por que?

Porque compreende a divisão entre o privado e o público: não se poderia fazer associação livre de maneira efetiva sem resguardar o segredo. Buscar a singularidade, aquilo que faz com que cada um não se pareça com ninguém, é o final da análise. Esta singularidade absoluta é acessível. Por isso, a psicanálise não aceita nem o “modo” nem a “moda” atuais: são parte do que chamamos o mal estar da cultura. A psicanálise rechaça estas colocações e diz por que é perigoso mesclar a identidade de cada um com a identidade de outros. Os direitos humanos são universais e cada humano tem os mesmos direitos que os outros, mas isso também se traduz em que cada um tenha as mesmas debilidades que os outros e isso não é verdade. Cada um tem suas próprias debilidades, seus problemas, seus sintomas. Promover uma norma é errôneo porque sabemos que as normas são também uma forma da “moda”. Não há normas universais. Lacan disse que o discurso da psicanálise vai no sentido oposto ao discurso da moda.

Ir na contra mão não tem consequências para a psicanálise?

Este posicionamiento produz que a psicanálise, para existir, deva combater ataques muito agressivos do tipo político, epistêmico e administrativo, por exemplo, na França. Ganhamos a primeira batalha, mas a luta continua. O reverso não é o mesmo que o anverso da tela e a psicanálise assinala esta característica. O modelo universal responde às leis do mercado. Os laboratórios estão produzindo remédios e é preciso buscar as enfermidades para vender estes remédios, inventam-se categorias novas de classificação com fins de mercado. Estes manejos não podem assegurar a saúde mental da sociedade. Daí o incômodo da psicanálise.

Nos Estados Unidos, 10 por cento das crianças toma Ritalina.

É triste. As crianças são alimentadas com Ritalina para que tenham paz escolar e familiar, para colocá-los em frente da tela da TV, bem comportados. Isto produz efeitos que ainda não conhecemos bem. Quando estas crianças forem adultas terão atravessado uma drogadição. Mas não é tão fácil “normalizar” um ser falante. Freud disse que quando se expulsa o sintoma pela porta, ele volta pela janela. Se com Ritalina a criança dorme às oito da noite em lugar de duas da manhã, quando acordar continuará tendo os mesmos problemas.

Hoje existem crianças criadas em famílias distintas das que Lacan descreveu. Se Lacan outorga à figura do pai, uma importância vital, em uma família formada por duas mães, por exemplo, o desenvolvimento psíquico continua sendo o mesmo?

Não é uma dificuldade para a psicanálise porque desde seus primeiros escritos sobre o tema, Lacan explicou que cada família é um fato de cultura e que não tem nada a ver com uma natureza constituinte da família. O nome do Pai, precisamente, não está dado pelo pai biológico, mas é uma figura que funciona em cada caso, de maneira diferente. O nome do Pai é um semblante. Parece-me difícil entender que alguém possa dizer que há um laço natural entre a mãe e a criança ou entre o pai e a criança. Não tem sentido.

Zizek e Laclau reconhecem os aportes de Lacan na hora de repensar o marxismo. Inclusive, Badiou diz que Lacan é para o marxismo, o que Hegel era para os revolucionários de 1850.

Não li Laclau, mas meus colegas me falaram sobre sua obra. Lacan sempre ofereceu aportes ao marxismo, a partir das intervenções de Althusser e seus seguidores. Lacan leu a Marx e essa leitura lhe permitiu dar conta do plus de gozo. Sempre houve uma ida e volta entre a teoria marxista e a teoria psicanalítica. Lacan tem referências do início onde o peso da história e as organizações sociais são, sem dúvida, levadas em conta. O mestre antigo não é o mestre moderno e o mestre moderno tem diversas caras. Essas caras são históricas. Nossa tarefa hoje, e a dos marxistas também, é de dar conta da diferença entre o discurso do mestre capitalista que desenvolve a produção industrial e o capitalismo atual, que produz dinheiro a partir de dinheiro, um capitalismo financeiro. É diferente e é preciso ver as consequências dessas diferenças.

Zizek conjuga com Lacan com a troca social quando assinala que o desejo, que não tem lugar na realidade, pode ter uma tradução política quando se pensa em São Paulo e o fim da ressurreição, que não tem possibilidade real empírica, mas que se transforma em um impulso à ação.

Não sei se o desejo impulsiona ninguém a nada. Abrir um seminário de Lacan é como abrir um livro de Freud e o desejo do leitor está implicado em sua leitura. Penso que um analista lacaniano impulsiona a desejar. É verdade que para alcançar o desejo também é preciso atuar. Mas a psicanálise não é uma ideologia. A responsabilidade do próprio desejo de cada pessoa é o que a psicanálise permite, que se seja responsável pelos próprios sonhos.

Buenos Aires, além de ser uma cidade psicanalisada, é um centro de produção lacaniano. Na UBA, a Faculdade de Psicologia conta com uma maioria de programas que dão conta desta orientação. Como se vê, da França, este fenômeno?

Os psicanalistas franceses lacanianos sabem que há uma escola dessa orientação na Argentina. Trabalhamos com os colegas argentinos. Há uma interlocução entre os psicanalistas lacanianos e suas escolas, entre os psicanalistas franceses e os argentinos. Há um refrão em francês que se refere às carícias que se fazem a contrapelo, nos gatos. Não vou acariciar os colegas argentinos desse modo (“Não vá nos dourar a pílula”, assinala uma lacaniana argentina presente na entrevista). Os amigos argentinos sabem que a psicanálise neste país é muito mais acessível que na França e que eles o desenvolveram muito bem.

Anna Freud se considerava uma continuadora da obra de seu pai. A senhora contribui para o desenvolvimento do pensamento de seu pai. Pensou alguma vez neste paralelismo?

Quando pensei neste tema, que tem retornado muitas vezes na minha vida, pude chegar à conclusão de que foram duas experiências muito distintas. A obra de Anna Freud é uma das primeiras experiências da traição que conheci em minha vida. Traiu a obra de seu pai. Por isso, essa comparação não é tão desejável.

A senhora é a presidenta do Campo Freudiano. É a filha de Lacan e a esposa do discípulo mais relevante, Jacques Alain Miller. Como conjuga sua vida pessoal com o que seu pai e esposo e seu próprio trabalho significam no âmbito cultural e intelectual?

Começamos esta entrevista assinalando os limites entre o público e o privado e não creio que seja correto saltar essas barreiras.

Tradução: Maria Cristina Maia Fernandes