sexta-feira, 14 de maio de 2010

Um hospital sem sinthoma (ou a casa dos objetos a)

Marcelo Veras
Psicanalista, Membro da EBP (BA)


A Saúde Mental é barrada, pois a soma de seus discursos não aponta para a promessa do Um holístico do ser biopsicossocial. Isolados, cada um em seu canto, esses discursos chegam a fazer semblante de promover o enlace do falasser em sofrimento com o mundo que o rodeia. Contudo, o real em jogo faz cair todos os semblantes. Ele emerge quando a cacofonia desses discursos, em um hospital psiquiátrico, por exemplo, faz reverberar o objeto a que lhes escapa.

Minha passagem pela direção do Hospital Juliano Moreira, na Bahia, se deu no momento em que, na expectativa do resultado do passe, me perguntava o que um analista da AMP poderia fazer em tal instituição. A degradação das condições humanas me fazia ver que não mais estávamos nos tempos do paciente reduzido ao objeto de algum discurso prevalente, tal como aprendera em minhas leituras de Foucault. Percebia que, como efeito colateral da prática entre vários, o paciente fora reduzido não a um objeto, mas a objetalidade, conceito que Lacan evoca no Seminário da Angústia para tratar o objeto a caído de qualquer discurso.

A objetivação da loucura está na base discursiva da maioria dos movimentos de inspiração basagliana que impulsionaram a reforma psiquiátrica no Brasil e em todo mundo. Contudo, Lacan toma a questão por outra perspectiva. Opõe ao termo objetividade o termo objetalidade. Não se trata de buscar o objeto como “o último termo do pensamento cientifico ocidental”, ou seja, o objeto que pode ser alcançado e manipulado pela ciência. Ao contrário, a objetalidade coloca em evidência o “pathos do corte”, a pura perda e desconexão com o vivente.

Com Lacan, aprendemos a valorizar os pequenos objetos que os pacientes internados carregam consigo. São pequenos embrulhos sem valor aparente, pedaços de papel com escrituras incompreensíveis, enfim, uma enorme quantidade de objetos guardados como preciosidades por muitos loucos e que não são recolhidos pelo Outro institucional. São eles, finalmente, a irrupção do objeto a no real, já que não são separados do corpo por nenhum discurso[1].

O louco é reduzido a objeto a quando é extirpado do laço social e segregado em instituições psiquiátricas degradadas, onde o fracasso dos semblantes expõe apenas fragmentos da loucura, sem nenhum sinthoma de amarração. É aí que constatamos que o louco é segregado por nos revelar o mais íntimo de nós mesmos, ele é nosso objeto a apenas em sua função de resto, uma vez que é alteridade que não se converte em causa de desejo.

Caminhando pelos corredores, encontrávamos fezes, seios expostos, pinturas e escritos nas paredes. O corpo estava exposto ao olhar indiferente da equipe, dos vigilantes e mesmo dos outros pacientes. A nudez não era revestida de nenhum conteúdo erótico, era pura carne. O olhar e a voz estavam igualmente presentes. A arquitetura era feita para que nada escapasse ao olhar, tal como o panopticum de Bentham. Porém, tratava-se de um olhar cego, já que era incapaz de ver o paciente para além da tarefa de disciplinar. Os gritos traziam o objeto voz em sua função áfona, pois eram tantos que ninguém mais os ouvia.

Concluí que o apagamento da condição subjetiva naquele hospital era correlato à explosão do corpo em múltiplos objetos a, restos subumanos que impregnavam a instituição por todos os seus poros. A falta, precisamente, de um discurso estabelecido fazia com que esses objetos, presentes no oco da arquitetura hospitalar, pudessem apenas ser mostrados. Eles surgiam como incidências contingentes, não planejadas, que perturbavam a ordem institucional. Pensando com Foucault, percebemos que os espaços institucionais são planejados apenas para estabelecer algum modo de disciplina: espaços para as refeições, para o lazer, para a higiene, etc. [2]

Uma moldura para o objeto

Uma das primeiras iniciativas, ao assumir a direção do hospital, foi realizada pelo antropólogo visual Stéphane Malysse[3]. Durante semanas ele filmou e fotografou o interior do hospital, deixando-se levar exclusivamente pelo que se dava a ver, sem nenhum roteiro estabelecido. O resultado desse trabalho não deve ser confundido com um estudo/denúncia da situação precária do hospital psiquiátrico em pleno século XXI. Ele é valioso por mostrar que na instituição, sua arquitetura, seus muros e grades, sua obscuridade, tudo leva ao objeto a separado de qualquer apreensão pelo discurso da clínica. Os corpos se confundiam com a arquitetura, às vezes criando insólitas mensagens, cartas das quais a instituição se negava a ser destinatária.

O resultado desse trabalho tornou-se uma grande exposição fotográfica sobre a vida cotidiana do hospital, aberta a toda a comunidade de Salvador. O evento contou com a presença de críticos de arte, jornalistas, universitários e toda uma comunidade intelectual que, de forma inédita, circulava entre as alas e pacientes, conhecendo o interior do hospital. Uma das instalações – forçosamente – mais visitadas era a “Louco pra ver”, de Stéphane Malysee. Tratava-se de uma grande tenda fechada, instalada no saguão de entrada do hospital, cujo interior era repleto de fotos tiradas durante sua pesquisa. O visitante, para entrar no hospital, tinha que passar necessariamente pelo interior da cabana, defrontando-se com as fotos. Caso não quisesse entrar, a tenda possuía orifícios que permitiam ver seu interior. Diante da tenda, foi possível elevar o objeto a na instituição à dignidade de causar a divisão subjetiva do visitante. Diante do que se dava a ver, e da dúvida sobre entrar ou não na casa dos loucos, muitos hesitavam entre olhar o objeto pelos orifícios ou diretamente no interior da cabana.

Estamos mais acostumados a encontrar iniciativas que visem ao resgate da dignidade dos pacientes através dos ideais de justiça e reparação. No caso dessa exposição, a equipe adotou uma proposta diferente. Apoiada na teoria do objeto, ela prescindiu dos ideais e confrontou a sociedade com sua própria divisão subjetiva, ao invés de fazer apelo, através dos ideais, a sua culpabilidade.

A experiência artística do “Louco pra ver” é coerente com o estatuto do objeto na contemporaneidade. A psicanálise lacaniana, precedida pelos artistas atuais, acolhe como marca de nosso tempo a ruptura da barreira dos ideais e do belo. Marie-Hélène Brousse nos chamou a atenção para o fato de que por muito tempo a imagem do belo revestia o objeto: I(A) recobria a.

Hoje, essa barreira acabou. I(A) não governa mais a abordagem do objeto pulsional pela Arte. A separação entre o Ideal e o objeto é consumida e é o a sem véu que se adianta. O artista interpreta diretamente ao modo do objeto pulsional, que corre entre os objetos comuns e anima nosso mundo, nossos corpos, nossos hábitos, nossos estilos de vida e, portanto, nossos modos de gozo[4].

Encontramos nesse comentário de Brousse uma feliz aproximação entre o artista e o louco. Ambos antecipam a psicanálise e apontam para o horizonte subjetivo de sua época[5].Quando a psicanálise se associa aos autores que apontam a queda dos ideais e a prevalência do objeto no coração da civilização, ela reafirma que não é pela vertente do sentido que se poderá obter um enquadramento para o gozo. Busca-se a escritura sem sentido e a obra de arte que não tem compromisso com o belo. Assim como é necessária a extração do objeto a nas psicoses, acreditamos que é necessário promover a extração do objeto a dos muros institucionais.

Concluo voltando ao ponto em que me lancei com afinco na direção do hospital e de sua desconstrução, após o resultado de meu passe. A resposta negativa do cartel teve o efeito imediato de me lançar na psicanálise aplicada como única possibilidade de permanência na Escola. Como não mais estava em análise, passei alguns anos interrogando o que seria uma psicanálise pura, ou mesmo se havia efetivamente feito uma.

Algum tempo depois, deparei-me novamente com as fotos dos primeiro anos do hospital. Foi então que me dei conta de que o meu olhar sobre a instituição somente se descolou do olhar de um diretor, burocrata da Saúde Mental, por que eu havia sido atravessado pela experiência da falta de sentido que apenas uma psicanálise pura pode sustentar. Nesse momento tive a convicção de que algo havia mudado no modo mesmo de pensar a psicanálise na instituição. Enquanto a burocracia visa eliminar os restos institucionais, com a psicanálise foi possível sinthomatizá-los, transformando-os no índice mesmo daquilo que apenas serve de causa para o discurso analítico. Percebi que havia reproduzido o mesmo equívoco em meu passe, visando eliminar todos os restos. Encontrar a psicanálise pura ali mesmo onde pensei estar protegido pela psicanálise aplicada foi a surpresa necessária para me levar a bater novamente na porta de meu analista.

[1] Lacan, J., “O aturdito”¸ in Outros escritos – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
[2] Foucault, M. Vigiar e Punir¸ Petrópolis: Vozes, 2004
[3] Malysse, S. Images et représentations de la folie. Salvador site: http://zwyx.org/diffusion/malysse/expo_folie.html..
[4] Brousse M-H., “O objeto de arte na época do fim do belo: do objeto ao abjeto”, in Opção Lacaniana nº52, p.174.
[5] Lacan, J. «Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise», in Escritos – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998 , p.322.



XVIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano
O sintoma na clínica do delírio generalizado

sábado, 1 de maio de 2010


“O homem enérgico e vencedor é aquele que pelo próprio esforço consegue transformar em realidade seus castelos no ar. Quando este resultado não é atingido, seja por oposição do mundo exterior, seja por fraqueza do indivíduo, este se
desprende da realidade, recolhendo-se onde pode gozar, isto é, ao seu mundo de fantasia, cujo conteúdo, no caso
de moléstia, se transforma em sintoma”. (Freud, “Cinco lições de psicanálise”, vol XI, p. 47)