domingo, 27 de maio de 2012

AUTISMOS


Testemunho de Sagrario, mãe de Quique
                
 Eu me chamo Sagrario Rojas e sou a mãe de Quique, meu segundo filho.

Nós começamos a nos preocupar com Quique quando ele estava com um ano e meio. Ele se comunicava muito pouco, não pedia nada, aliás, não falava, emitia somente pequenos sons isolados. Ele não interagia com seu meio, brincava sempre sozinho. Quique ainda acordava à noite para mamar, e a hora da refeição era muito difícil, Quique recusava a se alimentar.

Seus comportamentos nos preocupavam muito, decidimos procurar profissionais ou uma instituição que pudesse ajudá-lo. Eu não encontrava calor humano em nenhum dos meus interlocutores. Enviavam-nos de um serviço a outro, às vezes para uma assistente social, outras vezes para um psicólogo, um médico ou diversos terapeutas; todos estavam obcecados pela ideia de me fazer responder uma série de perguntas idênticas, preencher papéis ou escrever a história de seu desenvolvimento. A fim de descartar certos riscos de doenças, meu filho foi submetido a análises dolorosas para ele e a testes de audição, mesmo que eu já soubesse que meu filho escutava.
Todo tipo de anomalias de ordem biológica tendo sido descartada, enviaram-me à unidade de saúde mental infanto-juvenil e, de lá, para o que eles chamam de um centro-base, onde, após uma observação de dez minutos, me disseram, como se tivessem me dito bom dia, que meu filho era autista. Deram-me então um outro formulário para preencher, a fim de fazer um pedido de tratamento. A maior parte do formulário continha perguntas às quais eu já tinha respondido.

Telefonaram-nos um mês e meio mais tarde, Quique ia enfim ter um tratamento onde cuidariam dele e faltava somente preencher formulários para fornecer elementos para os estudos estatísticos! Não foi assim. O interrogatório recomeçou, com as mesmas perguntas, as quais já tínhamos respondido várias vezes. Eu tive, verdadeiramente, o sentimento que meu filho não era nada mais que um relatório, um número. Eu comuniquei isto à pessoa que nos recebia e larguei definitivamente essa instituição.

Para os pais, os momentos mais difíceis são aqueles em que a dificuldade de sua criança para se comunicar e estabelecer uma relação se torna manifesta. Para que eles possam enfrentar essa situação desconcertante é fundamental ter um apoio, que os ajude a seguir a via nova de encontro com seu filho, que a terapia ou o tratamento recebido pela criança possibilita.

Uma vez que eu rompi a relação com o sistema institucional, continuei a procurar ajuda para meu filho (e para mim) e, por acaso, encontrei – foi um amigo que me fez conhecer Vilma – uma analista. Foi o acaso que me levou à psicanálise, um campo desconhecido por mim e que me ajudou.
Quique começou a ver Vilma, há dois anos e meio, ele pronunciava então palavras isoladas e seu comportamento era muito rotineiro.

Naquela época, um de seus problemas era a alimentação. Ele não comia sozinho e não mostrava nenhum interesse pela comida. Preocupada, eu lhe dava de comer distraindo-o. O momento da refeição era tenso e temido.

Num jantar, Quique apanhou um garfo com um pedaço de omelete e, bruscamente, introduziu-o em minha boca. Pude perceber que lhe dar de comer implicava, para Quique, uma violência e fui capaz de seguir os conselhos que me dava Vilma, nas sessões. Quique tinha mostrado seu mal-estar e eu tinha que compreendê-lo.

Quique evoluiu desde então, ele trabalhou duro nas suas sessões, toda semana (a distância nos impediu de vir mais frequentemente) e, pouco a pouco, ele foi capaz de adquirir a linguagem e, mais ainda, de estar em relação com seus semelhantes e seu ambiente.

No fim do último ano, a evolução de Quique foi mais significativa ainda, ele trabalhou várias sessões sobre um mesmo tema, o tema da «pessoa». Este tema surgiu no consultório de Vilma, quando ela recebia outro paciente. Nós insistimos para que ele esperasse sua vez, já que Vilma estava com outra «pessoa». Ele ficou reticente no momento de entrar de novo, ele manifestava isto quando chegava sua vez, me pedindo para que lhe confirmasse sua situação de «não pessoa», ele se sentia, sem dúvida, objeto (robô), animal ou personagem de desenho animado. Após várias sessões e face a minha recusa em confirmar a resposta que ele solicitava, ele chegou à conclusão de que sim, ele era uma «pessoa». Esta descoberta foi a base que lhe permitiu avançar, não somente na linguagem, que ele tinha adquirido, mas, principalmente na sua posição de ser diante ou no mundo.

Uma tarde, ele me perguntou se os bebês tinham um cérebro, eu lhe respondi que «sim», ele perseguia então sua ideia: «mas não são pessoas?» Quique dava à «pessoa» uma capacidade de autonomia que ele não reconhecia em um bebê. Foi distinguindo-se do bebê que Quique pôde se considerar como um ser humano, «uma pessoa», capaz de manifestar seu desejo e de trabalhar por si mesmo e para si mesmo.

As pessoas com TSA (transtorno do espectro autista) têm necessidade de uma antecipação nas suas atividades cotidianas, de certa rotina que lhes permita sentirem-se em segurança. Mas, eles querem também uma liberdade de decisão, um poder de agir «motu propio», e escolher sua atividade, manifestar seu desejo, e nós não devemos fazer seu cotidiano entrar na agenda, nem em casos rígidos, que provocam uma mecanização extrema da vida. E, além disso tudo, seu desejo, que eles têm tanta dificuldade para expressar, deve ser tomado como prioridade para seu desenvolvimento.

É esse respeito que peço para com as pessoas autistas.

Sagrario Rojas Alonso
Barcelona, 19 de junho de 2010
 
Fonte: www.lacanquotidien.fr. Número: 198

quinta-feira, 17 de maio de 2012


A
C

RÔNICA
DE ÉRIC LAURENT
[Autismo:Epidemia ou estado ordinário do sujeito?]
Quinta-feira 29 de março, os números caíram. Não os do CAC 40 ou da NASDAQ, nem aqueles das últimas ondas de pesquisa para presidente, mas os do CDC.
Em seu acrônimo americano, o Center for Disease Control and Prevention, omite le P. Esses números não são bons. A prevalência do autismo não cessa de aumentar. Ela está agora de  1 criança em  88, ou seja, dada a dissimetria da sensibilidade dos sexos, de 1 em 54 meninos. Isso dá  25% desde 2006 e 78% de aumento desde 2000-2002, data do início da contagem pelo CDC. Esses números foram obtidos utilizando os dados fornecidos por 14 estados relativos às crianças diagnosticadas nas escolas e nos sistemas de saúde, numa rede formando uma base de dados integrada. As diferenças na prevalência entre estados vão de 1 a 4. De 1 em 210 no Alabama a 1 em 47 em Utah. Prevê-se então que à medida em que se diagnosticará melhor nos estados pobres como o Alabama, e que as crianças das comunidades negras e hispânicas receberão mais provavelmente o diagnóstico, os números vão mecanicamente sempre aumentar. Várias abordagens se enfrentam para interpretar esses resultados.

A primeira é a dos responsáveis pelas diferentes instâncias da burocracia sanitária. De início o diretor do CDC, Thomas Frieden, que declarou à Alice Park, no site do Time Magazine «  No ponto em que estamos, penso que há uma possibilidade de que o aumento dos números sobre o autismo sejam inteiramente o resultado de um melhor rastreamento. Não sabemos se é o caso, mas é uma possibilidade». Para tranquilizar os pais, e fazer frente aos futuros aumentos, ele acrescenta «O que nós sabemos de maneira certa é que o autismo é comum, que as crianças com autismo precisam de serviços eficazes. Devemos aumentar o número de    crianças diagnosticadas, diagnosticadas precocemente e aumentar o número de crianças nos programas o mais cedo possível». Ele tranquiliza então falando de um aumento dos programas de acolhimento reservados aos sujeitos autistas. Ele quer enfim transformar os pais angustiadas em atores do sistema : « É importante que os pais que têm  preocupações as manifestem. Toda preocupação deve ser levada a sério. Não esperem!».
O diretor do National Institute of Mental Health, o NIMH, Thomas Insel, também se inscreve nessa perspectiva. O aumento se deveria a uma melhor sensibilidade ao problema, um melhor rastreamento, um acesso mais importante aos programas especiais para os autistas e aos serviços no seio da escola pública. Ele considera que os sujeitos são mais diagnosticados sob a pressão dos pais que tiveram assim acesso aos serviços pessoais e ajudas especializadas.

Fala-se então de um fator de « substituição diagnóstica» que é preferível ao « efeito de conformismo ». A grande revista Pediatrics, da American Academy of Pediatrics consagra regularmente artigos a este efeito de substituição na maneira como as crianças são classificadas, tanto nos centros de saúde quanto nos serviços de educação especializada (Special Education). Num primeiro tempo, constata-se simplesmente que o leito de Procusto se estende e que todo mundo  tem seu lugar no «espectro do problema». Todos aqueles que estavam classificados como retardados mentais ou esquizofrênicos ou deficientes em amplo sentido, agora são autistas.  O que tranquilizava também os pediatras era que comparando os números da educação especial e os previstos pela epidemiologia, permanecíamos abaixo dos números previstos pelo sistema de saúde. É o que é posto agora em dúvida pelo CDC que integra as duas dimensões, escola e saúde, na sua avaliação.
Os responsáveis do NIMH e do CDC estão muito preocupados com um efeito perverso da «epidemia» de autismo na medida em que se um «fator ambiental» é associado a ele, o mais frequentemente citado é a vacinação. Lembramos do pânico lançado por Andrew Wakefield e sua teoria de uma correlação entre o  autismo e a vacina Sarampo-Caxumba-Rubéola (vaccin ROR) [NT: no Brasil conhecida como tríplice viral]. Qualquer que seja a rejeição a esta teoria, o aumento tão rápido da prevalência do autismo nos EUA leva os pais a recusar as vacinas. Sabemos que a liberdade de escolha é um ponto ao qual os americanos são muito ligados. Essa recusa provoca agora epidemia de sarampo, caxumba e de coqueluche que tinham desaparecido do campo da pediatria. Se essas recusas se acentuam teme-se a ocorrência de pequenas catástrofes sanitárias. A relação diferente que mantém entre si os pais e os pediatras  desse lado do Atlântico nos evita essas regressões sanitárias. Por quanto tempo ? os que sustentam o « atraso francês » ajudando, poderíamos também ceder a essas sereias com as mesmas consequências previsíveis.

Uma outra escola de interpretações é representada pelo «Autism Speaks», a associação em que «O conjunto pelo autismo» se inspirou para seu programa e seus métodos. Seu presidente, Mark Rothmayr, pensa que o papel de um melhor diagnóstico da afecção só explica a metade de seu aumento. No fio do discurso da associação, ele  fala de catástrofe nacional e da necessidade de um « plano nacional »  para responder a isso. A revista «Disabilities Studies Quaterly», «a primeira revista no campo dos estudos sobre o deficiente », publicada pela Ohio State University, publicou em 2012, sob a assinatura de Alicia A. Broderick, professora de ciências da educação na Columbia, uma interessante análise da retórica do Autism Speaks. Como professora de ciências da educação, ela é a favor da inclusão das crianças deficientes e/ou autistas no sistema da escola pública e contra os programas comportamentalistas especializados como ABA. Ela analisa desse ponto de vista a retórica e os métodos que contribuem para o desenvolvimento da indústria ABA, em detrimento da escola pública. Ela analisa três momentos retóricos decisivos nos EUA que configuraram o momento atual do discurso sobre o autismo. De início, em 1987, o artigo de Lovaas que é o primeiro a falar de « cura » no autismo. Em seguida, em  1993, a publicação da autobiografia de Catherine Maurice contando sua utilização de um programa do gênero ABA com suas crianças porque era o único fundado do «ponto de vista científico». Enfim, em 2005, a criação do Autism Speaks com seu estilo de retórica publicitária de empresa e sua estratégia política. Ela aponta « O desdobramento onipresente da retórica do autismo como  « doença » e como « epidemia » através de seu Conselho publicitário nos anúncios de serviço público ». Ela considera como um golpe de mestre retórico fazer admitir as intervenções comportamentais como um «tratamento medicamente necessário» para um fenômeno constituído como «doença», cuja causa é ao mesmo tempo «genética» e «epidêmica». Vemos, na França, o quanto a estratégia retórica do coordenador do movimento «Juntos pelo autismo», Vincent Gerhards, adapta a fórmula americana à situação francesa e européia. Numa reportagem de página inteira num grande jornal, sob a forma de um Comunicado, ele se felicita «Recomendações» da HAS, que transforma em uma etapa de seu programa. «Pela primeira vez, a eficácia das abordagens educativas, desenvolvimentistas e comportamentais é reconhecida, e essas abordagens são recomendadas... No mais, apoiando-se na petição lançada pelo coletivo Autismo, o presidente da Assembléia nacional, Bernard Accoyer, pegou o Conselho econômico, social e ambiental  (CESE) sobre os custos econômico e social do autismo, que deve apresentar seu relatório em outubro de 2012». Na mesma página, duas outras grandes manchetes. Uma entrevista com o geneticista francês que dirige o departamento de Neurociência no Instituto Pasteur, sob o título: «A descoberta de genes implicados muda o jogo»; e uma outra entrevista com uma responsável «Mécénat Santé Handicap» da Fundação Orange, que responde à pergunta: «Por que a 

Fundação Orange escolheu financiar projetos sobre o autismo?». O título do artigo do geneticista é um pouco forçado porque ele apresenta a coisa como feita enquanto este aqui diz «Passo a passo, avançamos assim na compreensão das causas genéticas do autismo. Mas quase cada caso está ligado a um gene diferente. Estamos ainda nesse trabalho de descoberta dos genes implicados e de seu papel respectivo». O paradoxo do fundamento genético do «espectro do problema autístico» está assim posto: longe de encontrar genes comuns ao problema do espectro do autismo, se está  estabelecendo que em cada caso os genes são diferentes, o que supõe o diagnóstico prévio. O importante é o recurso aos «dados científicos». Nesta página, reencontramos o tríptico retórico do Autism Speaks: a ABA como resposta  médica necessária a uma epidemia genética numa parceria pública (CESE) e privada (Fundação Orange), sob o controle do «Coletivo Juntos pelo Autismo».
Além das duas escolas de interpretação, o aumento rápido dos números da prevalência do autismo, deixa pairar uma dúvida sobre seu fundamento genético. O desenvolvimento recente feito pelo Centro de excelência sobre o autismo de San Diego, de um teste permitindo detectar o autismo em cinco minutos desde a idade de um ano vai, sem dúvida, contribuir para seu aumento. Agora está ao alcance de todos fazer um sujeito entrar na categoria. De onde viria então a mutação genética que poderia provocar tais efeitos?

No dia 4 de abril, geneticistas propunham uma nova teoria que respondia à questão. Três estudos independentes publicados no site da revista Nature levam em conta o número de genes relativos nas alterações dos genes que controlam o desenvolvimento cerebral. Eles são centenas ou até mais de um milhar, cujas mutações raras poderiam dar explicar de 15 à 20% dos autismos. O método consistiu em comparar o material genético obtido em exames de sangue de pais que não eram autistas e que tiveram um filho autista. Ele isolaram assim mutações de uma geração a outra : as mutações chamadas « de novo ». O problema é que se conhece poucas coisas sobre o papel das mutações raras « de novo » sublinha Aravinda Chakravarti do Institut de Médecine Génétique de l’université John Hopkins.
Já que se achou a mesma mutação de novo sobre um mesmo gene em duas crianças que não tinham mais nada em comum, uma equipe considera que esta mutação é causal. Outra equipe encontrou um problema no mesmo gene como também em dois outros identificados da mesma maneira  numa amostra de famílias que tinham um filho autista. Daí a hipótese formulada por  Mark Daly de Harvard: «as crianças com autismo têm um ritmo de mutação de novo mais elevado em média, e os efeitos são mais severos». Mas sobretudo, o risco dessas mutações aumenta com a idade dos pais, especialmente com a idade do pai. Teríamos então colocado a mão no que no nosso estilo de vida explicaria o aumento do autismo. O paradoxo desta hipótese é que ela tornaria a culpabilizar cientificamente os pais do autismo das crianças. Ela complica também as pesquisas que se concentram sobre  a epigenética em seu conjunto. Como observar os fatores específicos afetando as famílias num ambiente que não pode ser reduzido a variáveis controladas num laboratório sobre esses milhares de genes ?
O número galopante de autistas será reduzido à partir do fim do ano pela adoção de um critério mais restritivo de inclusão no espectro do problema. A comissão responsável no DSM da definição de autismo decidiu excluir daí os Asperger e os problemas que afetam o desenvolvimento não especificados de outra forma (TED-NAS), essas categorias mais amplas que, desde 1994, tinham permissão de aumentar mais amplamente a categoria. Teremos assim um efeito mecâncio assegurado de redução e de números menos inquietantes.  Fred R. Volkmar do Child Study Center de Yale é categórico: «Essas mudanças colocarão fim à epidemia de autismo». A medida será suficiente?

O debate estatístico não faz aparecer um estatuto quase ordinário do autismo? Se definimos o ser falante como um ser de comunicação, descobrimos uma falha radical nesta. O início do século XX foi o da descoberta da extensão da neurose e do conflito psíquico. O fim do último século foi marcado pelo estatuto ordinário da psicose e da depressão. O século XXI não será aquele da evidência de um estatuto ordinário do autismo?