terça-feira, 26 de junho de 2012

Comunicado


Comunicamos a todos que no dia 30/06/2012 NÃO acontecerá o curso Introdução à Psicanálise: Freud a Lacan, coordenado por Carlange de Castro. Nesta data, o CEPP promoverá Psicanálise, Cinema e Conexão, com o filme A ira de um anjo, seguido dos comentários da Ana Elisa Marangoni Costa, psicóloga especialista em psicoterapia infantil e psicodiagnóstico, Psicanalista da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro.

Local: Auditório da Adufpi
Horário: 8h30min
Uma parceria do CEPP com o projeto Olho Mágico.
 Atividade Isenta de pagamento  

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Debate sobre o autisme e a psicanálise na Fundação Gabriel Péri


Nesta quarta 30 de maio, a Fundação política Gabriel Péri recebeu Jean-Daniel Matet, presidente da Ecole de la Cause freudienne, para uma conferência-debate sobre o autismo e a psicanálise. Alain Obadia, vice-presidente da Fundação, em seu preâmbulo, lembrou que este ano, definido como o ano do autismo estava mal engajado em torno de um novo questionamento « grave » da psicanálise através de artigos de imprensa, do filme  « Le mur », da proposição de lei do deputado Fasquelle e, enfim, das recomendações da HAS. Sem tomar partido num debate que não dominam, seus responsáveis chocados pelo fato de que as coisas são tratadas sob a forma de um anátema, tinham desejado contribuir eficazmente, graças à intervenção de Jean-Daniel Matet no debate no interesse das pessoas autistas.
Jean-Daniel Matet apresentou alguns pontos do que faz hoje o debate e o que está em jogo no caso a partir de uma leitura histórica, clínica e ética do cuidado aos sujeitos autistas. Ele lembrou  que a psicanálise não se limita ao que se passa no consultório dos psicanalistas. Muitos psicanalistas trabalham nas instituições que acolhem  crianças ou adultos autistas como psicólogos, educadores, psiquiatras – particularmente depois da segunda metade do século XXI. Essas instituições nasceram sob a pressão do meio associativo, geralmente dos pais dessas crianças por longo tempo deixadas por conta da psiquiatria pública. As instituições que nasceram  da intervenção das associações o foram sob o registro da educação especializada para pessoas deficientes, particularmente desde a lei de 1975. É sem dúvida aqui, explicou Jean-Daniel Matet, que se pode achar « a origem da tensão permanente entre o cuidado e a educação que toma em certas épocas ares de guerra. » Então mesmo que a aliança entre o cuidado e a educação como prevê a lei de 1975 funciona, o melhor disso pode ser esperado para as crianças e suas famílias.  A psicanálise na interface psiquiátrica e médico-social, tem um lugar importante para o que a descoberta de Freud permitiu para o desenvolvimento psíquico e libidinal da criança. Uma concepção da criança como sujeito à parte inteira  que permite aos psicanalistas hipóteses de trabalho, como podem testemunhar os trabalhos de Anna Freud e Mélanie Klein.

Jean-Daniel Matet insistiu sobre a importância da história das ideias e dos saberes nesse campo « na hora onde a aliança do capitalismo e da ciência faz promessas sobre o futuro humano fazendo o impasse sobre a subjetividade, sobre o estatuto do íntimo na história de cada um. » Isto sendo particularmente verdadeiro para o autismo. Ele lembrou a história dessa categoria clínica. Ele precisou a que ponto o apelo de certas associações por  « uma normalidade autista » que se oporia à loucura das outras é pouco eficaz e problemática. Como o é a tentação de creditar a idéia de uma causa confessa do autismo pela ciência médica. Ciência que pensa poder tudo explicar sem resto pela criptografia dos nossos genes e das moléculas que fazem nossos organismos.  « O que a psicanálise sustenta é que há um irredutível ligado à sexualidade e ao inconsciente, um buraco no simbólico, dizia Lacan, ao qual cada humano a partir de sua relação com a linguagem tem a ver. É o que pode se resumir em termos de causalidade psíquica.  É isso que uma cura psicanalítica explora para identificar a solução que cada um encontrou para fazer face a esse buraco que faz com que não se possa dizer tudo ». O que Lacan depois de Freud chamou de sintoma : o que diz a verdade do sujeito sobre a vertente simbólica mas o diz também no real lado gozo. A psicanálise está, por esse fato, do lado do não conformismo, ela perturba e cai, numa sociedade de ordem, do mesmo lado que o autismo como aquilo que deve ser recolocado no caminho. É na pesquisa de uma via acessível a cada um que convém dirigir-se e não à promoção de um método que valha para todos e cuja consequência, a experiência o mostra, é o retorno de uma série de sintomas que testemunham um « não para todos ». 

Como Jean-Daniel Matet expôs e soube transmitir na sua conferência « na experiência da cura o sujeito procura uma solução viável para o exercício de seu direito ao gozo. É esta experiência que os psicanalistas podem transmitir a outras disciplinas, outros discursos, para tentar tornar flexível as categorias comuns, tornar próprio acolher os impasses do gozo que se manifestam numa dimensão totalmente inédita nesse século XXI. »
O debate se seguiu engajado, inicialmente com o testemunho de Mireille Batu sobre a dificuldade do caminho dos pais de crianças autistas para obter respostas e apoio. Que esse apoio, ela o tinha obtido dos psicanalistas. Se, como expunha Jean-Daniel Matet, alguns pais engajados nas associações que defendem o método ABA tendem em suas acusações feitas aos analistas a projetar a culpa no campo do Outro sob uma forma odiosa, ela tinha podido avaliar que culpabilidade e responsabilidade estavam no centro da vida dos pais. Yasmine Grasser insistiu sobre o que está em jogo em termos de uma escolha de sociedade que propõe DSM e método cognitivista endossados pelo discurso do capitalismo e da ciência. Estela Solano insistiu sobre a importânica da transmissão da experiência pelos psicanaistas do que cada um desses sujeitos nos ensina. Uma educadora enfim interveio, a partir de sua experiência, sobre a importância da « bricolagem» no sentido de invenção desses sujeitos e daqueles que os acompanham para que a relação se instale e os progressos se façam para cada pessoa acolhida aqui onde os métodos cognitivistas dão a ilusão de um modo de emprego pelo qual os pais seriam atores da relação com seus filhos.  Alain Obadia reafirmou, na qualidade de responsável político, como um princípio intangível que não cabia ao estado, aos deputados e senadores, determinar o que são os bons métodos para acompanhar e fazer progredir as pessoas autistas.  Na medida em que o saber deles era aquele sobre o conjunto dos cidadãos, não mais, e também aquele das instâncias que são a sede de lobbying. Que há nesse combate maniqueísta contra a psicanálise uma cortina de fumaça para não tratar as questões importantes dos lugares que faltam nas instituições, da maneira como as associações devem lutar para obter meios decentes de funcionamento, enfim dos prazos muito importantes antes que a MDPH acuse recebimento das demandas que lhe são endereçadas. Se a fundação Gabriel Péri não tem vocação para se fazer a porta bandeira da psicanálise, seu papel é o de fazer de sorte que o debate se faça sobre as melhores bases possíveis. Depois, é a partir da experiência e do saber que ele tem como pai de um jovem autista de 33 anos e como presidente de uma associação de pais que gerencia 10 estabelecimentos dos quais a metade recebe principalmente pessoas autistas, que ele falou como « observador-ator ». « Como sair por cima do confronto tal como ele se estruturou nesses últimos meses em acusações sobre a psicanálise e sobre a idéia de que haveriam métodos eficazes que seriam os únicos a terem o direito de serem citados ? » Depois, ele marca que é muito importante para os psicanalistas saber fazerem-se compreender e sublinha alguns pontos fortes que se destacam da exposição de Jean-Daniel Matet:

A pluralidade das abordagens : o laço indispensável entre educativo e cuidador. Ele insiste sobre o fato de que é a experiência cotidiana dos estabelecimentos.
A desconfiança que é importante levantar sobre os métodos de varinhas mágicas. Ele lembra que, após o método Teach, recomeçou-se com o método ABA. « É essencial porque é a oposição de cada um ao todos e vocês são os portadores da idéia de cada um ».  Ele sublinhou especialmente a importância para a associação de que é o presidente de que o apoio seja adaptado a cada pessoa em sua singularidade irredutível.
 A idéia da negação do subjetivo. As pessoas, nos disse, são consideradas como o neurobiológico, « o que faz com que sejamos  « corpos e cérebros» como nos sugeria à RATP [onde Alain Obadia trabalhava], um cognitivista que tinha vindo fazer um seminário sobre como essas ciências poderiam trazer alguma coisa para a comunicação com os usuários ».
Depois ele concluiu : « o que vocês dizem é mais complicado que o que dizem os cognitivistas mas a realidade é mais complexa que o que eles nos apresentam. Alguns argumentos que valem para cada um e para todos. ».
Conservarei desse debate a qualidade e a simplicidade da transmissão de Jean-Daniel Matet tanto em sua análise da história das instituições, das ideias e dos saberes sobre a clínica com os autistas quanto no que ele transmitiu da prática psicanalítica : a invenção singular e a transmissão de cada um segundo seu estilo que abre à troca e permite o encontro.

domingo, 10 de junho de 2012

CONFERÊNCIA DE JACQUES-ALAIN MILLER: 27 de abril de 2012 – Buenos Aires



N
ão os farei esperar mais pelo tema do próximo Congresso. Uma nova série de três temas começou com este Congresso : « A ordem simbólica no século XXI ». Será uma série especialmente dedicada ao aggiornamento, como se diz em italiano, à atualização de nossa prática analítica, de seu contexto, de suas condições, de suas coordenadas inéditas no século XXI, no momento em que se desenvolve o que Freud chama: «O mal-estar na cultura», que Lacan lerá como os impasses da civilização.
Trata-se de deixar para trás de nós o século XX, para renovar nossa prática no mundo, ele mesmo bastante reestruturado por dois fatores históricos, dois discursos: o discurso da ciência e o discurso do capitalismo. Estes discursos dominantes da modernidade começaram, desde seu aparecimento, a destruir a estrutura tradicional da experiência humana. O domínio combinado desses dois discursos, cada um se apoiando no outro, tomou tal amplitude que conseguiu destruir, e talvez estraçalhar, os fundamentos mais profundos da tradição.

Vimos isso, durante este Congresso, com o transtorno advindo na ordem simbólica, cuja pedra angular o Nome-do-Pai está fissurada. E, como diz Lacan com extrema precisão, o Nome-do-Pai segundo a tradição foi tocado, desvalorizado, pela combinação dos dois discursos, o da ciência e o do capitalismo. O Nome-do-Pai é uma função chave do primeiro ensino de Lacan ; pode-se dizer que ela é reconhecida através de todo o campo analítico, quer seja lacaniano ou não.
Esse Nome-do-Pai, essa função chave o próprio Lacan a rebaixou, depreciou ao longo de seu ensino, acabando por fazer do Nome-do-Pai nada mais que um sinthoma, ou seja, uma suplência ao furo. Podemos acrescentar aqui, nesta assembleia – fazendo um curto-circuito – que esse furo preenchido pelo sintoma Nome-do-Pai reenvia ao impossível da relação sexual na espécie humana, a espécie dos seres vivos que falam. O declínio do Nome-do-Pai na clínica introduz uma perspectiva inédita apreendida por Lacan sob a fórmula: «Todo mundo é louco, quer dizer, delirante». Isso não é um chiste, estende-se a categoria da loucura a todos os seres falantes: aqueles que sofrem por não ter nenhum saber sobre o sexo. Esta frase, este aforismo, diz respeito ao que está dividido nas diversas estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão. Isso bascula, balança, a diferença feita até então entre neurose e psicose, base para o diagnóstico psicanalítico e tema inesgotável dos ensinos.

Para o próximo Congresso, eu proponho que examinemos as consequências dessa perspectiva, estudando o real no século XXI
Lacan faz desta palavra: «o real», um uso que lhe é próprio, que não foi sempre o mesmo e que teremos de esclarecer. Contudo, creio que haja uma maneira de dizê-lo que apresenta um tipo de evidência para cada um, para todos aqueles que vivem no século XXI, além dos lacanianos. É, pelo menos, um tipo de evidência para aqueles que foram formados no século XX, e que hoje e por algum tempo são do século XXI.
Há uma grande desordem no real.
Este é o título que proponho para o Congresso de Paris 2014: «Uma grande desordem no real no século XXI»

Gostaria de comunicar-lhes agora minhas primeiras reflexões sobre este tema, sobre este título, cuja formulação encontrei há dois dias. São reflexões arriscadas, para dar início à nossa conversação sobre a Escola Una, que vai durar dois anos, e não para encerrá-la.
A primeira reflexão que me ocorreu, eu a tomei como ela se apresentava, é a seguinte: antes, o real se chamava a natureza. A natureza era o nome do real, quando não havia desordem no real. Quando a natureza era o nome do real, podia-se dizer, como o fez Lacan, que o real volta sempre ao mesmo lugar. Somente  nessa época, naquela em que o real se disfarçava de natureza, o real parecia ser a manifestação mais evidente e mais elevada do conceito de ordem. Ao real que volta sempre ao mesmo lugar, Lacan opunha o significante, que se caracteriza por estar sempre se deslocando, a Enstellung –como dizia Freud. O significante se conecta, se substitui de forma metafórica ou metonímica e retorna ali onde não se espera, de surpresa. Ao contrário, o real – na época em que ela se confundia com a natureza – se caracterizava por não surpreender. Podia-se esperá-lo tranquilamente no mesmo lugar e na mesma data. Os exemplos de Lacan ilustram isto,  como o retorno anual das estações, o espetáculo do céu e dos astros. Toda a antiguidade está apoiada nisso, com os rituais chineses, os cálculos matemáticos baseados na medida dos astros, etc. Pode-se dizer que,  nessa época, o real enquanto natureza tinha a função de Outro do Outro. O real era a própria garantia da ordem simbólica.

Assim, a agitação retórica do significante no dizer humano estava enquadrada por uma trama de significantes fixos como os astros. A natureza – esta é sua definição - se define por ser ordenada, quer dizer, por ser a conjunção do simbólico e do real. De tal maneira que, segundo a tradição mais antiga, toda ordem humana devia imitar a ordem natural. Sabe-se bem, por exemplo, que a família como formação natural servia de modelo para o ordenamento dos grupos humanos e que o Nome-do-Pai era a chave do real simbolizado.
Os exemplos desse papel da natureza não faltam na história das ideias. Eles são abundantes e não tenho tempo para me estender acerca disso hoje. Esses serão pontos a ser explorados. Explorar a história da ideia de natureza, com a fórmula posta de que a natureza era o real, a ordem. Por exemplo, o mundo com a física de Aristóteles se ordena segundo duas dimensões invariáveis: o mundo de cima, separado do mundo sublunar, e cada ser buscando seu próprio lugar. É assim que funciona essa física, que é uma tópica, quer dizer, um conjunto de lugares bem fixados.

Com a chegada do Deus da criação, o Deus dos cristãos, a ordem permanece vigente, na medida em que a natureza criada por Deus responde à sua vontade. É a ordem divina, mesmo que não exista mais a separação dos dois mundos aristotélicos. A ordem divina é como uma lei promulgada por Deus e encarnada pela natureza. A partir daí se impõe a lei natural.
O conceito da lei natural emana deste ponto. São Tomás de Aquino dá a esta lei uma dimensão imperativa. Noli tangere natura: «Não tocar a natureza». Tinha-se realmente o sentimento de que se podia tocá-la, face aos atos humanos que iam contra a lei natural, por exemplo, os atos de barbárie, que se opunham ao imperativo de não tocar a natureza.
Devo dizer, mesmo que essa não seja a opinião de todos aqui, que considero admirável a maneira como a igreja católica, ainda hoje, luta para proteger o real, sua ordem natural, nas questões da reprodução, da sexualidade ou da família. São elementos anacrônicos, mas que testemunham a duração e a solidez desse discurso antigo. Aí está um discurso admirável como causa perdida, pois todo mundo se dá conta que o real não está mais na natureza. Desde o início, a Igreja tinha entendido que o discurso da ciência ia tocar o real enquanto natureza, que ela protegia. Mas não bastava encarcerar Galileu para deter a irresistível dinâmica científica. Não bastava qualificá-la de turpitudo – em latim – a avidez pelo ganho, a ganância, para deter a dinâmica do capitalismo. São Tomás utiliza a palavra latina turpitudo para falar do progresso. Causa perdida? Lacan dizia, no entanto, que a causa da igreja anunciava, talvez, um triunfo. Por que? Por que o real, destacado da natureza é pior e se torna cada vez mais insuportável. Nostalgia de uma ordem perdida que, ainda que impossível de recuperar, segue vigente como uma ilusão.

Antes do aparecimento do discurso da ciência, se desenhava um desejo de tocar o real, agindo sobre a natureza : domesticá-la, mobilizar e se servir de sua potência. Como ? Antes da ciência, um século antes do aparecimento do discurso científico, esse desejo se manifestava na magia. A magia é outra coisa que o truque do mágico para distrair as crianças. Lacan lhe confere tão grande importância que, em seu último texto dos Escritos: «A ciência e a verdade», ele inscreve a magia como uma das condições fundamentais da verdade: magia, religião, ciência e psicanálise. Quatro termos que já antecipam os famosos «quatro discursos».
A magia é o apelo direto ao significante da natureza pelo encantamento. O mágico fala para fazer falar a natureza, para perturbá-la, para infringir a ordem divina do real. Os mágicos foram perseguidos, pois a magia era da ordem da bruxaria. Contudo, a moda da magia já era um desejo de discurso científico. É a tese da erudita Frances Yates, que considera que o hermetismo preparara o discurso científico. É um fato histórico que o próprio Newton foi um distinto alquimista. Ela escreveu sobre Keynes, o economista, que dizia que Newton tinha passado mais tempo se ocupando da alquimia que das leis da gravitação. Esse ramo da história da ciência será um ponto a ser estudado. Mas seguiremos, principalmente, a Alexandre Koyré que ressalta a diferença entre a magia, que faz falar a natureza, e a ciência, que a faz se calar. A magia é encantamento, ocultação, retórica. Com a ciência se passa da fala à escritura, conforme o dizer de Galileu: «a natureza está escrita em linguagem matemática».
Lacan, no fim de seu ensino, não hesitava em se perguntar se a psicanálise – quando já não pensava mais em transformar a psicanálise em ciência – não estaria mais do lado da magia. Ele disse isto apenas uma vez, mas é preciso levar em conta. Assiste-se a uma mutação da natureza, que se pode apreender pelo aforismo de Lacan: «Há um saber no real». Eis aí o novo: alguma coisa que se escreve no próprio coração da natureza. Continuou-se a falar de Deus e da natureza, mas Deus é apenas um sujeito suposto saber no real. A metafísica do século XVII descreve um Deus do saber que calcula, como diz Leibniz, ele mesmo é o cálculo, precisa Espinoza. É um Deus matematizado.

A referência a Deus permitiu, velando a antiga face de Deus, a passagem do cosmos finito ao universo infinito. Com o universo infinito da física matemática, a natureza desaparece e os filósofos do século XVIII fazem dela apenas uma instância moral. O universo infinito faz a natureza desaparecer e desvela o real.
Eu me perguntei sobre a fórmula: «Há um saber no real». Seria tentador dizer que o inconsciente se situa nesse nível. Mas, ao contrário, a suposição de um saber no real parece ser o último véu a se levantar. Se há um saber no real, há uma ordem que o saber científico pode prever. O saber científico permite, de fato, prever, é seu orgulho, já que ele demonstra a existência de leis, e não há necessidade que elas sejam enunciadas por um deus, para que vigorem. É através dessa ideias das leis que a velha ideia da natureza se cristaliza na expressão: «As leis da natureza». Einstein, como diz Lacan, se referia a um deus honesto, que rejeita todo acaso. Era sua maneira de se opor às consequências da física quântica de Max Planck. Existia, em Einstein, uma tentativa de deter o discurso da ciência e a revelação do real. Pouco a pouco, a física cedeu lugar à incerteza e ao acaso, ou seja, a um conjunto de noções que ameaça o sujeito suposto sabe. Não se pôde mais fazer a equivalência entre o real e a matéria. Com a física subatômica, os níveis da matéria se multiplicam, e o A da matéria, como o 
A da mulher, desaparece. Posso fazer aqui um atalho: em relação à importância das leis da natureza, entende-se a repercussão que teria o aforismo de Lacan: «o real é sem lei», que testemunha uma ruptura total entre a natureza e o real. Ela rompe, de maneira definitiva, a conexão entre a natureza e o real. Ela ataca a inclusão do saber no real, que mantém a subordinação ao sujeito suposto saber.
Na psicanálise não há saber no real. O saber é uma elucubração sobre o real, um real desprovido de toda suposição de saber. Pelo menos é assim que Lacan inventou o real, até se perguntar se isso não era seu sintoma, se não era a pedra angular que mantinha a coerência de seu ensino. O real sem lei  parece impensável. É uma ideia limite que quer dizer, primeiro, que o real é sem lei natural. Por exemplo, tudo que tinha sido a ordem imutável da reprodução se move e se transforma, seja no nível da sexualidade ou da constituição do ser humano, com todas as perspectivas que aparecem hoje, no século XXI, para melhorar a biologia da espécie.

O século XXI se anuncia como o grande século da bioengineering, que abrirá a porta para todas as tentações da eugenia. A melhor ilustração disso que experimentamos, hoje, se encontra no «Manifesto comunista» de Karl Marx, a respeito dos efeitos revolucionários do discurso do capitalismo na civilização.
Gostaria de ler para vocês algumas frases de Marx, que ajudam a refletir sobre o real:
«A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, o que quer dizer, as relações de produção, quer dizer, o conjunto das relações sociais. (…) Esse constante abalo de todo sistema social. (…) Todas as relações sociais, cristalizadas e cobertas de ferrugem, com seu cortejo de concepções e de ideias antigas e veneradas, se dissolvem;(…) Tudo que tinha solidez e permanência se esvai como fumaça, tudo que era sagrado é profanado…»
O capitalismo mais a ciência estão ligados para fazer a natureza desaparecer, e o que resta desse desaparecimento é o que chamamos o real, um resto, e, por estrutura, desordenado. Toca-se o real por todos os lados, segundo os avanços do binário capitalismo-ciência, de maneira desordenada, ao acaso, sem que se possa recuperar a menor ideia de harmonia. Houve um tempo que Lacan falava do inconsciente como um saber no real, quando ele dizia que ele era estruturado como uma linguagem. Ele buscava, então, as leis da fala, a partir da teoria do reconhecimento de Hegel : reconhecer para ser reconhecido. As leis do significante, a relação de causa e efeito entre significante e significado, entre metáfora e metonímia, ele as apresentava como saber ordenado, sob a forma dos grafos, sob o predomínio do Nome-do-Pai na clínica e no registro fálico da libido. Mas, em seguida, outra dimensão apareceu com lalíngua, pois, se há leis da linguagem, não há leis da dispersão e da diversidade das línguas. Cada língua é forjada pela contingência e pelo acaso. É por isso que o inconsciente tradicional –para nós, o inconsciente freudiano–  nos aparece como uma elucubração de saber sobre um real, uma elucubração transferencial de saber, que acrescenta a esse real uma função de sujeito suposto saber, pronta para se encarnar em outro ser vivo. O inconsciente, se ele pode se ordenar enquanto discurso, só é extraído da experiência analítica, e a elucubração transferencial visa dar sentido à libido, condição necessária para que o inconsciente seja interpretável. Isso supõe uma interpretação prévia, quer dizer, que o inconsciente interprete.

O que o inconsciente vai interpretar? Para responder a esta pergunta, é preciso introduzir a palavra: «real». Na transferência, é o sujeito suposto saber que interpreta o real. O que se elabora é um saber não no real, mas sobre o real. É aí que situamos o aforismo: «o real não tem sentido», que é uma condição do real. Na medida em que se chegou ao que está fora do sentido, pode-se pensar que se saiu das ficções construídas em nome de um querer dizer. «O real não tem sentido», não responde a nenhum querer dizer, o sentido vem com a elucubração fantasmática. Os testemunhos de passe, essas pedras preciosas de nossos congressos, são os relatos da elucubração fantasmática de cada um, a partir da expressão e da construção singular de sua experiência analítica reduzida a um núcleo, a um pobre real que se atenua até se tornar um puro encontro com lalíngua e seus efeitos de gozo sobre o corpo. Um puro choque pulsional.
O real não é um cosmos, um mundo, nem uma ordem, é um fim, um fragmento assistemático, separado do saber da ficção, que nasce desse encontro com lalíngua e o corpo. O encontro não responde a nenhuma lei prévia, ele é contingente e perverso, pois se traduz por um desvio do gozo, com relação ao que ele deveria ser. O real inventado por Lacan não é o real da ciência. É um real do acaso, contingente, já que lhe falta a lei natural da relação sexual; é um furo de saber no real. Lacan se serviu da linguagem matemática, que convém mais à ciência. Nas fórmulas da sexuação, por exemplo, ele tentou apreender os impasses da sexualidade a partir da lógica matemática. Essa foi uma tentativa heróica para fazer da psicanálise uma ciência do real, da mesma maneira que a lógica, mas isso só podia se dar encerrando o gozo na função fálica, num símbolo. A simbolização do real tem como consequência reenviar ao binário homem/mulher, como se os seres falantes pudessem também ser distribuídos claramente, no momento em que vemos, no real do século XXI, uma desordem crescente da sexuação. É uma consequência secundária que se segue ao choque inicial do corpo com lalíngua, o real sem lei e sem lógica. A lógica acontece somente depois, com a elaboração, o fantasma, o sujeito suposto saber e a psicanálise.
Até este dia, sob a influência do século XX, nossos casos clínicos são construções lógicas de uma clínica sob transferência. A relação de causa/efeito é um prejulgamento científico, que se apóia sobre o sujeito suposto saber. A relação de causa e efeito não conta do ponto de vista do real sem lei, conta apenas como ruptura entre causa e feito. Donde, o chiste de Lacan: «Se vocês entendem como funciona a interpretação, não é uma interpretação». Com a psicanálise, essa que Lacan nos convida a exercer, encontra-se a ruptura do laço de causa a efeito, a opacidade do laço, e, é por isso que falamos de inconsciente. Dizendo de outro modo, a psicanálise encontra o recalcado e a interpretação do recalcado, graças ao sujeito suposto saber. No século XXI, a psicanálise deve seguir outra via : a da defesa contra o real sem lei e sem sentido. Lacan nos indica a via do real, assim como Freud fez com o conceito mítico da pulsão. O inconsciente lacaniano, do último Lacan, está no nível do real, digamos para simplificar : « sob » o inconsciente freudiano. Para entrar no século XXI, nossa clínica deverá se centrar na maneira de incomodar a defesa, de desregrá-la contra o real.

Numa análise, o inconsciente transferencial é uma defesa contra o real, que conserva uma intenção, um querer dizer, enquanto o inconsciente real não tem intencionalidade, mas se exprime por um: «É assim.», é nosso «Amém».
Várias questões se colocarão para o próximo Congresso: a redefinição do desejo do analista, que não é um desejo puro, nos diz Lacan, não é uma metonímia infinita, seria mais um desejo de atingir o real, de reduzir o outro a seu real e liberá-lo do sentido.
Lacan tentou representar o real como um nó borromeano. Perguntaremo-nos no que vale essa representação, em que ela nos serve hoje. Lacan se serviu do nó, de sua paixão pelo nó borromeano, para tocar essa zona irremediável da existência, como Édipo em Colona, onde se encontra a ausência absoluta de amor, de fraternidade e de todo sentimento humano. Eis onde nos conduz a busca do real desprovido de sentido.
Agradecimentos a Chantal Bonneau por seu trabalho de tradução. NDLR

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Comunicado

A diretoria do Círculo de Estudo Psicanalítico do Piauí - CEPP comunica que as inscrições para o cargo de ADERENTE passará a ser permanente.

Os interessados devem redigir uma carta endereçados a diretoria do CEPP, sobre o seu desejo e percurso com a psicanálise para o endereço eletrônico: cepp.teresina@gmail.com

Maiores informações através do e-mail: cepp.teresina@gmail.com

domingo, 3 de junho de 2012

A Crônica de Éric Laurent: Investigar e punir, a ética hoje


A investigação das causas internas do autismo se faz num ritmo exaustivo. Cada mês, e mesmo cada semana, apresenta novas hipóteses. Uma semana depois da publicação em Nature dos estudos que colocam em causa a instabilidade ante as mutações “de novo” do esperma de pais idosos, em 9 de abril outra publicação na revista Pediatrics, relança a pesquisa do lado das mães. Ela procede das pesquisas da Universidade da Califórnia Davis e da Universidade Vanderblit. Nesse estudo, foi medida a obesidade das mães como um fator de risco. O objetivo era colocar em paralelo a “epidemia” de obesidade, uma mãe entre três nos EUA se considera obesa, e a “epidemia” de autismo.

Estudaram mil crianças entre dois e cinco anos, autistas ou não, assim como o dossier médico de suas mães. Ao comparar as mães obesas e as que não o são, as obesas tinham antes da gravidez, um risco 60% mais alto de ter um filho autista e dobravam o risco de ter um filho com retardo cognitivo ou comportamental não especificado. O risco é ainda maior quando as mães sofrem de hipertensão antes ou durante a gravidez. Irva Hertz-Picciotto, diretor da divisão de meio ambiente das ciências de saúde pública na Universidade da Califórnia Davis destaca que “o cérebro da criança é essencialmente sensível a tudo o que se passa no corpo da mãe”. Ele acrescenta imediatamente que a causa é multifatorial e que não se deve culpabilizar as mães. Não se sabe por meio de que mecanismo o sobrepeso ou o distúrbio metabólico pode influir no desenvolvimento do autismo. Supõe-se que pode ser por intermédio de um disfuncionamento insulínico e, portanto, da alimentação de açúcar do cérebro do bebê.

Susan Hayman, responsável pelo subcomitê de autismo da Academia Americana de Pediatria julga os resultados desse estudo de maneira muito positiva em seu comentário a um jornalista do Wall Street Journal on-line: “As estatísticas sobre a obesidade são preocupantes, mas é um fator de risco modificável”. Tudo depende de como. Está claro que um setor da pesquisa quer abrir uma nova oficina comportamental. Não apenas as crianças poderiam ser tratadas mediante uma reeducação comportamental, mas também suas mães. É preciso saber quais serão as punições aceitáveis nessa vasta empresa de reeducação alimentar. Outros professores de medicina encontram-se alarmados com o caráter multifatorial da epidemia de obesidade. A pesquisa das predisposições genéticas não dá conta da rapidez da epidemia. Os fatores do meio ambiente podem ser enumerados em profusão: os alimentos pré-preparados, muito açucarados ou salgados, os onipresentes refrigerantes, a desestruturação dos modos de vida e das famílias, as refeições muito frequentes, a eliminação do tabaco, que permitia controlar o peso, o stress no trabalho, etc. Controlar todos esses fatores parece una tarefa gigantesca. Apenas uma ética na medida permitiria propor uma solução, caso por caso. Resistir às buzinas do discurso da saúde pela solução reeducativa massiva não será fácil.

As declarações sem deferência, em Médiapart, da diretora do centro Camus de Villeneuve d’Ascq (ver LQ 192), sobre o vínculo entre reeducação comportamental e castigos mediante eletrochoques, dão uma ideia da vontade de poder daqueles que defendem esses discursos. “Na análise do comportamento, existem procedimentos de castigo por meio de eletrochoques. Todo mundo acha isso escandaloso, mas é aceito pelo governo holandês em certos procedimentos para transtornos severos e como “último recurso”. Isso serve para tranquilizar que “esse castigo é eficaz se o comportamento alterado diminui rapidamente, caso contrário não é uma boa punição. Então, se não diminui, paramos, não são aplicados 80 voltes! Mas, na França, desde quando se fala disso, se pensa em Vol au-dessus d’un coucous. Alguém voou sobre o ninho do cuco. O tema do “atraso francês” não está longe. Temos memória demais na França.
Talvez não se esteja errado. O governo americano, como o governo holandês, começou com os castigos elétricos desde os anos 50, e essas experiências no filme de Milos Forman fornecem uma versão inesquecível com Jack Nicholson num papel que marcou sua carreira. Um processo em curso em New York expressa bem as consequências dessa licença. A mãe de uma criança autista, Cheryl Mc Collins, levou à justiça uma “escola” de Massachusetts que recebe muitos novaiorquinos: o “Judge Rotenberg Center”. O City Magazine “New York” repercutiu o fato. Essa escola se apresenta como o “último recurso” para crianças,  adolescentes e adultos que sofrem de “distúrbios de comportamento”. As 84 crianças e 36 adultos que recebe podem sofrer de autismo, de retardos mentais ou tendências severas de automutilação. Essa escola é o único centro nos EUA onde os eletrochoques são o tratamento de referência. Um tribunal de Massachusetts recebeu esta semana um vídeo de 2002 no qual André Mc Collins, que tinha então 18 anos, depois de se recusar a tirar seu casaco ao entrar numa nova sala de aula, às nove e meia da manhã, recebe como castigo durante o dia 30 eletrochoques, administrados enquanto ele se mantinha amarrado a um dispositivo ad-hoc, até o final do horário escolar, às quatro e meia. Ele passou o fim de semana num estado catatônico. Seu advogado acusa o centro de “danos cerebrais permanentes relacionados à resposta de stress causado por esse dia”. É a primeira vez que um tribunal poderá assistir um vídeo que mostra ao vivo o efeito de um tratamento aversivo mediante eletrochoque, fora de qualquer ficção. O processo não é o único, em outro caso de 2006, um adolescente de 17 anos recebeu choques 79 vezes em 18 meses, com resultados catastróficos.                                               

As palavras da senhora Vinca Rivière, diretora do Centro Camus e responsável pelo master “Análise experimental e aplicada ao comportamento”, em Lille 3, não são tranquilizadoras, como diz. É preciso una vigilância precisa para que não se produzam esses desvios para além do “respeito aos procedimentos” invocados. Isso lembra os resultados da experiência de Stanley  Milgram no início dos anos sessenta na Universidade de Yale, que “buscava avaliar o grau de obediência de um individuo ante uma autoridade que considera legítima e analisar o processo de submissão à autoridade, especialmente quando esta induz a ações que colocam problemas de consciência para o sujeito”, como diz Wikipedia. Nessa experiência tratava-se precisamente de verificar até com que intensidade de “eletrochoques” — cujos efeitos eram simulados por atores, sem que os participantes soubessem — os estudantes iriam castigar os outros, quando estivesse autorizada a punição. Sabe-se que muitos dos poucos estudantes que se prestaram a isso souberam resistir a um processo de intensificação fatal. Somente na França pensou-se as consequências das ordens absurdas de uma intensidade tornada superegoica, “obscena e feroz”.

A psicanálise é uma disciplina crítica que ajuda a todo preço a manter viva a distancia ética a respeito do desejo de conformidade a sintomas perturbadores.  Em 16 de abril, um testemunho no jornal britânico The Guardian, permite verificar isso. O autor, Henry Bond, artista e escritor inglês, que desde os anos 90 teve sua hora de glória com o movimento dos YBA (Jovens Artistas Ingleses) ao lado de Damien Hirst e outros, se apresenta como Artista Asperger e Lacaniano.  Ele tem de fato um master em psicanálise do Middlesex Polytechnics, dirigido por Bernard Burgoyne, e publicou livros com prefácios de Darian Leader ou Slavoj Zizek, como Lacan on the scene, publicado por MIT Press, em 2009.
Ele nos fala de sua psicanálise e de suas sessões de TCC. As TCC, administradas no marco do NHS público lhe ensinaram a melhorar seu “social skills”. Ele aprendeu a levar adiante estratégias para fazer frente à sua “aspereza social”. Ao contrário, em sua psicanálise aprendeu que “é falado pelo real, possuído pela linguagem”. Ele atribui essa citação a Lacan. É uma dimensão da experiência que lhe parece preciosa e a qual teve acesso por seu autismo. Como outros autistas de alto nível, teme que se for encontrada uma causa genética para o autismo, se buscará erradicá-lo como se faz com a síndrome de Down. Ele pensa, entretanto, que será preciso talvez 50 anos para que essa descoberta seja feita e que, daqui até lá, a psicanálise lacaniana ajudará a que permaneçam abertas as questões éticas colocadas pelo autismo. Ele toma por sua conta a observação de um orador num congresso recente sobre o autismo: “Ninguém quer ser amado como ‘normal’, cada um quer ser amado pelo que tem de único”