domingo, 25 de agosto de 2013

Papo de garotas

De Quentin Tarantino e do fetichismo hipermoderno

Gérard Wajcman (AMP/ECF)
Heroínas, novas perversas
Tarantino, em lacaniano rigoroso, desdobra seus filmes exatamente entre os dois pólos que, para Lacan, sustentam o fio do gozo: “Isso começa com as cócegas e termina com a labareda de gasolina” 1. E isso ao ponto de que se poderia acreditar que Lacan falava aí dos filmes de Tarantino. Para compreender, é necessário pensar como Kill Bill. Este filme poderia ter como subtítulo: poder às garotas! É o que finalmente diz seu título – levando a pensar que todos os rapazes chamam-se Bill. É preciso dar todo o seu valor ao fato de que Tarantino escolheu David Carradine para o papel, herói nos anos 70 da célebre série televisiva Kung-Fu. Uma Thurman o mata graças a uma técnica secreta que faz explodir seu coração. Ela é mais
forte do que ele. É o herói dos anos 70 abatido pela garota dos anos 2000. Esse filme anuncia que as garotas são as novas heroínas. E essas heroínas são as novas perversas. Tarantino é evidentemente um perverso polimorfo. Ele ama os pés das garotas. Assim que começam os créditos de abertura de Death Proof, vemos os pés nus das garotas plenamente enquadrados, pousados na praia na frente do carro. Percebemos claramente que é para dar prazer aos garotos. A massagem dos pés não é necessariamente o truque das garotas. Elas praticam a massagem da fala. Mas o que faz de Tarantino um cineasta importante, é que, como Hitchcock, é um perverso que não se ignora, que sabe exatamente onde está o seu desejo. Ele filma garotas que lhe dão prazer como ele quer, mas à diferença de Hitchcock, tem na cabeça a seguinte
questão: o que faz as garotas gozarem?
O que as “fissura”? A Talk Massage, seguramente. Os rapazes sem dúvida, mas também os carros. O fetichismo dos carros é, normalmente, um truque dos caras. Vejamos que as garotas se apropriam das perversões dos caras. É o que Death Proof relata. Sabemos que o fetichismo feminino é raro. Como o fetichismo repousa na denegação da castração materna, esse diagnóstico é frequentemente reservado para os homens, pois, como diz Freud, as garotas estão bem situadas para saberem o que elas não têm.
Ao mesmo tempo, rapazes e garotas, estamos todos submersos num fetichismo generalizado e industrializado. Freud explicava como os objetos circulam por metonímia, como substitutos ao falo materno – substituindo um objeto que não existe por outro objeto. Hoje em dia é legítimo se perguntar: a própria ideia de uma clínica do fetichismo ainda faz sentido num mundo submergido pelos objetos? All the world’s a market, and all the man and women merely consumers. Condenados ao consumo, o fetichismo tende a tornar-se a norma social.

A encarnação do Zeitgeist feminino
O cinema é mais atento ao cingir essa novidade clínica do objeto do lado das mulheres. Sempre teve essa capacidade notável de descrever as mulheres capazes de figurar modelos, de construir paradigmas. É a única arte na qual as mulheres podem surgir encarnando o que eu nomearia de Zeitgeist feminino, o espírito da mulher do tempo. Nos anos sessenta, quando se sai do pós-guerra, é evidentemente Brigitte Bardot que encarna a mulher em voga; quer dizer a mulher dos tempos por vir. Brigitte Bardot é a mulher que anuncia a era dos objetos e do gozo liberado. E também uma nova liberdade para as mulheres. Essa nova mulher nasceu em 1956, em E Deus criou a mulher de Vadim. Ela está mesmo à frente do novo cinema.
O novo cinema e a nova mulher vão se juntar em 63, em Mépris de Godard. Camille é a nova mulher. Não somente uma nova imagem, de uma mulher bela e livre, mas uma mulher inédita: uma mulher que menospreza
um homem. Existia o formidável romance de Moravia, mas a literatura não poderia bastar para criar esta figura, era preciso um corpo real, era preciso Bardot. O espírito do tempo é um corpo. E Bardot teria sido esse novo corpo, esse espírito de corpo. Uma nova mulher é uma mulher que mostra uma nova maneira de gozar. A questão se coloca hoje em dia assim: onde está a Miss Zeitgeist 2012?
Cada uma das Miss Zeitgeist é a encarnação em um momento dado da pergunta feita por Freud: O que
quer uma mulher? Sabemos que essa foi, para ele, “a grande questão”. Isso nos leva a pensar que era uma
questão para sempre sem resposta. É isso que haveria de eterno nas mulheres, questão que elas não cessariam de colocar aos homens. A potência dessas mulheres, sintomas-do-tempo no cinema, é encarnar essa pergunta em uma época. Enigma colocado aos homens, que implica certa ameaça, já que a questão de saber o que quer uma mulher está enodada àquela de saber o que ela quer de nós. É a questão de Godard em Le Mépris. O que ela quer de nós nos anos 2000?
Kill Bill é a história de uma garota vestida de couro que roda de moto e maneja o sabre. Eis a figura da nova
mulher. Tarantino mostra uma mulher que se apropriou da arma dos homens. A arma dele é Uma Thurman,
encarnação da nova mulher do século XXI. Diante dessa arma hipermoderna, todos os homens chamam-se
Bill. Não os idiotas: os homens desarmados. Uma nova figura do homem se esboça: um homem a serviço do
gozo das mulheres. Em Kill Bill, Beatrix ainda espera alguma coisa; em Death Proof, as garotas não esperam
mais nada, elas dizem sim ou não, vem ou cai fora. São elas que comandam. Tudo o que uma garota espera
de um rapaz é precisamente o que Butterfly diz a Dov: “Você tem dois trabalhos: beijar-me bem e manter
meus cabelos secos”. O homem não é mais o portador de sabre, é um portador de guarda-chuva.
1 Lacan, Jaques. O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p. 68.

Tradução: Marcela Antelo (AMP/EBP)
Revisão: Elisa Monteiro (AMP/EBP)

domingo, 18 de agosto de 2013

Diário do Povo (01/08/2013)


A visita de Marcelo Veras, psicanalista e Diretor da EBP, à Teresina e ao CEPP foi destaque nos jornais do Piauí. É a psicanálise se movimentando em nosso Estado.