Sabrina Gomes Camargo
Psicóloga, Especialização em Teoria da Clínica Psicanalítica – UFBA
Mestrado pelo Departamento de psicanálise da Universidade de Paris VIII
camargosabrina@uol.com.br
Introdução
Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS)1 estimam que aproximadamente 121 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de depressão. Esta doença é o principal motivo de afastamento do trabalho e sua alta incidência acarreta um problema de saúde pública.
Diante desses números, vemos surgir, cada vez mais, medidas preventivas no intuito de alertar a população para o problema. E é neste contexto que assistimos à deflagração de uma maciça campanha que se estende a todos os meios de comunicação da França. Especificamos a França porquanto tivemos a oportunidade de presenciar, recentemente, a luta que se trava entre o Estado, através do Ministério da Saúde, os profissionais e demais órgãos de saúde, as indústrias farmacêuticas e os meios de comunicação deste país. Entretanto, a distância geográfica que existe entre o novo e o velho continente não nos torna, a nós, população brasileira, menos imune a esta batalha, que também começa a se instalar implícita e vagarosamente em nosso meio (OMS, 2000).
Propagandas veiculadas na televisão e no rádio e nada menos que a tiragem gratuita de um milhão de exemplares do mais novo guia sobre a depressão conformam o cenário com o qual nos deparamos. Em todos esses contextos, a mensagem é a mesma: a depressão é um problema, um déficit do organismo que revela o mau funcionamento cerebral que, por sua vez, influencia no comportamento, devendo, e rapidamente, ser solucionado.
É exatamente em termos deste sintagma ‘problema-solução’ que o tratamento da depressão ganha terreno e vem sendo estudado pela ciência neurofarmacológica. Os medicamentos antidepressivos são vendidos em grande escala, pois, na cultura atual não há espaço para os tristes, desiludidos, desesperançados. Não há lugar para o menos. É então necessário arrancar o mal pela raiz e nada mais justo que seja de forma ‘indolor’, através das famosas pílulas da felicidade. Nesta abordagem, o olhar que deveria ser dirigido ao sujeito volta-se para uma disfunção (neuronal, por exemplo). Os sujeitos são enquadrados em estudos, em cinco ou mais sintomatologias do CID 10 ou do DSM IV, abolindo-se toda e qualquer possibilidade de expressão de singularidade.
Trata-se não apenas do culto ou do fetiche ao número, mas de uma colagem massiva a um significante que é impróprio, pois, além de não dar conta de toda uma gama de múltiplas manifestações afetivas do humano, o significante ‘depressão’ não é próprio do sujeito, mas uma atribuição do Outro.
É diante deste cenário atual que nos propusemos desenvolver este ensaio. Para tanto, permitimo-nos tomar, como exemplo, o guia2 que acaba de ser publicado na França sobre a depressão, com o objetivo de analisar as dimensões do discurso aí contido e dos seus efeitos sobre a subjetividade.
Tristeza ou Depressão?
Este subtítulo é um empréstimo que fizemos com tradução livre do guia sobre a depressão. A primeira parte do manual se intitula “Déprime ou Dépression: ne pas confondre”. Tomamos déprime como um estado equivalente ao da tristeza, e dépression como a doença, propriamente falando, em conformidade com o guia.
Numa análise (Chazaud, 1989) desses termos em francês, vemos que ambos, déprime e dépression, constituem um mesmo campo semântico, sendo que sua diferença reside apenas em relação ao registro em que ocorrem, ou seja, o primeiro numa linguagem mais íntima e familiar, e o segundo numa situação mais solene e formal.
No guia francês, déprime equivale, em termos gerais, ao estado de tristeza ocasional, passageira, ao passo que dépression representa um estado patológico que exige tratamento e cujos medicamentos seriam os melhores combatentes. Acreditamos que a problemática maior está na maneira como o guia trata a tristeza ocasional, como algo que precisa ser observado atentamente, pois a persistência deste estado por dois ou mais meses é sinal de uma depressão, corroborando a mesma idéia do CID 10 ou do DSM IV.
É nesse quadro que o uso de antidepressivos tem se difundido numa escala nunca antes vista. A tristeza normal do luto é tratada da mesma maneira que a dor moral da melancolia, sem nenhuma distinção.
Recentemente, Miller (2007a) publicou um texto apresentando os perigos da “medicalização da tristeza”, verificando que momentos de baixa estima e de tristeza são absolutamente normais nos seres humanos. Segundo o autor, o que antes era sentido como um mal-estar, fadiga, ou ansiedade, é hoje considerado como doença. Qualquer reação do corpo ante um desconforto, ou a angústia frente a uma situação com todos os sinais daí advindos podem ser interpretadas como uma doença. Como tal, precisa ser rapidamente tratada, não permitindo espaço para o desejo que se instaura com a falta. É uma forma de suprimir, de abolir o sujeito do inconsciente, que insiste em reaparecer.
Na nossa cultura atual não há espaço para o tristonho. Este geralmente é rotulado como o ‘baixo-astral’, o desanimado, aquele que sempre está de ‘mal com o mundo’. Esta mesma sociedade que o produz também o rejeita a partir do momento em que impera a necessidade de ser feliz. Mais que um estado, a felicidade estatui-se como condição do ser vivente.
Sim, hoje é preciso ser feliz. Tudo está ao alcance, não há mais distâncias, as barreiras foram suprimidas e tudo parece mais frouxo, mais elástico. Diante do fácil acesso a tudo, não há espaço para o fraco. Todos estão aí para chamar a atenção: “mas você tem tudo, por que está assim?”. O controle social parece cada vez mais atento e vigilante aos que se excetuam ao padrão exigido.
Por detrás de tudo isso, cresce o poder das indústrias farmacêuticas. É o que Foucault (apud MILLER, 2007b) demonstrou através do conceito de biopoder: o poder que se exerce sobre os corpos, através das medicações, dos horários, das normas, disciplinando-os e docilizando-os. Os órgãos públicos de saúde responsáveis pelo ‘bem-estar’, em busca de uma melhor qualidade de vida para a população e, através de uma política higienista e protética, ou seja, de adequação do que é inconforme com a norma, controlam a vida social dos sujeitos através de estudos, comparações e dados estatísticos.
Vive-se o presente, enquanto passado e futuro são anulados. O que importa é a urgência, a imediatez. Acredita-se em achar soluções rápidas para todos os problemas, tão rápidas que não permitem qualquer elaboração subjetiva. Ao desamparo do sujeito não é dirigido nenhum olhar, nem à sua responsabilidade face ao seu mal-estar. É uma clínica submetida ao medicamento, que não coincide e nem tem a ver com o tempo do sujeito.
Para Milner (1995), o que resulta de tudo isso é o aparecimento de um sujeito sem substância, sem consistência e sem predicados. Um sujeito esvaziado de toda e qualquer subjetividade, comandado por um único significante.
A esta colagem imaginária soma-se a fragilidade do registro simbólico, que expõe a condição do sujeito sem amarras, face ao gozo mortificador do Outro, numa realidade fragmentada e extremamente precária.
Depressão: uma impropriedade significante
Em nosso meio lingüístico, em sua grande variedade geográfica e social, os termos tristeza e depressão co-ocorrem em muitos contextos, em diferentes registros, quer no meio médico, por exemplo, quer no uso corrente, de forma indiscriminada, embora verifiquemos que, na linguagem coloquial, o termo depressão é empregado com maior freqüência, talvez para dar ênfase aos estados de desânimo ou mesmo de insatisfação do sujeito. A tristeza não parece avultar no discurso daquele que a carrega, daí o apelo significante que fazem os sujeitos dos nossos dias em aumentar a carga semântica dos termos já tão combalidos pelo uso.
Diariamente, nos deparamos em nossos ambientes de trabalho com sujeitos em estado de sofrimento, totalmente identificados a diagnósticos atribuídos por médicos, colegas de trabalho, balconistas de farmácias e testes de revistas. Pessoas que não se permitem sentir um mínimo sinal de tristeza e desconforto. Que não se autorizam a ouvir o seu corpo e que, ao menor mal-estar sentido, já começam sua busca desenfreada por medicamentos que aliviem suas dores e aflições.
A tristeza deixou de fazer parte do vocabulário corrente, cedendo espaço para a depressão, cada vez mais amplamente utilizada. O que leva as pessoas a querer estar nesse lugar, o do deprimido?
Na leitura que propomos, a hipótese é de que, cada vez mais, a palavra tristeza parece não dar conta de um estado de desconforto e desamparo, como se não fosse apropriada e demonstrasse total incapacidade de bem precisar o mal-estar. Diante da intensidade dos sentimentos, o termo tristeza se torna vazio demais para absorvê-los. Por isso, o uso indiscriminado do termo depressão parece não só ser capaz de nomear a fadiga, o desânimo, o desamparo, como também de incluir aqueles que o empregam em uma determinada série.
Em outras palavras, enquanto se reduz a carga semântica da palavra tristeza por não conseguir expressar o mais profundo sentimento de solidão, deflacionando-a de sentido, por um lado, maximiza-se, infla-se, por outro, o significado da palavra depressão, ‘única’ capaz de magnificar a dor, o sofrimento e a piedade, como se somente este termo fosse capaz de dar sentido ao já sem-sentido. É uma tentativa de dar conta de uma realidade fragmentada, de dar conta daquilo que dói, que faz sofrer, que tortura pela presença, uma maneira de tentar nomear o inominável.
A partir do momento em que o sujeito atrela-se a este significante, ele tem a ilusória sensação de tudo resolver. Apesar de estar com depressão, há remédios para isso. E, felizmente, crê ele, encontrou o diagnóstico para aquele choro sem sentido! O sujeito, antes à margem, encontra agora seu grupo, o dos adoecidos, uns mais, outros menos, mas todos debaixo do mesmo significante!
Entretanto, este significante depressão, que parecia ter resolvido tudo, também ele se mostra falho, tal como a tristeza. Ele também não vai conseguir dar conta dos sentimentos que continuarão a aflorar no sujeito, a despeito das doses mais extensas de medicamentos, além de não ter conexão de pertença com o próprio sujeito, que dele se apropria como remendo, prótese significante.
O imperativo da indústria farmacêutica – “Consuma! As pílulas da felicidade estão aí!”, estimulado pela indústria televisiva, radiofônica, impressa (a exemplo do guia francês) corrobora a tese de que há solução, basta seguir o tratamento.
A identificação ao significante depressão exclui o sujeito, tamponando a falta e fazendo crer que agora tudo está bem. Contudo, dadas as suas condições estruturais, o significante é por natureza impróprio ou, em outras palavras, pela sua impropriedade, nenhum significante é suficiente para dizer do sujeito: algo escapa, algo sem sentido que o remédio não consegue curar. Voltam as dores, a angústia, o desânimo, e aquela agradável sensação de bem-estar e felicidade dá novamente lugar ao doloroso sentimento de incompletude.
Vive-se, constantemente, sob a hegemonia significante, na tentativa de massificar e equalizar os sujeitos. Porém, os corpos, de alguma forma, resistem a isto. E é sobre isso que escapa que a ciência não encontra explicação; é para este retorno no real que a clínica psicanalítica deve se voltar. Uma clínica da urgência e da emergência, eis o que caracteriza a sociedade atual, e sobre a qual urge uma posição.
Mas, e a quem recorrer?
Esta é uma pergunta presente em todos os guias e artigos educativos sobre a depressão. Com o objetivo de informar as pessoas e permitir-lhes cernir os seus sintomas, esses documentos destinam algumas páginas a informar quem são os profissionais capacitados a assegurar o tratamento terapêutico.
É interessante observar que no guia francês sobre a depressão o médico é o principal encarregado desta luta, visto que, e isto é bem enfatizado, é o único profissional qualificado para prescrever a medicação. Desde já vemos uma indistinção no tratamento: o medicamento é o primeiro instrumento terapêutico indicado, independente da intensidade e do teor dos sintomas. Posteriormente, vemos a indicação de um tratamento de psicoterapia baseado em testes e em questionários de personalidade. Estes, através de dados estatísticos e de gráficos, pregam que a mudança de comportamento e de atitudes de risco são as melhores armas frente ao desencadeamento e a progressão da depressão.
E a psicanálise? Bem, no guia em tela e na maioria dos panfletos educativos, ela está excluída, sumariamente, das condutas terapêuticas, e apenas intuída entre outras tantas possibilidades, de resto secundárias, às quais o “etc” remete. A psicanálise, a despeito das conquistas do campo freudiano nas terras gaulesas, é posta à margem, pura e simplesmente.
Entretanto, é sobre este sujeito, para o qual a ciência crê encontrar respostas e solucionar todos os males, que a psicanálise opera e aposta. É sobre este resto, este a que escapa da ciência, de um horizonte caracterizado pelo surgimento de novas patologias e por novas “formas aberrantes do gozo contemporâneo” (Cottet, 2005, p. 24), que a psicanálise tem se debruçado.
No texto célebre, “A ciência e a Verdade” (Lacan, 1965), Lacan, de forma primorosa, aborda a subtração do sujeito pela ciência, mostrando que, ao tentar dar conta de um todo de forma massificada, algo do sujeito escapa, não deixando de existir, fazendo-se aparecer e se contar no real. Esta foraclusão do sujeito pela ciência o expõe a uma angústia inefável, sem nomeação, presentificando no corpo aquilo que antes deveria estar inscrito na linguagem.
Resulta daí a presença de um mal-estar generalizado, da inflação de prescrições medicamentosas inúteis, da banalização das patologias graves e da superestimação dos mínimos sinais de desconforto.
Os psicanalistas dificilmente se colocam contra o uso de medicamentos. Mas é imprescindível que estes sejam utilizados de forma criteriosa, e segundo as indicações de cada caso. É importante que o sujeito não seja um número diluído na dosagem, mas que seja “reintroduzido” nesta prescrição. É aí que a psicanálise aposta, de que há um sujeito e não um doente, de que algo emerge, mesmo que tardiamente.
A psicanálise nos propõe o “dever ético de bem-dizer o desejo” (Lacan, 1973). Apostamos que somente a fala poderá amenizar os efeitos reais que surgem e devastam o campo da subjetividade humana. Há um saber que falta, que impulsiona a articulação de novos significantes desconhecidos e que são capazes de permitir ao sujeito reatar o laço social fragmentado.
Numa era em que a tristeza e a depressão são tratadas rápida e indistintamente, em que o sem-sentido, embora ignorado, insiste em emergir, o sujeito atual mostra seu desamparo. Assim como a palavra tristeza já não é mais capaz de bem-precisar os estados de desânimo, de cansaço e de fadiga, acreditamos que num futuro muito próximo o termo depressão também estará neste mesmo patamar, cada vez menos dando conta do mal-estar. Poderíamos antever uma fossilização do termo depressão e o surgimento cada vez maior de novos nomes, métodos e tratamentos que insistem em dar conta do que surge no real e devastam o campo da subjetividade.
Notas
1.
Depression. In. Organização Mundial de Saúde. Disponível em http://www.who.int/mental_health/management/depression/definition/en/. Acesso em: 22 dez. 2007.
2.
La dépression: en savoir plus pour en sortir. Disponível em www.info-depression.fr. Acesso em: 20 dez. 2007.
“Tristeza e depressão: não confundir”. Apesar de déprime e dépression serem sinônimos, no guia francês os termos são empregados com diferentes acepções, em função dos registros em que ocorrem.
Referências Bibliográficas
OMS (2000). Prevenção do Suicídio: Um manual para profissionais da saúde em atenção primária. In. Organização Mundial de Saúde. Disponível em http://www.who.int/mental_health/prevention/suicide/en/suicideprev_phc_port.pdfAcesso em: 05 jan. 2008.
CHAZAUD, H. B. du. Le Robert. Dictionnaire des Synonymes. Paris: Les Usuels, 1989.
COTTET, S. Efeitos terapêuticos na clínica psicanalítica contemporânea. In. COELHO DOS SANTOS, T. (Org). Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada, Rio de Janeiro: Contracapa, 2005.
MILLER, J.-A. (2007a) Tout le monde passe par des états d’humeur dépressifs. Disponível em www.forumpsy.org. Acesso em: 18 dez. 2007.
_______. (2007b) Entretien à Jacques-Alain Miller. Disponível em http://www.cifpr.fr/+Si-la-tristesse-est-une-maladie. Acesso em: 20 dez. 2007.
MILNER, J.-C. (1995) L’oeuvre claire: Lacan, la science et la philosophie, Paris: Seuil, 1995.
LACAN, J. (1965) La science et la vérité. In. Écrits II. Édition de Poche, Paris: Seuil, 1999. p. 335-358.
_______. Télévision (1973), Paris: Éditions du Seuil, 1974.
domingo, 28 de dezembro de 2008
O SABER DO PSICANALISTA: A VIZINHANÇA COM A CIÊNCIA E A RELIGIÃO
Tania Coelho dos Santos
taniacs@openlink.com.br
O momento do fechamento de mais um número de aSEPHallus é sempre uma grande satisfação. Sem a intensa dedicação de Rosa Guedes e Fabiana Mendes, essa teria sido uma tarefa interminável. A elas, meus agradecimentos.
O tema desse número surgiu ao longo da leitura do Seminário XVI, de Jacques Lacan, De um Outro ao outro. Cada um dos artigos escolhidos aborda a especificidade do Outro da psicanálise. O saber do psicanalista desliza entre as estreitas margens do Deus da religião e do Deus da ciência. Lacan a define assim: “a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem palavras” (1968-69, p. 11), evocando, simultaneamente, o saber altamente formalizado da ciência e o saber revelado da religião.
Pierre-Gilles Guéguen, sobre o Seminário XVI, desenvolve um comentário acerca do deslocamento desde Descartes até Pascal, que vai permitir que Lacan redefina o seu conceito de Outro. O Outro não é somente incompleto, um sujeito suposto saber, como em Descartes. O Outro de Pascal é inconsistente, está em todo lugar e em lugar nenhum. Ele não existe e, sobre isto, cada um precisa fazer a sua aposta. É a aposta, o ato do sujeito, sua fé, que faz existir o Outro e não o saber.
O fato de que o Outro da psicanálise funda-se, tal como na religião, no ato de fé, indica uma analogia possível entre a confissão religiosa e a que é feita na sessão analítica? José Martinho mostra que o enquadramento estrutural das duas práticas difere. A confissão religiosa é um laço social antigo, formado a partir do discurso do mestre. O que se passa numa análise depende, exclusivamente, da emergência do discurso do analista. Diferentemente do que acontece no ato de fala - que se realiza no confessionário - a interpretação analítica daquilo que o sujeito confessa, permite que ele se responsabilize pelo seu fantasma. Não se trata de uma responsabilidade natural ou jurídica, mas da responsabilidade pelo sentido gozado que desacredita a ilusão religiosa.
O tema da responsabilidade pelo gozo, mais além do saber, é abordado por Diana Paulosky. Mostra que, se certos tipos de laços são normais porque são próprios de uma época, isso não justifica que o sujeito possa isentar-se do peso da responsabilidade pela escolha de um tipo de laço em detrimento de outro. Os laços mais universais ou típicos dependem, para constituir-se, de uma escolha particular de objeto, onde se localiza a responsabilidade que cada sujeito tem sobre seu gozo.
Saber e crença, ou responsabilidade subjetiva, não podem ser dissociados. Rosa Guedes Lopes conclui, em sua tese de doutorado, que é o desejo do analista que sustenta esse enlaçamento. A noção de desejo do analista, introduzida por Lacan em 1958, depende de dois axiomas. O primeiro define o sujeito da psicanálise como equivalente ao sujeito da ciência. O segundo define o fazer do psicanalista como o de reintroduzir o Nome-do-Pai na consideração científica. A autora apresenta sua tese de que o discurso do analista é a formalização lógica e resumida do desejo do analista. Além disso, mostra que o discurso do analista atualiza o debate de Freud com a ciência e formaliza a ação do psicanalista no mundo. Conclui que o aspecto mais essencial ao debate da psicanálise com a ciência resulta da introdução do termo desejo do analista.
François Leguil, sobre as origens do desejo do analista, recorda que, muito antes da invenção da psicanálise, Freud já advertia seus colegas de que o abandono, clínico e epistemológico, da consideração pelos poderes da palavra, custaria muito caro no futuro. Embora ele tenha tratado relativamente pouco da medicina propriamente dita, endereçou-se muitas vezes aos médicos. O autor lança uma tese original e muito profícua. Acredita que se pode, talvez, até demonstrar que o verdadeiro médico para Freud é o psicanalista.
É precisamente isso que podemos depreender do desafio lançado por Jorge Forbes às pesquisas em genética. Os avanços nesse campo permitem conhecer e, por conseguinte, comunicar a um paciente um prognóstico científico anunciando-lhe uma doença futura. O prognóstico antecipa o sofrimento e a hipótese ousada do autor é que ele facilita, por esta antecipação, o progresso da doença anunciada. O desejo do analista revela, então, sua potência. Perante as famílias dos futuros doentes, o analista interpreta a resignação e a compaixão menos como virtudes religiosas e muito mais como pecado, do vício, da acomodação indiferente que congela a situação em um dueto dor-piedade. O ato do analista consiste desautorizar o sofrimento padronizado.
Que propriedades têm a interpretação do analista? Como é que essa virtude se transmite? Antônio Márcio Teixeira mostra que a interpretação psicanalítica é necessária, pois é restrita a uma situação clínica singular e não está, por isso, aberta a todos os sentidos. Se, ao final, uma análise deve produzir um analista, pode-se falar de uma transmissão da virtude interpretativa? Em 1964, Lacan definiu a virtude como acesso a uma verdade pontual, diferente da verdade científica, por ser anterior à constituição do saber. A verdade que a interpretação analítica deve revelar é o objeto a, causa do desejo, junção do verdadeiro com o real, que Lacan identifica ao ser do sujeito. O dizer da interpretação pode ser ensinado porque expõe a articulação do sujeito, efeito do dito, à estrutura da linguagem em que ele se significa. O mistério da relação necessária entre saber e responsabilidade é essa junção entre o verdadeiro e o real, o ser de objeto e o sujeito.
Esse ponto onde se dá essa junção é justamente o fantasma. Em seu artigo, Roberto Calazans, Fernanda Dupin Gaspar e Tiago Iwasawa Neves pretendem apontar como a disciplina auto-intitulada neuropsicanálise, devido ao seu viés cientificista, não consegue articular um conceito importante para a teoria e a clínica psicanalítica: o de fantasma. As definições propostas pelos neuropsicanalistas não integram o conceito de sexualidade em seus textos. É a partir da noção psicanalítica da sexualidade que somos necessariamente levados a pensar o fantasma, principalmente, no que se refere ao que este conceito aponta, tanto para o sujeito, quanto para a definição de campo de ação da psicanálise. Uma vez que se trata de um campo ético, não legitima a redução cientificista proposta pela dita neuropsicanálise.
A elisão pelo discurso pseudocientífico das organizações de saúde mental, da dimensão eminentemente ética do fantasma – onde desejo e gozo, saber e crença se depositam para um sujeito – é o tema do artigo de Sabrina Camargo. A autora questiona os efeitos sobre o sujeito do mais recente guia sobre a depressão, publicado e divulgado nos meios de comunicação da França. Fala-se de um aumento do número de casos de deprimidos e, medicamentos são prescritos em larga escala. O discurso oficial, em nome da ciência, contribui para difundir essa nova forma de mal-estar atual. Numa era dominada pela ciência tecnológica, quando o saber se dissocia progressivamente da crença, aumenta a experiência de desamparo dos sujeitos. A aposta da autora é reveladora do desejo do analista. Ela conclui que através da palavra, a psicanálise pode operar sobre o sujeito, levando-o a recuperar o laço social, em sua dimensão simbólica.
Na contramão do discurso oficial que elide a causalidade do sujeito, Jorge Luís Gonçalves dos Santos lembra que a operação significante dos sonhos indica a causa que compõe a estrutura do discurso psicanalítico. Destaca o paradoxo de que essa causa só pode ser definida como condição deste discurso no momento mesmo em que se dá o advento da ciência. A ciência inaugura o sujeito ao excluí-lo do procedimento científico. A verdade que escapa ao saber científico coloca-o permanentemente em questão. Os sonhos de angústia testemunham que a causa do desejo é um objeto logicamente impossível, irredutível aos objetos conhecidos no mundo. O trabalho desse autor, retomando a dimensão ética do sonho, vem somar-se às denúncias de que o discurso da ciência contemporânea desconhece a singularidade do saber e da responsabilidade em jogo no sofrimento subjetivo.
Maria Angélia Teixeira analisa a experiência subjetiva da violência na contemporaneidade, revelando sua dependência do discurso do capitalista. Baseada em sua tese de doutorado, toma a violência contemporânea como um índice da mutação subjetiva produzida pelo discurso capitalista. O sujeito produzido pelo discurso do capitalismo foi esvaziado de seu saber e de sua responsabilidade singular. A autora pergunta-se sobre o poder de intervenção do discurso psicanalítico nas novas formas da violência, uma vez que extravasam os limites do mal-estar na civilização. A violência produzida pelo discurso da tecnociência capitalista nos exigiria, como ela propõe, uma nova leitura da causalidade em jogo no desarranjo dos laços sociais. Neste artigo, somos convocados a responder a contundente questão: quando o saber e o gozo não se enodam no fantasma singular, com que estratégias o desejo do analista e seu discurso podem ainda operar?
Jésus Santiago prolonga a interrogação suscitada pelo artigo precedente. Sabemos que um dos efeitos mais sensíveis do discurso do capitalismo é o fenômeno subjetivo que o autor nomeia como presentismo. Esse fenômeno é um dos modos pelos quais podemos captar a condensação do tempo num eterno presente. O enlace fantasmático, singular, entre saber e crença, sobreviveria a essa redução temporal? O chamado “presentismo”, com suas operações narrativas próprias, não acarretaria conseqüências pouco favoráveis para a instalação do laço transferencial? O autor observa que o historiador, atento aos estilos de vida atuais, verifica o crescimento de uma categoria do presente invasiva, maciça e onipresente. Isto mostra que a experiência do tempo, nas distintas épocas históricas, não é única e nem homogênea. A formidável transformação que se opera sobre a cena das sociedades tecnificadas e opulentas – com a ênfase, cada vez mais acentuada, no mercado, na eficácia técnica e nas mais diversas formas de consumo – promoveu a erradicação das grandes utopias futuristas, ainda presentes em um passado recente.
A redução do Outro - que em nosso passado religioso tinha a forma do ideal – ao outro – que em nosso presente se condensa nas formas metonímicas do objeto de consumo - nos desafia a renovar os poderes da palavra e do ato do analista. Parafraseando Jacques-Alain Miller, à medida que os avanços do capitalismo nos obrigam a abrir mão da hipótese Nome-do-Pai, do sujeito suposto saber, de Deus, talvez, mais do que nunca, não possamos mais prescindir do desejo do analista.
O tema do próximo congresso, que vai se dar em Buenos Aires em abril, tem relação com o tema desse numero de aSEPHallus: os objetos a na experiência analítica. Em atualidades, eu comento uma pontuação de Jacques-Alain Miller, quando nos propôs esse tema. Em meu pequeno texto, trato desse pequeno excerto: “E falaremos também do analista. Se o analista pode ser assimilado ao objeto a é na qualidade de causa de uma análise e por ele ter revogado o desconhecimento do objeto a, no caso, o desconhecimento de seu ato”.1
Nota
1.
Ref.: Miller, J.-A. Os objetos a na experiência analítica. In: Opção Lacaniana, n. 46. São Paulo: Eólia, 2007, p. 30-34.
taniacs@openlink.com.br
O momento do fechamento de mais um número de aSEPHallus é sempre uma grande satisfação. Sem a intensa dedicação de Rosa Guedes e Fabiana Mendes, essa teria sido uma tarefa interminável. A elas, meus agradecimentos.
O tema desse número surgiu ao longo da leitura do Seminário XVI, de Jacques Lacan, De um Outro ao outro. Cada um dos artigos escolhidos aborda a especificidade do Outro da psicanálise. O saber do psicanalista desliza entre as estreitas margens do Deus da religião e do Deus da ciência. Lacan a define assim: “a essência da teoria psicanalítica é um discurso sem palavras” (1968-69, p. 11), evocando, simultaneamente, o saber altamente formalizado da ciência e o saber revelado da religião.
Pierre-Gilles Guéguen, sobre o Seminário XVI, desenvolve um comentário acerca do deslocamento desde Descartes até Pascal, que vai permitir que Lacan redefina o seu conceito de Outro. O Outro não é somente incompleto, um sujeito suposto saber, como em Descartes. O Outro de Pascal é inconsistente, está em todo lugar e em lugar nenhum. Ele não existe e, sobre isto, cada um precisa fazer a sua aposta. É a aposta, o ato do sujeito, sua fé, que faz existir o Outro e não o saber.
O fato de que o Outro da psicanálise funda-se, tal como na religião, no ato de fé, indica uma analogia possível entre a confissão religiosa e a que é feita na sessão analítica? José Martinho mostra que o enquadramento estrutural das duas práticas difere. A confissão religiosa é um laço social antigo, formado a partir do discurso do mestre. O que se passa numa análise depende, exclusivamente, da emergência do discurso do analista. Diferentemente do que acontece no ato de fala - que se realiza no confessionário - a interpretação analítica daquilo que o sujeito confessa, permite que ele se responsabilize pelo seu fantasma. Não se trata de uma responsabilidade natural ou jurídica, mas da responsabilidade pelo sentido gozado que desacredita a ilusão religiosa.
O tema da responsabilidade pelo gozo, mais além do saber, é abordado por Diana Paulosky. Mostra que, se certos tipos de laços são normais porque são próprios de uma época, isso não justifica que o sujeito possa isentar-se do peso da responsabilidade pela escolha de um tipo de laço em detrimento de outro. Os laços mais universais ou típicos dependem, para constituir-se, de uma escolha particular de objeto, onde se localiza a responsabilidade que cada sujeito tem sobre seu gozo.
Saber e crença, ou responsabilidade subjetiva, não podem ser dissociados. Rosa Guedes Lopes conclui, em sua tese de doutorado, que é o desejo do analista que sustenta esse enlaçamento. A noção de desejo do analista, introduzida por Lacan em 1958, depende de dois axiomas. O primeiro define o sujeito da psicanálise como equivalente ao sujeito da ciência. O segundo define o fazer do psicanalista como o de reintroduzir o Nome-do-Pai na consideração científica. A autora apresenta sua tese de que o discurso do analista é a formalização lógica e resumida do desejo do analista. Além disso, mostra que o discurso do analista atualiza o debate de Freud com a ciência e formaliza a ação do psicanalista no mundo. Conclui que o aspecto mais essencial ao debate da psicanálise com a ciência resulta da introdução do termo desejo do analista.
François Leguil, sobre as origens do desejo do analista, recorda que, muito antes da invenção da psicanálise, Freud já advertia seus colegas de que o abandono, clínico e epistemológico, da consideração pelos poderes da palavra, custaria muito caro no futuro. Embora ele tenha tratado relativamente pouco da medicina propriamente dita, endereçou-se muitas vezes aos médicos. O autor lança uma tese original e muito profícua. Acredita que se pode, talvez, até demonstrar que o verdadeiro médico para Freud é o psicanalista.
É precisamente isso que podemos depreender do desafio lançado por Jorge Forbes às pesquisas em genética. Os avanços nesse campo permitem conhecer e, por conseguinte, comunicar a um paciente um prognóstico científico anunciando-lhe uma doença futura. O prognóstico antecipa o sofrimento e a hipótese ousada do autor é que ele facilita, por esta antecipação, o progresso da doença anunciada. O desejo do analista revela, então, sua potência. Perante as famílias dos futuros doentes, o analista interpreta a resignação e a compaixão menos como virtudes religiosas e muito mais como pecado, do vício, da acomodação indiferente que congela a situação em um dueto dor-piedade. O ato do analista consiste desautorizar o sofrimento padronizado.
Que propriedades têm a interpretação do analista? Como é que essa virtude se transmite? Antônio Márcio Teixeira mostra que a interpretação psicanalítica é necessária, pois é restrita a uma situação clínica singular e não está, por isso, aberta a todos os sentidos. Se, ao final, uma análise deve produzir um analista, pode-se falar de uma transmissão da virtude interpretativa? Em 1964, Lacan definiu a virtude como acesso a uma verdade pontual, diferente da verdade científica, por ser anterior à constituição do saber. A verdade que a interpretação analítica deve revelar é o objeto a, causa do desejo, junção do verdadeiro com o real, que Lacan identifica ao ser do sujeito. O dizer da interpretação pode ser ensinado porque expõe a articulação do sujeito, efeito do dito, à estrutura da linguagem em que ele se significa. O mistério da relação necessária entre saber e responsabilidade é essa junção entre o verdadeiro e o real, o ser de objeto e o sujeito.
Esse ponto onde se dá essa junção é justamente o fantasma. Em seu artigo, Roberto Calazans, Fernanda Dupin Gaspar e Tiago Iwasawa Neves pretendem apontar como a disciplina auto-intitulada neuropsicanálise, devido ao seu viés cientificista, não consegue articular um conceito importante para a teoria e a clínica psicanalítica: o de fantasma. As definições propostas pelos neuropsicanalistas não integram o conceito de sexualidade em seus textos. É a partir da noção psicanalítica da sexualidade que somos necessariamente levados a pensar o fantasma, principalmente, no que se refere ao que este conceito aponta, tanto para o sujeito, quanto para a definição de campo de ação da psicanálise. Uma vez que se trata de um campo ético, não legitima a redução cientificista proposta pela dita neuropsicanálise.
A elisão pelo discurso pseudocientífico das organizações de saúde mental, da dimensão eminentemente ética do fantasma – onde desejo e gozo, saber e crença se depositam para um sujeito – é o tema do artigo de Sabrina Camargo. A autora questiona os efeitos sobre o sujeito do mais recente guia sobre a depressão, publicado e divulgado nos meios de comunicação da França. Fala-se de um aumento do número de casos de deprimidos e, medicamentos são prescritos em larga escala. O discurso oficial, em nome da ciência, contribui para difundir essa nova forma de mal-estar atual. Numa era dominada pela ciência tecnológica, quando o saber se dissocia progressivamente da crença, aumenta a experiência de desamparo dos sujeitos. A aposta da autora é reveladora do desejo do analista. Ela conclui que através da palavra, a psicanálise pode operar sobre o sujeito, levando-o a recuperar o laço social, em sua dimensão simbólica.
Na contramão do discurso oficial que elide a causalidade do sujeito, Jorge Luís Gonçalves dos Santos lembra que a operação significante dos sonhos indica a causa que compõe a estrutura do discurso psicanalítico. Destaca o paradoxo de que essa causa só pode ser definida como condição deste discurso no momento mesmo em que se dá o advento da ciência. A ciência inaugura o sujeito ao excluí-lo do procedimento científico. A verdade que escapa ao saber científico coloca-o permanentemente em questão. Os sonhos de angústia testemunham que a causa do desejo é um objeto logicamente impossível, irredutível aos objetos conhecidos no mundo. O trabalho desse autor, retomando a dimensão ética do sonho, vem somar-se às denúncias de que o discurso da ciência contemporânea desconhece a singularidade do saber e da responsabilidade em jogo no sofrimento subjetivo.
Maria Angélia Teixeira analisa a experiência subjetiva da violência na contemporaneidade, revelando sua dependência do discurso do capitalista. Baseada em sua tese de doutorado, toma a violência contemporânea como um índice da mutação subjetiva produzida pelo discurso capitalista. O sujeito produzido pelo discurso do capitalismo foi esvaziado de seu saber e de sua responsabilidade singular. A autora pergunta-se sobre o poder de intervenção do discurso psicanalítico nas novas formas da violência, uma vez que extravasam os limites do mal-estar na civilização. A violência produzida pelo discurso da tecnociência capitalista nos exigiria, como ela propõe, uma nova leitura da causalidade em jogo no desarranjo dos laços sociais. Neste artigo, somos convocados a responder a contundente questão: quando o saber e o gozo não se enodam no fantasma singular, com que estratégias o desejo do analista e seu discurso podem ainda operar?
Jésus Santiago prolonga a interrogação suscitada pelo artigo precedente. Sabemos que um dos efeitos mais sensíveis do discurso do capitalismo é o fenômeno subjetivo que o autor nomeia como presentismo. Esse fenômeno é um dos modos pelos quais podemos captar a condensação do tempo num eterno presente. O enlace fantasmático, singular, entre saber e crença, sobreviveria a essa redução temporal? O chamado “presentismo”, com suas operações narrativas próprias, não acarretaria conseqüências pouco favoráveis para a instalação do laço transferencial? O autor observa que o historiador, atento aos estilos de vida atuais, verifica o crescimento de uma categoria do presente invasiva, maciça e onipresente. Isto mostra que a experiência do tempo, nas distintas épocas históricas, não é única e nem homogênea. A formidável transformação que se opera sobre a cena das sociedades tecnificadas e opulentas – com a ênfase, cada vez mais acentuada, no mercado, na eficácia técnica e nas mais diversas formas de consumo – promoveu a erradicação das grandes utopias futuristas, ainda presentes em um passado recente.
A redução do Outro - que em nosso passado religioso tinha a forma do ideal – ao outro – que em nosso presente se condensa nas formas metonímicas do objeto de consumo - nos desafia a renovar os poderes da palavra e do ato do analista. Parafraseando Jacques-Alain Miller, à medida que os avanços do capitalismo nos obrigam a abrir mão da hipótese Nome-do-Pai, do sujeito suposto saber, de Deus, talvez, mais do que nunca, não possamos mais prescindir do desejo do analista.
O tema do próximo congresso, que vai se dar em Buenos Aires em abril, tem relação com o tema desse numero de aSEPHallus: os objetos a na experiência analítica. Em atualidades, eu comento uma pontuação de Jacques-Alain Miller, quando nos propôs esse tema. Em meu pequeno texto, trato desse pequeno excerto: “E falaremos também do analista. Se o analista pode ser assimilado ao objeto a é na qualidade de causa de uma análise e por ele ter revogado o desconhecimento do objeto a, no caso, o desconhecimento de seu ato”.1
Nota
1.
Ref.: Miller, J.-A. Os objetos a na experiência analítica. In: Opção Lacaniana, n. 46. São Paulo: Eólia, 2007, p. 30-34.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2008
Psicanálise e Felicidade em Tempos de Crise
PSICANÁLISE E FELICIDADE EM TEMPOS DE CRISE
FABIOLA RAMON
COLABORAÇÃO PARA FOLHA, EM PARIS
Um dos principais nomes da psicanálise mundial, o francês Éric Laurent, discípulo direto de Jacques Lacan (1901-1981), defende que o método criado por Freud “é um discurso de crise, não de conformismo” e, por isso, ao contrário do que dizem seus detratores, está vivo, se contrapõe à febre dos medicamentos tarja preta e pode ajudar os indivíduos a atravessar o atual momento de instabilidade do mundo. Segundo ele, enfrentamos “a maior crise desde 1929, na qual se revela a mentira da civilização que nos dizia que tudo estava em ordem, que havia governantes sábios que cuidavam de todos, que os mercados permitiriam uma aposentadoria feliz”.
Laurent, que participou da fundação da École de la Cause Freudienne, em Paris, nos anos 80, e é autor de vários livros, entre eles, "Sociedade do Sintoma" (ed. Contracapa, 2007), denuncia o que chama de “medicalização da existência”, mas admite que um tratamento analítico de longa duração não é indicado para todos e aponta a necessidade de a psicanálise estar atenta às transformações do século 21.
Leia a seguir a entrevista concedida à Folha em seu consultório em Paris:
A psicanálise ficou conhecida como um método longo e caro. Em um mundo que demanda respostas rápidas e tratamentos breves, ela não está fadada ao fracasso?
Ela não estabelece prazos, é uma maneira de se refletir sobre a vida e os impasses da existência, vai além de um tratamento. Após a Primeira Guerra Mundial, em 1918, percebendo que o conflito havia arruinado a Europa, Freud propôs a abertura de centros psicanalíticos gratuitos. Concomitante a isso, houve a disseminação da idéia de que somente a burguesia podia pagar uma análise. Ainda hoje percebemos esses dois movimentos: tratamentos que se endereçam à classe média, quando se busca um psicanalista em um consultório é fácil encontrar um, e centros de atendimento gratuitos, aos quais as pessoas podem recorrer nos momentos de instabilidade dos laços sociais. É preciso questionar a idéia de que a psicanálise é um tratamento longo e caro. Ela é uma aventura pessoal, deve ser vista como as histórias de amor, que podem ser rápidas e múltiplas, ou aventuras mais longas, nas quais o objetivo é mudar o estado das coisas no interior de si mesmo. Assim é a psicanálise: a cura como aventura pessoal.
Muito se diz que a psicanálise está em crise. O que ela pode oferecer, então?
A psicanálise pode ser algo útil às pessoas decepcionadas com fabricantes e vendedores de felicidade. A única dignidade dela é estar em crise desde sempre. É um discurso de crise, e não de conformismo, conforto e tranqüilidade. Estamos atravessando a maior crise desde 1929, na qual se revela a mentira da civilização que nos dizia que tudo estava em ordem, que havia governantes sábios que cuidavam de todos, que os mercados permitiriam uma aposentadoria feliz. São momentos nos quais a angústia nos atravessa e nos remete a escolhas e a saber o que nós queremos para o futuro. O século 21 será apaixonante, sem dúvida tão terrível quanto os anteriores, mas, de uma maneira nova. Será necessário estar atento a essas novidades. A psicanálise deve ajudar a compreendê-las.
Por que hoje há uma busca desenfreada e imediata pela felicidade?
Todo mundo quer ser feliz. Essa é uma demanda que se tornou legítima após o iluminismo, quando, contrariamente à religião, o próprio pensamento abriu a possibilidade de uma felicidade terrestre, e não somente uma salvação eterna. O primeiro estado moderno, os EUA, incluiu na sua constituição a busca da felicidade como um pedido legítimo. Entretanto, conhecemos ao longo desses dois séculos diferentes atitudes para entender porque é que os humanos não a encontram. Uma delas é: “porque as pessoas têm maus hábitos, vamos mudar seus comportamentos”, abordagem difundida pelo comportamentalismo desde 1950, com Skinner, que explicava que a liberdade é um luxo que a humanidade não pode ter, pois se as pessoas fazem o que querem, elas terão maus hábitos.
Isso aconteceu ao mesmo tempo em que se realizava o comunismo, que queria mudar os comportamentos e proporcionar a felicidade ao homem novo. Ambos configuraram uma gestão autoritária das atitudes em nome do bem-estar.
Nos anos 60, ao contrário, houve uma liberação e a rejeição à servidão autoritária. Atualmente, há um retrocesso, que busca mudar atitudes com a volta da burocracia sanitária. Donde a idéia da gestão de populações: câmeras de vigilância, identidade biométrica, isso é um sonho para um administrador. Com o melhor conhecimento e mapeamento da população, podemos enquadrar as pessoas em categorias de gênero, idade, raça, etc.
O que o senhor entende por “medicalização da existência”?
Michel Foucault mostrou que a medicina contemporânea trata populações. Ela não trata mais um por um, como era no século 19. Hoje, ela é “baseada em evidências” e fundamenta-se em estatísticas para produzir categorias homogêneas. Nesse modelo é necessário desconsiderar a particularidade dos casos, o que combina com a medicalização de toda a existência. Por exemplo, o comportamento no trânsito, a maneira de fumar, a forma do amor, com sexo ou não. São termos abordados como problemas epidemiológicos: o tabaco, a droga, a violência familiar, etc. Questões antes deixadas ao sistema jurídico, até então tidas como de ordem individual, são agora apropriadas pela gestão das populações e pela medicalização da existência.
E as doenças que crescem cada vez mais, como a depressão, por exemplo?
Desde que a medicina declarou que em uma população 25% de pessoas podem tornar-se deprimidas, colocou-se um problema de evolucionismo. Como a espécie humana pode sobreviver e conservar uma disposição fatal que faz com que um quarto das pessoas possam ter algo que as deixem deprimidas? Ou bem a categoria está superestimada, ou temos um problema, o que mostra o limite desta abordagem.
O senhor acha que há um abuso de medicação?
As pesquisas realizadas pelos laboratórios farmacêuticos indicam efeitos formidáveis das medicações. Por outro lado, estudos feitos por sistemas de saúde mostram o avesso disso, como o do National Institut of Menthal Health, nos EUA, que, no último publicado, apresentou que os anti-depressivos, na maioria das vezes, eram pouco superiores aos placebos. Algumas vezes eles atingem objetivos contrários. Então, coloca-se uma tarja preta na caixa alertando sobre os riscos. Sabemos também que os jovens que passam ao ato assassino nos EUA freqüentemente já foram medicados.
A civilização aceita perfeitamente o uso contínuo de remédios, mesmo sendo prescritos de uma maneira pouco responsável. Isso vem acalmar uma angústia. Não se sabe muito bem o que fazer com ela e abusamos da medicação. Então, as instâncias de regulamentação da saúde [o estado] tentam desesperadamente diminuir o consumo e indicam aos médicos para que enviem as pessoas para uma psicoterapia, geralmente comportamental, antes de submetê-las a um remédio.
O medicamento está em todo lugar, somos “a civilização da medicação”. Se você vai a Pequim ou a qualquer outra cidade verá que o corpo está casado com eles nos aspectos mais ordinários da vida [viagra, analgésicos, estimulantes etc].
Mas o desenvolvimento da ciência não é algo importante? A psicanálise é contrária à ciência?
A psicanálise é um discurso que não supõe outro saber senão a ciência: a psicanálise acompanha a ciência, e, ao mesmo tempo, pode permitir ao sujeito se reencontrar nas suas exigências contraditórias e nas contradições do próprio saber científico, que se revelou como uma verdadeira pulsão de morte que ignora as particularidades. O saber de “você deve entrar nesta categoria, nós vamos tirar de você os comportamentos que não dão certo e você vai se encontrar, enfim, muito bem nela”. E, assim, você será morto subjetivamente, é o que George Orwell imaginava para essa sociedade que quer, pelo saber, reduzir cada um a uma transparência completa.
Fabiola Ramon é psicanalista,
mestre em ciências médicas pela USP
e professora da Universidade Metodista de São Paulo.
FABIOLA RAMON
COLABORAÇÃO PARA FOLHA, EM PARIS
Um dos principais nomes da psicanálise mundial, o francês Éric Laurent, discípulo direto de Jacques Lacan (1901-1981), defende que o método criado por Freud “é um discurso de crise, não de conformismo” e, por isso, ao contrário do que dizem seus detratores, está vivo, se contrapõe à febre dos medicamentos tarja preta e pode ajudar os indivíduos a atravessar o atual momento de instabilidade do mundo. Segundo ele, enfrentamos “a maior crise desde 1929, na qual se revela a mentira da civilização que nos dizia que tudo estava em ordem, que havia governantes sábios que cuidavam de todos, que os mercados permitiriam uma aposentadoria feliz”.
Laurent, que participou da fundação da École de la Cause Freudienne, em Paris, nos anos 80, e é autor de vários livros, entre eles, "Sociedade do Sintoma" (ed. Contracapa, 2007), denuncia o que chama de “medicalização da existência”, mas admite que um tratamento analítico de longa duração não é indicado para todos e aponta a necessidade de a psicanálise estar atenta às transformações do século 21.
Leia a seguir a entrevista concedida à Folha em seu consultório em Paris:
A psicanálise ficou conhecida como um método longo e caro. Em um mundo que demanda respostas rápidas e tratamentos breves, ela não está fadada ao fracasso?
Ela não estabelece prazos, é uma maneira de se refletir sobre a vida e os impasses da existência, vai além de um tratamento. Após a Primeira Guerra Mundial, em 1918, percebendo que o conflito havia arruinado a Europa, Freud propôs a abertura de centros psicanalíticos gratuitos. Concomitante a isso, houve a disseminação da idéia de que somente a burguesia podia pagar uma análise. Ainda hoje percebemos esses dois movimentos: tratamentos que se endereçam à classe média, quando se busca um psicanalista em um consultório é fácil encontrar um, e centros de atendimento gratuitos, aos quais as pessoas podem recorrer nos momentos de instabilidade dos laços sociais. É preciso questionar a idéia de que a psicanálise é um tratamento longo e caro. Ela é uma aventura pessoal, deve ser vista como as histórias de amor, que podem ser rápidas e múltiplas, ou aventuras mais longas, nas quais o objetivo é mudar o estado das coisas no interior de si mesmo. Assim é a psicanálise: a cura como aventura pessoal.
Muito se diz que a psicanálise está em crise. O que ela pode oferecer, então?
A psicanálise pode ser algo útil às pessoas decepcionadas com fabricantes e vendedores de felicidade. A única dignidade dela é estar em crise desde sempre. É um discurso de crise, e não de conformismo, conforto e tranqüilidade. Estamos atravessando a maior crise desde 1929, na qual se revela a mentira da civilização que nos dizia que tudo estava em ordem, que havia governantes sábios que cuidavam de todos, que os mercados permitiriam uma aposentadoria feliz. São momentos nos quais a angústia nos atravessa e nos remete a escolhas e a saber o que nós queremos para o futuro. O século 21 será apaixonante, sem dúvida tão terrível quanto os anteriores, mas, de uma maneira nova. Será necessário estar atento a essas novidades. A psicanálise deve ajudar a compreendê-las.
Por que hoje há uma busca desenfreada e imediata pela felicidade?
Todo mundo quer ser feliz. Essa é uma demanda que se tornou legítima após o iluminismo, quando, contrariamente à religião, o próprio pensamento abriu a possibilidade de uma felicidade terrestre, e não somente uma salvação eterna. O primeiro estado moderno, os EUA, incluiu na sua constituição a busca da felicidade como um pedido legítimo. Entretanto, conhecemos ao longo desses dois séculos diferentes atitudes para entender porque é que os humanos não a encontram. Uma delas é: “porque as pessoas têm maus hábitos, vamos mudar seus comportamentos”, abordagem difundida pelo comportamentalismo desde 1950, com Skinner, que explicava que a liberdade é um luxo que a humanidade não pode ter, pois se as pessoas fazem o que querem, elas terão maus hábitos.
Isso aconteceu ao mesmo tempo em que se realizava o comunismo, que queria mudar os comportamentos e proporcionar a felicidade ao homem novo. Ambos configuraram uma gestão autoritária das atitudes em nome do bem-estar.
Nos anos 60, ao contrário, houve uma liberação e a rejeição à servidão autoritária. Atualmente, há um retrocesso, que busca mudar atitudes com a volta da burocracia sanitária. Donde a idéia da gestão de populações: câmeras de vigilância, identidade biométrica, isso é um sonho para um administrador. Com o melhor conhecimento e mapeamento da população, podemos enquadrar as pessoas em categorias de gênero, idade, raça, etc.
O que o senhor entende por “medicalização da existência”?
Michel Foucault mostrou que a medicina contemporânea trata populações. Ela não trata mais um por um, como era no século 19. Hoje, ela é “baseada em evidências” e fundamenta-se em estatísticas para produzir categorias homogêneas. Nesse modelo é necessário desconsiderar a particularidade dos casos, o que combina com a medicalização de toda a existência. Por exemplo, o comportamento no trânsito, a maneira de fumar, a forma do amor, com sexo ou não. São termos abordados como problemas epidemiológicos: o tabaco, a droga, a violência familiar, etc. Questões antes deixadas ao sistema jurídico, até então tidas como de ordem individual, são agora apropriadas pela gestão das populações e pela medicalização da existência.
E as doenças que crescem cada vez mais, como a depressão, por exemplo?
Desde que a medicina declarou que em uma população 25% de pessoas podem tornar-se deprimidas, colocou-se um problema de evolucionismo. Como a espécie humana pode sobreviver e conservar uma disposição fatal que faz com que um quarto das pessoas possam ter algo que as deixem deprimidas? Ou bem a categoria está superestimada, ou temos um problema, o que mostra o limite desta abordagem.
O senhor acha que há um abuso de medicação?
As pesquisas realizadas pelos laboratórios farmacêuticos indicam efeitos formidáveis das medicações. Por outro lado, estudos feitos por sistemas de saúde mostram o avesso disso, como o do National Institut of Menthal Health, nos EUA, que, no último publicado, apresentou que os anti-depressivos, na maioria das vezes, eram pouco superiores aos placebos. Algumas vezes eles atingem objetivos contrários. Então, coloca-se uma tarja preta na caixa alertando sobre os riscos. Sabemos também que os jovens que passam ao ato assassino nos EUA freqüentemente já foram medicados.
A civilização aceita perfeitamente o uso contínuo de remédios, mesmo sendo prescritos de uma maneira pouco responsável. Isso vem acalmar uma angústia. Não se sabe muito bem o que fazer com ela e abusamos da medicação. Então, as instâncias de regulamentação da saúde [o estado] tentam desesperadamente diminuir o consumo e indicam aos médicos para que enviem as pessoas para uma psicoterapia, geralmente comportamental, antes de submetê-las a um remédio.
O medicamento está em todo lugar, somos “a civilização da medicação”. Se você vai a Pequim ou a qualquer outra cidade verá que o corpo está casado com eles nos aspectos mais ordinários da vida [viagra, analgésicos, estimulantes etc].
Mas o desenvolvimento da ciência não é algo importante? A psicanálise é contrária à ciência?
A psicanálise é um discurso que não supõe outro saber senão a ciência: a psicanálise acompanha a ciência, e, ao mesmo tempo, pode permitir ao sujeito se reencontrar nas suas exigências contraditórias e nas contradições do próprio saber científico, que se revelou como uma verdadeira pulsão de morte que ignora as particularidades. O saber de “você deve entrar nesta categoria, nós vamos tirar de você os comportamentos que não dão certo e você vai se encontrar, enfim, muito bem nela”. E, assim, você será morto subjetivamente, é o que George Orwell imaginava para essa sociedade que quer, pelo saber, reduzir cada um a uma transparência completa.
Fabiola Ramon é psicanalista,
mestre em ciências médicas pela USP
e professora da Universidade Metodista de São Paulo.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2008
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