Sabrina Gomes Camargo
Psicóloga, Especialização em Teoria da Clínica Psicanalítica – UFBA
Mestrado pelo Departamento de psicanálise da Universidade de Paris VIII
camargosabrina@uol.com.br
Introdução
Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS)1 estimam que aproximadamente 121 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de depressão. Esta doença é o principal motivo de afastamento do trabalho e sua alta incidência acarreta um problema de saúde pública.
Diante desses números, vemos surgir, cada vez mais, medidas preventivas no intuito de alertar a população para o problema. E é neste contexto que assistimos à deflagração de uma maciça campanha que se estende a todos os meios de comunicação da França. Especificamos a França porquanto tivemos a oportunidade de presenciar, recentemente, a luta que se trava entre o Estado, através do Ministério da Saúde, os profissionais e demais órgãos de saúde, as indústrias farmacêuticas e os meios de comunicação deste país. Entretanto, a distância geográfica que existe entre o novo e o velho continente não nos torna, a nós, população brasileira, menos imune a esta batalha, que também começa a se instalar implícita e vagarosamente em nosso meio (OMS, 2000).
Propagandas veiculadas na televisão e no rádio e nada menos que a tiragem gratuita de um milhão de exemplares do mais novo guia sobre a depressão conformam o cenário com o qual nos deparamos. Em todos esses contextos, a mensagem é a mesma: a depressão é um problema, um déficit do organismo que revela o mau funcionamento cerebral que, por sua vez, influencia no comportamento, devendo, e rapidamente, ser solucionado.
É exatamente em termos deste sintagma ‘problema-solução’ que o tratamento da depressão ganha terreno e vem sendo estudado pela ciência neurofarmacológica. Os medicamentos antidepressivos são vendidos em grande escala, pois, na cultura atual não há espaço para os tristes, desiludidos, desesperançados. Não há lugar para o menos. É então necessário arrancar o mal pela raiz e nada mais justo que seja de forma ‘indolor’, através das famosas pílulas da felicidade. Nesta abordagem, o olhar que deveria ser dirigido ao sujeito volta-se para uma disfunção (neuronal, por exemplo). Os sujeitos são enquadrados em estudos, em cinco ou mais sintomatologias do CID 10 ou do DSM IV, abolindo-se toda e qualquer possibilidade de expressão de singularidade.
Trata-se não apenas do culto ou do fetiche ao número, mas de uma colagem massiva a um significante que é impróprio, pois, além de não dar conta de toda uma gama de múltiplas manifestações afetivas do humano, o significante ‘depressão’ não é próprio do sujeito, mas uma atribuição do Outro.
É diante deste cenário atual que nos propusemos desenvolver este ensaio. Para tanto, permitimo-nos tomar, como exemplo, o guia2 que acaba de ser publicado na França sobre a depressão, com o objetivo de analisar as dimensões do discurso aí contido e dos seus efeitos sobre a subjetividade.
Tristeza ou Depressão?
Este subtítulo é um empréstimo que fizemos com tradução livre do guia sobre a depressão. A primeira parte do manual se intitula “Déprime ou Dépression: ne pas confondre”. Tomamos déprime como um estado equivalente ao da tristeza, e dépression como a doença, propriamente falando, em conformidade com o guia.
Numa análise (Chazaud, 1989) desses termos em francês, vemos que ambos, déprime e dépression, constituem um mesmo campo semântico, sendo que sua diferença reside apenas em relação ao registro em que ocorrem, ou seja, o primeiro numa linguagem mais íntima e familiar, e o segundo numa situação mais solene e formal.
No guia francês, déprime equivale, em termos gerais, ao estado de tristeza ocasional, passageira, ao passo que dépression representa um estado patológico que exige tratamento e cujos medicamentos seriam os melhores combatentes. Acreditamos que a problemática maior está na maneira como o guia trata a tristeza ocasional, como algo que precisa ser observado atentamente, pois a persistência deste estado por dois ou mais meses é sinal de uma depressão, corroborando a mesma idéia do CID 10 ou do DSM IV.
É nesse quadro que o uso de antidepressivos tem se difundido numa escala nunca antes vista. A tristeza normal do luto é tratada da mesma maneira que a dor moral da melancolia, sem nenhuma distinção.
Recentemente, Miller (2007a) publicou um texto apresentando os perigos da “medicalização da tristeza”, verificando que momentos de baixa estima e de tristeza são absolutamente normais nos seres humanos. Segundo o autor, o que antes era sentido como um mal-estar, fadiga, ou ansiedade, é hoje considerado como doença. Qualquer reação do corpo ante um desconforto, ou a angústia frente a uma situação com todos os sinais daí advindos podem ser interpretadas como uma doença. Como tal, precisa ser rapidamente tratada, não permitindo espaço para o desejo que se instaura com a falta. É uma forma de suprimir, de abolir o sujeito do inconsciente, que insiste em reaparecer.
Na nossa cultura atual não há espaço para o tristonho. Este geralmente é rotulado como o ‘baixo-astral’, o desanimado, aquele que sempre está de ‘mal com o mundo’. Esta mesma sociedade que o produz também o rejeita a partir do momento em que impera a necessidade de ser feliz. Mais que um estado, a felicidade estatui-se como condição do ser vivente.
Sim, hoje é preciso ser feliz. Tudo está ao alcance, não há mais distâncias, as barreiras foram suprimidas e tudo parece mais frouxo, mais elástico. Diante do fácil acesso a tudo, não há espaço para o fraco. Todos estão aí para chamar a atenção: “mas você tem tudo, por que está assim?”. O controle social parece cada vez mais atento e vigilante aos que se excetuam ao padrão exigido.
Por detrás de tudo isso, cresce o poder das indústrias farmacêuticas. É o que Foucault (apud MILLER, 2007b) demonstrou através do conceito de biopoder: o poder que se exerce sobre os corpos, através das medicações, dos horários, das normas, disciplinando-os e docilizando-os. Os órgãos públicos de saúde responsáveis pelo ‘bem-estar’, em busca de uma melhor qualidade de vida para a população e, através de uma política higienista e protética, ou seja, de adequação do que é inconforme com a norma, controlam a vida social dos sujeitos através de estudos, comparações e dados estatísticos.
Vive-se o presente, enquanto passado e futuro são anulados. O que importa é a urgência, a imediatez. Acredita-se em achar soluções rápidas para todos os problemas, tão rápidas que não permitem qualquer elaboração subjetiva. Ao desamparo do sujeito não é dirigido nenhum olhar, nem à sua responsabilidade face ao seu mal-estar. É uma clínica submetida ao medicamento, que não coincide e nem tem a ver com o tempo do sujeito.
Para Milner (1995), o que resulta de tudo isso é o aparecimento de um sujeito sem substância, sem consistência e sem predicados. Um sujeito esvaziado de toda e qualquer subjetividade, comandado por um único significante.
A esta colagem imaginária soma-se a fragilidade do registro simbólico, que expõe a condição do sujeito sem amarras, face ao gozo mortificador do Outro, numa realidade fragmentada e extremamente precária.
Depressão: uma impropriedade significante
Em nosso meio lingüístico, em sua grande variedade geográfica e social, os termos tristeza e depressão co-ocorrem em muitos contextos, em diferentes registros, quer no meio médico, por exemplo, quer no uso corrente, de forma indiscriminada, embora verifiquemos que, na linguagem coloquial, o termo depressão é empregado com maior freqüência, talvez para dar ênfase aos estados de desânimo ou mesmo de insatisfação do sujeito. A tristeza não parece avultar no discurso daquele que a carrega, daí o apelo significante que fazem os sujeitos dos nossos dias em aumentar a carga semântica dos termos já tão combalidos pelo uso.
Diariamente, nos deparamos em nossos ambientes de trabalho com sujeitos em estado de sofrimento, totalmente identificados a diagnósticos atribuídos por médicos, colegas de trabalho, balconistas de farmácias e testes de revistas. Pessoas que não se permitem sentir um mínimo sinal de tristeza e desconforto. Que não se autorizam a ouvir o seu corpo e que, ao menor mal-estar sentido, já começam sua busca desenfreada por medicamentos que aliviem suas dores e aflições.
A tristeza deixou de fazer parte do vocabulário corrente, cedendo espaço para a depressão, cada vez mais amplamente utilizada. O que leva as pessoas a querer estar nesse lugar, o do deprimido?
Na leitura que propomos, a hipótese é de que, cada vez mais, a palavra tristeza parece não dar conta de um estado de desconforto e desamparo, como se não fosse apropriada e demonstrasse total incapacidade de bem precisar o mal-estar. Diante da intensidade dos sentimentos, o termo tristeza se torna vazio demais para absorvê-los. Por isso, o uso indiscriminado do termo depressão parece não só ser capaz de nomear a fadiga, o desânimo, o desamparo, como também de incluir aqueles que o empregam em uma determinada série.
Em outras palavras, enquanto se reduz a carga semântica da palavra tristeza por não conseguir expressar o mais profundo sentimento de solidão, deflacionando-a de sentido, por um lado, maximiza-se, infla-se, por outro, o significado da palavra depressão, ‘única’ capaz de magnificar a dor, o sofrimento e a piedade, como se somente este termo fosse capaz de dar sentido ao já sem-sentido. É uma tentativa de dar conta de uma realidade fragmentada, de dar conta daquilo que dói, que faz sofrer, que tortura pela presença, uma maneira de tentar nomear o inominável.
A partir do momento em que o sujeito atrela-se a este significante, ele tem a ilusória sensação de tudo resolver. Apesar de estar com depressão, há remédios para isso. E, felizmente, crê ele, encontrou o diagnóstico para aquele choro sem sentido! O sujeito, antes à margem, encontra agora seu grupo, o dos adoecidos, uns mais, outros menos, mas todos debaixo do mesmo significante!
Entretanto, este significante depressão, que parecia ter resolvido tudo, também ele se mostra falho, tal como a tristeza. Ele também não vai conseguir dar conta dos sentimentos que continuarão a aflorar no sujeito, a despeito das doses mais extensas de medicamentos, além de não ter conexão de pertença com o próprio sujeito, que dele se apropria como remendo, prótese significante.
O imperativo da indústria farmacêutica – “Consuma! As pílulas da felicidade estão aí!”, estimulado pela indústria televisiva, radiofônica, impressa (a exemplo do guia francês) corrobora a tese de que há solução, basta seguir o tratamento.
A identificação ao significante depressão exclui o sujeito, tamponando a falta e fazendo crer que agora tudo está bem. Contudo, dadas as suas condições estruturais, o significante é por natureza impróprio ou, em outras palavras, pela sua impropriedade, nenhum significante é suficiente para dizer do sujeito: algo escapa, algo sem sentido que o remédio não consegue curar. Voltam as dores, a angústia, o desânimo, e aquela agradável sensação de bem-estar e felicidade dá novamente lugar ao doloroso sentimento de incompletude.
Vive-se, constantemente, sob a hegemonia significante, na tentativa de massificar e equalizar os sujeitos. Porém, os corpos, de alguma forma, resistem a isto. E é sobre isso que escapa que a ciência não encontra explicação; é para este retorno no real que a clínica psicanalítica deve se voltar. Uma clínica da urgência e da emergência, eis o que caracteriza a sociedade atual, e sobre a qual urge uma posição.
Mas, e a quem recorrer?
Esta é uma pergunta presente em todos os guias e artigos educativos sobre a depressão. Com o objetivo de informar as pessoas e permitir-lhes cernir os seus sintomas, esses documentos destinam algumas páginas a informar quem são os profissionais capacitados a assegurar o tratamento terapêutico.
É interessante observar que no guia francês sobre a depressão o médico é o principal encarregado desta luta, visto que, e isto é bem enfatizado, é o único profissional qualificado para prescrever a medicação. Desde já vemos uma indistinção no tratamento: o medicamento é o primeiro instrumento terapêutico indicado, independente da intensidade e do teor dos sintomas. Posteriormente, vemos a indicação de um tratamento de psicoterapia baseado em testes e em questionários de personalidade. Estes, através de dados estatísticos e de gráficos, pregam que a mudança de comportamento e de atitudes de risco são as melhores armas frente ao desencadeamento e a progressão da depressão.
E a psicanálise? Bem, no guia em tela e na maioria dos panfletos educativos, ela está excluída, sumariamente, das condutas terapêuticas, e apenas intuída entre outras tantas possibilidades, de resto secundárias, às quais o “etc” remete. A psicanálise, a despeito das conquistas do campo freudiano nas terras gaulesas, é posta à margem, pura e simplesmente.
Entretanto, é sobre este sujeito, para o qual a ciência crê encontrar respostas e solucionar todos os males, que a psicanálise opera e aposta. É sobre este resto, este a que escapa da ciência, de um horizonte caracterizado pelo surgimento de novas patologias e por novas “formas aberrantes do gozo contemporâneo” (Cottet, 2005, p. 24), que a psicanálise tem se debruçado.
No texto célebre, “A ciência e a Verdade” (Lacan, 1965), Lacan, de forma primorosa, aborda a subtração do sujeito pela ciência, mostrando que, ao tentar dar conta de um todo de forma massificada, algo do sujeito escapa, não deixando de existir, fazendo-se aparecer e se contar no real. Esta foraclusão do sujeito pela ciência o expõe a uma angústia inefável, sem nomeação, presentificando no corpo aquilo que antes deveria estar inscrito na linguagem.
Resulta daí a presença de um mal-estar generalizado, da inflação de prescrições medicamentosas inúteis, da banalização das patologias graves e da superestimação dos mínimos sinais de desconforto.
Os psicanalistas dificilmente se colocam contra o uso de medicamentos. Mas é imprescindível que estes sejam utilizados de forma criteriosa, e segundo as indicações de cada caso. É importante que o sujeito não seja um número diluído na dosagem, mas que seja “reintroduzido” nesta prescrição. É aí que a psicanálise aposta, de que há um sujeito e não um doente, de que algo emerge, mesmo que tardiamente.
A psicanálise nos propõe o “dever ético de bem-dizer o desejo” (Lacan, 1973). Apostamos que somente a fala poderá amenizar os efeitos reais que surgem e devastam o campo da subjetividade humana. Há um saber que falta, que impulsiona a articulação de novos significantes desconhecidos e que são capazes de permitir ao sujeito reatar o laço social fragmentado.
Numa era em que a tristeza e a depressão são tratadas rápida e indistintamente, em que o sem-sentido, embora ignorado, insiste em emergir, o sujeito atual mostra seu desamparo. Assim como a palavra tristeza já não é mais capaz de bem-precisar os estados de desânimo, de cansaço e de fadiga, acreditamos que num futuro muito próximo o termo depressão também estará neste mesmo patamar, cada vez menos dando conta do mal-estar. Poderíamos antever uma fossilização do termo depressão e o surgimento cada vez maior de novos nomes, métodos e tratamentos que insistem em dar conta do que surge no real e devastam o campo da subjetividade.
Notas
1.
Depression. In. Organização Mundial de Saúde. Disponível em http://www.who.int/mental_health/management/depression/definition/en/. Acesso em: 22 dez. 2007.
2.
La dépression: en savoir plus pour en sortir. Disponível em www.info-depression.fr. Acesso em: 20 dez. 2007.
“Tristeza e depressão: não confundir”. Apesar de déprime e dépression serem sinônimos, no guia francês os termos são empregados com diferentes acepções, em função dos registros em que ocorrem.
Referências Bibliográficas
OMS (2000). Prevenção do Suicídio: Um manual para profissionais da saúde em atenção primária. In. Organização Mundial de Saúde. Disponível em http://www.who.int/mental_health/prevention/suicide/en/suicideprev_phc_port.pdfAcesso em: 05 jan. 2008.
CHAZAUD, H. B. du. Le Robert. Dictionnaire des Synonymes. Paris: Les Usuels, 1989.
COTTET, S. Efeitos terapêuticos na clínica psicanalítica contemporânea. In. COELHO DOS SANTOS, T. (Org). Efeitos terapêuticos na psicanálise aplicada, Rio de Janeiro: Contracapa, 2005.
MILLER, J.-A. (2007a) Tout le monde passe par des états d’humeur dépressifs. Disponível em www.forumpsy.org. Acesso em: 18 dez. 2007.
_______. (2007b) Entretien à Jacques-Alain Miller. Disponível em http://www.cifpr.fr/+Si-la-tristesse-est-une-maladie. Acesso em: 20 dez. 2007.
MILNER, J.-C. (1995) L’oeuvre claire: Lacan, la science et la philosophie, Paris: Seuil, 1995.
LACAN, J. (1965) La science et la vérité. In. Écrits II. Édition de Poche, Paris: Seuil, 1999. p. 335-358.
_______. Télévision (1973), Paris: Éditions du Seuil, 1974.
domingo, 28 de dezembro de 2008
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