sábado, 31 de janeiro de 2009

A filha de Jacques Lacan reflete sobre o campo psi neste século

O futuro da psicanálise

Para la autora, los cambios del mundo, y los de la clínica, exigen cuestionarse. Para a autora, as mudanças do mundo, e as da clínica, exigem questionamento. Y considera que no le compete a esta disciplina alimentar la nostalgia de los ideales antiguos ni la queja sobre el mundo, pero sí poner su reloj en hora. Ela considera que não compete a esta disciplina alimentar a nostalgia dos antigos ideais nem as queixas sobre o mundo, mas sim acertar os ponteiros de seu relógio.
Por Judith Miller*

“É que face a uma verdade nova, não é possível contentar-se apenas em dar-lhe seu lugar, pois o de que se trata é de tomarmos nosso lugar nela. Ela exige que nos mexamos” Jacques Lacan, “A instância da letra no inconsciente”, Escritos , p.525

“Há que adentrar-se no campo social, no campo institucional, e preparar-se para a mutação da forma da psicanálise. Sua verdade eterna, seu real trans-histórico não serão modificados por esta mutação. Pelo contrario, se salvarão, se captarmos a lógica dos tempos modernos.” Jacques-Alain Miller, Le neveu de Lacan, p.124.

A passagem ao século XXI, o 150º aniversário do nascimento de Freud e o centenário de Lacan, conduziram aqueles que inscrevem seu trabalho no Campo Freudiano a interrogar, cada vez mais, o lugar da psicanálise no mundo, assim como a função que cabe a um analista. O mundo muda e este lugar é, com efeito, questionado, mesmo no país em que Lacan exerceu e ensinou. Isto é, no país onde não só o fio da invenção freudiana foi salvaguardado por Lacan, senão também, onde a doutrina analítica conheceu avanços tão notórios que ainda hoje apenas começamos a ter uma medida das conseqüências do último ensino de Lacan, tanto no que diz respeito ao Édipo como aos sintomas, para tomar só dois exemplos entre muitos outros.

Seguramente as mudanças do mundo, e com elas as da clínica, exigem que se interrogue o lugar que tem ali a psicanálise e a função que cabe a um analista, sabendo que desde o nascimento da psicanálise este lugar deve ser defendido e esta função delicada, sustentada. Hoje, o são, sem dúvida, mais que nunca. Através dessas mudanças, poucas coisas da era vitoriana resistiram. Coisas que possamos encontrar no mundo globalizado, cuja característica própria é a ruptura que opera com os ideais e os valores tradicionais, da família especialmente, além de uma pletora correlativa de mais-de-gozar descartáveis, falsos objetos a, que são oferecidos ao consumo público no lugar dos ideais que se tornaram obsoletos. A esse respeito, não posso senão remetê-los ao site da ELP que publica os trabalhos de nossos colegas elucidando o "estado da civilização" de maneira metódica e rigorosa e suas repercussões sobre a "questão psi".

Entretanto, Lacan não deixou de afirmar em uma "conferência à imprensa" de 1974, no momento de “A Terceira" (intervenção sua em Roma), que a seus olhos a religião (a verdadeira, ou seja, a romana) tinha tudo o necessário para triunfar além das convulsões que o planeta conheceria e dos avatares da civilização. (Um parêntese: para quando o ensaio de um psicanalista dedicado ao movimento ecológico que se inquieta pela devastação que ameaça a Terra e os equilíbrios naturais de sua fauna e de seus climas?) Em 1974, Lacan ainda não convida a psicanálise a propor outro sentido diferente daquele que a religião encontra sempre para torná-lo abundante e para melhor mascarar o real: todo sentido é religioso. Ele indica a bússola que especifica a psicanálise: orientar-se pelo real que se desprende, com efeito, da psicanálise: o que fracassa o insuportável que insiste. Tal é sua singularidade sua razão de ser, na falta da qual estaria destinada a deteriorar-se. Tratar-se-ia de condená-lo a uma triste alternativa: ou o fracasso ou a traição?

Como a psicanálise pode encontrar seu lugar no século XXI sem trair-se e sem se auto-segregar? É, seguramente, estreita a via que supõe que se alcance circunscrever sempre o real e obter, no mesmo movimento, um saber-fazer em seu lugar. O impossível não é a impotência. É a ética da psicanálise o que supera qualquer traição e franqueia todos os obstáculos se nos sustentamos firmes no princípio enunciado por Lacan "não ceder sobre seu desejo". Se a posta em marcha por cada um de tal princípio supõe que o tratamento do sujeito tenha sido conduzido a seu término, "ele habita todo analisante que se aferra à ocasião de servir à causa da psicanálise, autorizando-se a ser um praticante devidamente formado".

O porvir da psicanálise se sustenta, seguramente, na formação dos analistas. Nada surpreendente nem novo em dizê-lo, o que é surpreendente e novo é a conjuntura na qual este dizer encontra sua efetividade. Neste século XXI, a conferência institucional da ECF de 13 de setembro de 2008 se dá o encargo de encarar esta tarefa, para desbastar o terreno, e inclusive extrair as minas.

Não cabe à psicanálise passar por compromissos para existir no mundo, especialmente do tipo promoção ou aceitação de diplomas: está em sua essência mesma o não ser passível de diplomas. Seu exercício implica que permaneça confidencial, o inconsciente freudiano se constitui em uma relação de palavra de ordem privada.

Pelo contrário, cabe à psicanálise salvaguardar o espaço desta ordem quando tudo (a ideologia de segurança, a tecnologia, internete, a política da transparência,tecno-psi) trabalha para sua diminuição e para fazer com que cada um se esqueça de sua solidão, sua responsabilidade, inclusive de suas cogitação de ser falante. Na França, um projeto governamental mobiliza os cidadãos lúcidos. Tal projeto põe em cheque as liberdades individuais, em nome da segurança. Esses decretos estão no ar de nossos tempos em nome da "transparência" e da previsibilidade que a lei do mercado promoveu e que a globalização tenta aplicar às pessoas, com a condição de não ver nelas mais que consumidores - produtores.

É por isso que iniciativas tais como os Fóruns psi e Le nouvel Âne se inscrevem na trama do ensino de Lacan no momento particular da civilização que vivemos. Depois do Seminário XVII, fomos esclarecidos sobre o "avesso" da psicanálise: este termo indica que o discurso de mestre e o discurso do analista são feitos do mesmo estofo, do mesmo tecido. Certamente se opõe, um massifica enquanto o outro permite a cada sujeito, um a um, ler o inconsciente do qual é o produto. E esta oposição diz da estreita relação, desde sua invenção por Freud, entre a prática da psicanálise e sua época. Diferente do discurso da histérica que, perseguindo a verdade, desnuda o semblante sem poder fazer outra coisa que reforçá-lo; o discurso analítico não denuncia os semblantes, mas sabe servir-se deles sem enredar-se ali.

Corresponde à psicanálise, não obstante, determinar o que é transmissível da experiência analítica, e prosseguir a elaboração inaugurada por Freud e cristalizada em seus matemas, por Lacan. Daí o tato requerido na exposição pública desta experiência privada. O testemunho do passe não sai do círculo restrito ao qual se dirige, a publicação oral ou escrita de um caso e sua discussão respondem a exigências com as quais se medem as apostas da inscrição da psicanálise no mundo tal como esta caminha. A esta inscrição contribui um amplo leque que vai desde os ensinos dos AEs às intervenções públicas.

Se não compete à psicanálise alimentar nem a nostalgia dos ideais antigos nem a queixa sobre a dureza do mundo tal como é, lhe cabe, porém, acertar os ponteiros de seu relógio. Primeiramente examinando se não haveria contribuído, por acaso, para “ascensão ao zênite do objeto a”, para a queda dos ideais; se seus êxitos mesmos não teriam dado pretexto aos ataques daqueles que desejavam assassiná-la. Ou ainda, desinflando os argumentos inconsistentes em nome dos quais o cientismo pretende que esteja morta e enterrada. Finalmente, explicitando as condições nas quais um analista pode sustentar sua função, sem renunciar a seu laicismo. Como sabemos, não há psicanálise sem psicanalistas e não há psicanalistas sem formação analítica e verificação desta formação, que só uma Escola de psicanálise pode assegurar.

*Judith Miller é filha de Jacques Lacan casada com Jacques-Alain Miller. Fragmento extraído da publicação Mediodicho, do Campo Freudiano. Tradução: Silvia Baudini. Gentileza EOL Rosario.



Tradução: Marcia Zucchi

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