quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Alice e o buraco no inconsciente

Cristina Vidigal

Texto publicado no boletim da Rede CEREDA que qual trabalha com criança no discurso analítico. Os artigos são um aquecimento para o encontro que se realizará no dia 18/11 em São Paulo.

Há uma criança numa tarde quente e preguiçosa e, no entredormir, algo estranho, mas familiar, atravessa. Um coelho com esse detalhe singular: ele fala! Na verdade, Lewis Carroll é ainda mais sutil, Alice não estranha que o coelho fale, mas que ele tire um relógio do bolso do colete. Aí realmente temos o mais familiar (na época) tomado como o mais estranho, e vice versa, tal como no trabalho do sonho que sabe ser a via régia do inconsciente.
Enfim, o coelho fala e, como todos os coelhos, ele corre. Corre como a língua e ele não tem tempo, mesmo porque ninguém tem. Seres mortais, e mais do que isso, falasseres, seres que falam e sabem sobre a morte e estão no entrever do vórtex do sexual que começa a assumir uma significação que engole todas as outras, isto é, a significação fálica, como diz Lacan no Seminário RSI.
Então, seguir isso, como toda criança ao mesmo tempo curiosa e preguiçosa, significa se deparar com um buraco, como tal e como toca. Não recuar implica cair e atravessar esse buraco, com um recurso tão travesso como é a linguagem. Ir usando esse recurso muitas vezes implica em prolongar essa travessia para que um tecido seja construído, um tecido que contenha essa queda. Ir produzindo esse percurso é ir forrando-o com um tecido que é feito/efeito de língua. Daí as produções do inconsciente que aparecem como imagens, mas que são trocadilhos, repetições, contradições que coexistem, operações em ritornelo sem saída, um enigma multidimensional com a ossatura de palavras cruzadas, mas que em vez de estarem no miolo, só revestem o vivo, o que pulsa, o que jorra, e faz mais buraco e segue... e é preciso que o próprio sujeito vá operando com tudo isso.

Inconsciente e sintoma
O interessante de pensarmos a idéia de um buraco no inconsciente é tomarmos a noção de buraco, por um lado, como uma noção lógica e, por outro, como uma noção tópica. O que vemos em Alice são buracos que produzem passagens, para cenas e lugares por vezes inteiramente diferentes, com lógicas, sensações e problemas diferentes. Então, podemos ter o campo do real que acolhe o sintoma, e o campo da linguagem, que é condição do inconsciente. E, entre eles, uma passagem.
Quando falamos de um buraco no inconsciente podemos trabalhar campos heterogêneos, mas que podem manter entre si certa consistência, ou até mesmo certa coerência. Lacan nos diz que inconsciente e sintoma têm coerência e consistência entre si, mas que um não se reduz ao outro.
“O sintoma não é definível de outro modo que da maneira em que cada um goza do inconsciente enquanto o inconsciente o determina”[4]. A noção de que sintoma e inconsciente são heterogêneos, mas podem manter laços de consistência, permeia o campo de idéias de um Lacan tardio que não indica para o falasser outra saída que não aquela de encontrar uma forma melhor de lidar com o impossível do seu próprio gozo.
A idéia de Lacan é que o sintoma é uma saída, uma construção, pois na medida em que o sujeito fala, ele abre a possibilidade de não estar mais preso ao peso de um único referente – este referente de peso, sabemos, é o falo.
O trabalho de se contar uma história, de articular um campo de ficção, de construir um romance familiar pode ser importante para uma criança conseguir se orientar no campo do gozo, deixando o gozo de lalangue. Os jogos com a língua de que todos desfrutamos, não os tomamos apenas na vertente da graça, mas na seriedade com que Lacan os toma quando aproxima, por exemplo, l’une bévue de Unbewusste (equivocação/inconsciente), marcando a importância da equivocação desde o título de seu seminário, L’insu que sait de l’une bevue. L’Insu que sait, o não sabido que sabe, que soa como o insucesso, o fracasso. Destacamos desse título a dimensão do inconsciente como equivocação. Não se trata aí de tradução, mas de apontar para o trabalho de redução a um signo no final de análise que já não está para ser decifrado, que não está para encontrar algo da ordem do sentido, mas que diz de um impossível.

O trabalho do sintoma
A época vitoriana em que viveu Lewis Carroll caracterizava-se pelos ditos moralizantes que tentavam regrar o gozo pela via do sentido. Carroll joga com a língua não de uma forma que é pura lalangue. Quando uma das meninas lhe pede para que conte uma história “sem pé nem cabeça” – puro gozo do sem sentido e, portanto, negação das diferenças, puro exercício do não querer saber nada disso –, ele conta uma história absolutamente referenciada.
Encontramos a sofisticação do trabalho com a língua que o aproxima de um Joyce, que o aproxima do trabalho do sintoma. Um dos exemplos disso está na simples troca de uma letra que estoura todo o sentido e a “moral da história”, mantendo a sonoridade/seriedade da composição. Este trabalho de cifração de sua obra não serve apenas para revelar a arbitrariedade do signo, mas assinala o buraco escamoteado no sentido, indica o real. Assim, quando troca o p pelo s na fórmula moral vigente na época, ele promove uma demolição do sentido corrente da linguagem, que faria sua aposta num universal para os falasseres. “Take care of de sense and the sounds will take care of themselves” no lugar de “take care of the pence and the pounds will take care of themselves” (traduzindo ao pé da letra o ditado diz: “cuide do centavo e o dinheiro cuidará de si mesmo” e Carroll, trocando uma única letra, produz: “cuide do sentido e o som cuidará de si mesmo”). Ele usa a própria palavra “sentido” (sense) para apontar logicamente a falha da fórmula vitoriana com uma graça impressionante e ainda fazendo com que o nonsense desvele algo estrutural na linguagem.
Nos dois livros de Alice, Carroll faz com que esses jogos ocupem grande parte da narrativa. Como no diálogo entre Alice e o rei branco: para ela ninguém está vindo pela estrada; para o Rei, Ninguém (isto é, alguém está vindo). Aliás, a questão da identidade é uma constante nos relatos de Alice.
Nestes jogos com a língua, o inconsciente joga com um buraco, uma abertura, mas por ser principalmente uma operação de linguagem, não fornece ao sujeito um campo de identidade. O sintoma sim, ao produzir um modo de gozar do inconsciente. O jogo do inconsciente seria mais um jogo de determinação, enquanto o jogo do sintoma se afasta um pouco disso ao jogar mais próximo da letra. Lacan destaca a importância de um jogo de articulações e diferenças, de conjunção e disjunção entre inconsciente e real.

Inconsciente: decifração versus equivocação
Lacan propõe o inconsciente não como mera produção (de lapsos, chistes, etc.), mas como pura equivocação, uma equivocação que o inconsciente produz antes que um sujeito lhe dê um sentido. O foco muda do campo do Outro e privilegia a dimensão do Um, da equivocação, dos azares, do acaso, por oposição à tendência determinista própria da operação do inconsciente ao produzir sentido, e mesmo vários. A questão não é a multiplicidade de sentidos, mas que essa possibilidade da multiplicidade revele algo do real, do impossível.
Assim, um pouco para nos divertir, um pouco para convidá-los a dar um passeio com os conceitos, e para que tiremos um excesso de importância que damos a eles, pois um passeio é um pouco criar um pequeno intervalo, vou trazer uma das pequenas história formuladas por Carroll:
“Era uma vez uma coincidência que saiu a passeio em companhia de um pequeno acidente. Enquanto passeavam encontraram uma explicação, uma velha explicação, tão velha que já estava toda encurvada e encarquilhada que mais parecia uma charada.”[5] Essa pequena história poderia se assemelhar a uma das idéias que temos do sintoma do qual passamos a nos queixar: essa charada/enigma, efeito do encarquilhamento de uma explicação velha e desgastada em seu encontro com uma coincidência e um pequeno acidente quando saíram para dar uma voltinha. Uma velha explicação com cara de charada, tal me pareceu uma ilustração divertida do trabalho do inconsciente como estamos acostumados em sua vertente de ciframento. A coincidência e o pequeno acidente apontando para o acaso, e o encontro como resultado dessa voltinha, o que revelaria as duas faces do inconsciente e sua afinidade com o sintoma, poeticamente orquestrado por Lewis Carroll.
Mas, sabemos que ter em mente os ensinamentos do passe apontam que visitar inúmeras vezes numa análise essa charada, ou esse enigma que esse nosso parceiro (o sintoma) se torna, faz com que ele mostre seu outro lado e finalmente revele algo da função do Unbewusste, quando se trata do inconsciente/equivocação e não do inconsciente decifração[6].

Sintoma e inconsciente: disjuntos e solidários
Em Lacan, primeiro o sintoma é tratado como uma formação do inconsciente, depois ele se desprende das formações do inconsciente para ligar-se à repetição, carregando a marca do pulsional. Lacan articula essa marca com a pulsação temporal do inconsciente, tal como o formula no Seminário 11. Um terceiro momento destaca a marca de gozo do sintoma.
Quais seriam então as formas de articulação entre sintoma e inconsciente na criança? Em quê e por que precisam jogar, por vezes, no mesmo campo? Em quê e por que será necessário marcar suas diferenças essenciais? Penso que essas questões podem começar a ser articuladas nos trabalhos ao nosso II Encontro da Nova Rede CEREDA, em novembro em São Paulo, para o qual convido a todos.

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[4] Lacan, J. Seminário RSI. Lição de 18 de fevereiro de 1975. Inédito.
[5] Leite, S. Em: Alice no país das maravilhas. São Paulo: Summus, 1980, p. 26.
[6] Cf. Torres, M. El fracaso del inconsciente, amor al síntoma. Buenos Aires: Grama, 2008.

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