sábado, 2 de maio de 2009

PSICANÁLISE E LITERATURA: Dom Quixote de La Mancha, o Cavaleiro da Triste Figura.

Pensar no engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha pela via da psicanálise, uma figura que em si não possui humor, mas cuja seriedade oferece-nos um prazer humorístico, remete originalmente a uma figura cômica, uma criança grande. Suas fantasias originárias dos livros de cavalaria se sobrepõem à realidade. Sabe-se que o autor não tinha maiores pretensões acerca dele e que essa criação gradualmente cresceu além das primeiras intenções do criador. Mas depois que o autor equipou essa figura ridícula com a mais profunda sabedoria e os mais nobres propósitos, tornando-o representação simbólica de um idealismo que acredita na realização de seus objetivos, que toma suas promessas literalmente, essa figura deixa de ter efeito cômico.

Nessa perspectiva há um dito de D. Quixote: “ Sei perfeitamente que estou enfeitiçado e isso basta para me tranqüilizar a consciência” (p. 72). Uma reflexão acerca do mecanismo do humor reproduz-se como fórmula análoga àquelas referentes ao prazer cômico e aos chistes. Entretanto, o prazer nos chistes parece proceder de uma economia relativa à inibição, sendo que o prazer no cômico, uma economia relativa à ideação (catexia) e o prazer no humor está relacionado ao sentimento (afeto). Enquanto que o chiste é uma contribuição feita ao cômico pelo inconsciente, o humor seria a contribuição feita ao cômico pela intervenção do supereu. Quando o prazer humorístico alcança uma intensidade comparável ao chiste, o supereu está repudiando a realidade e servindo a uma ilusão.

No que se refere ao aspecto topológico Freud define a metapsicologia pela síntese de três pontos de vista: Dinâmico, Tópico e Econômico – entendendo por este último “ a tentativa de acompanhar o destino das quantidades de excitação (energia psíquica) e de chegar a uma estimativa relativa de sua grandeza”. O ponto de vista econômico consiste em considerar os investimentos psíquicos em sua mobilidade, nas variações da sua intensidade, nas oposições que entre eles se estabelecem. Para Freud a descrição completa de um processo psíquico somente é possível com a apreciação da economia dos investimentos. Uma explicação dinâmica da atitude humorística consiste em retirar a ênfase psíquica de seu eu, transpondo-a para o supereu. Os motivos dessa exigência do pensamento freudiano encontram-se, por um lado, num espírito científico e num aparelho conceitual inteiramente impregnados de noções energéticas e por outro, na experiência clínica, um certo número de dados que, para ele só uma linguagem econômica pode explicar. O que Freud entende por economia libidinal é a circulação de valor que opera no interior do aparelho psíquico, a maior parte das vezes num desconhecimento que impede o sujeito de perceber, a satisfação sexual no sofrimento do sintoma. Deste modo, a hipótese econômica está constantemente presente na teoria freudiana, na qual a idéia princeps é a de aparelho psíquico, cuja função é manter no nível mais baixo possível, a energia que ali circula. Este aparelho executa um certo trabalho descrito por Freud de diversas maneiras: transformação da energia livre em energia ligada, adiamento da descarga de afeto, elaboração psíquica das excitações. Esta elaboração pressupõe a distinção entre representação e quantum de afeto ou soma de excitação, esta susceptível de circular ao longo de cadeias associativas, de investir determinada representação. Daí o aspecto econômico de que se revestem as noções de condensação (metáfora), um dos modos essenciais do funcionamento dos processos inconscientes.

O lingüista Roman Jakobson chegou a relacionar os mecanismos inconsciente descritos por Freud com os processos retóricos da metáfora e metonímia, considerados os dois pólos fundamentais de toda linguagem. Assim relacionou o deslocamento com a metonímia, onde a ligação de contigüidade é que está em causa, enquanto que o simbolismo corresponderia à dimensão metafórica, onde reina a associação por semelhança.

Vale enunciar outro momento do livro:“ Considerou Sancho que, sendo louco o seu patrão, e de uma loucura que fazia tomar uma coisa pela outra” (p.94). Uma representação única representa por si só várias cadeias associativas, em cuja interseção ela se encontra. Do ponto de vista econômico, é investida das energias, que ligadas a estas diferentes cadeias, se adicionam nela. A condensação (processo primário) é uma característica do pensamento inconsciente (efeito de censura). Como no deslocamento, a condensação é para Freud um processo que encontra seu fundamento na hipótese econômica. Determinadas imagens, particularmente no sonho, só adquirem vivacidade na medida em que, produtos da condensação estão fortemente investidas. O deslocamento refere-se à hipótese econômica de uma energia de investimento suscetível de se desligar das representações e de deslizar por caminhos associativos. Esse fenômeno é visível na análise do sonho,na formação do inconsciente. “ A estranha loucura que o acometia, apenas quando se tratava de assuntos de cavalaria, a partir de inúmeros livros que lera”. (p.74). O deslocamento tem função defensiva evidente: numa fobia, por exemplo, sobre um objeto fóbico permite localizar, circunscrever a angústia.

Jacques Lacan, retomando e desenvolvendo as indicações de Jakobson assimila o deslocamento à metonímia e a condensação à metáfora. O desejo humano sendo estruturado pelas leis do inconsciente e constituído como metonímia.

“ Que mal fiz eu em lê-los, crê-los e imitá-los? Quem está enfeitiçado como eu, não tem a liberdade para fazer de sua pessoa o que quiser (p. 74). As palavras de Quixote demonstram a sobreposição da fantasia à realidade, sendo quixotismo, uma expressão utilizada para quem toma esta postura. A fantasia, segundo Freud é um roteiro imaginário em que o sujeito está presente e representa, de maneira deformada pelos processos defensivos, a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo inconsciente.

No texto “ Formulação sobre os dois princípios do princípio mental “ (1911), Freud opõe ao mundo interior, que tende para a satisfação pela ilusão, um mundo exterior que impõe progressivamente ao sujeito, por intermédio do sistema perceptivo, o princípio da realidade.

“ Cavaleiro andante, generoso, que ao invés de ficar só na corte imaginando aventuras, enfrenta o sol, o frio, as inclemências do céu e nada teme, nem gigante, cuja cabeça toca as nuvens.”(p.93). A importância da fantasia na etiologia das neuroses, cenas infantis patogênicas encontradas no decorrer da análise, levam Freud a percebê-la de forma diversa do que anteriormente fora mencionado, na medida em que a realidade aparentemente material dessas cenas não passava de “realidade psíquica”.

“ Já te disse que os encantos mudam umas coisas em outras, dando-lhes aparência diversa da verdadeira” (p. 130). No sentido psicanalítico a “ realidade psíquica” é uma forma especial que não pode ser confundida com a “ realidade material”. No texto inaugural da psicanálise, “ A interpretação dos sonhos” (1900), Freud analisa a fantasia e mostra que a sua estrutura é comparável à do sonho. A fantasia está na mais estreita relação com o desejo, na medida em que o desejo tem a sua origem e o seu modelo na vivência de satisfação. Na medida em que o desejo é articulado à fantasia, também é lugar de operações defensivas, dando oportunidades de defesa mais primitivos como: retorno sobre a pessoa (introjeção), a inversão de uma pulsão em seu contrário, a negação e a projeção.

Em “Conversações Clínicas com Miller” (2008), há o relato de um caso no qual há a construção do mito de si próprio como “o cavaleiro da armadura enferrujada”, onde o sujeito experimenta um ciúme patológico em tom delirante. A armadura enferrujada como uma metáfora da dificuldade desse sujeito, que na identificação com o pai denomina-se “ eu sou infiel”, caracterizando um ponto de basta enquanto metáfora paterna. Dom Quixote pela melancolia que lhe causara a tristeza prolongada, fora vencido. À liberdade de Sancho, sobrepõe-se a solidão do fidalgo, que perdendo o sentido da própria existência, é tragado por sua melancolia (p.217). Miller repensa a figura de Dom Quixote na clínica, com um possível diagnóstico de uma psicose extraordinária, onde no final recupera a razão e tem que procurar um sentido para sua existência. Não pensando enquanto cura, porém como algo que permite ao sujeito dar sentidos à própria vida.

“ D. Quixote queria experimentar as asperezas do mundo e assim conquistar a imortalidade” (p.137). Nesta obra de ficção, fundadora da literatura moderna, na qual o personagem conta sua própria estória, percebe-se Quixote desejando amar, Sancho enriquecer (p.132). Pensar a psicanálise pela via das artes, em especial através da literatura, permite uma aproximação com o quotidiano de nossas vivências, bem como interlocução com outros campos do saber, possibilitando um diálogo mais amplo acerca de conceitos psicanalíticos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CERVANTES, Miguel. Dom Quixote – Tradução Ferreira Gullar. Ed. Revan, R.J.
FREUD, Sigmund. Edição Standard das obras completas. Ed. Imago, RJ.
- A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901) Vol. VI
- Os Chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Vol. VIII
- “Escritores Criativos e devaneios” (1907). Vol. IX
- O Ego e o ID (1923). Vol. XIX
- “O Humor” (1927). Vol XXI

MILLER, Jacques-Alain
Efeitos Terapêuticos Rápidos em Psicanálise: Conversação Clínica com Jacques Alain Miller em Barcelona. Belo Horizonte: EBP - Scriptum Livros, 2008.

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