Iordan Gurgel, Psiquiatra; Analista Membro da Associação Mundial de Psicanálise e da Escola Brasileira de Psicanálise
O corpo é inconveniente, é um conflito: inicialmente é desgarrado e só encontra unidade através da imagem validada pelo Outro. Ele não está constituído de entrada; é com a incorporação da linguagem que é concebido. A entrada do significante negativiza o gozo primeiro, original, real que reinava antes da linguagem (Lacan em Radiofonia, 1970). A ação do significante torna o corpo um deserto, um vazio de gozo. Impõe-se então a incorporação da libido que acontece nos orifícios (ditas zonas erógenas) e envolve o corpo, com a função de recuperar no exterior do corpo o gozo perdido no seu interior. Em conseqüência, esta disposição pulsional, determina os objetos libidinais separados do corpo: o seio, as fezes, o olhar, a voz (semblantes do objeto a).
O primeiro período do ensino de Lacan sobre o sintoma, é o de retorno a Freud, onde prevalece a sobredeterminação simbólica e é conseqüente à noção do inconsciente estruturado como uma linguagem. O sintoma é um significante; é uma metáfora – expressão subjetiva do poder da palavra sobre o corpo; é uma mensagem enigmática que o sujeito toma como vinda do real e não dele próprio. A condição de mensagem é graças ao artifício da experiência analítica que introduz seu operador, o Sujeito suposto Saber. Sem ele, o sintoma não diz nada a ninguém. Neste período, a relação ao corpo é dada pelo imaginário, depósito de gozo.
O segundo período, que começa em 1964 (Os quatros conceitos da psicanálise), corresponde à articulação realizada entre sintoma e fantasma; prevalece o objeto a e sua articulação com o Real – entre sintoma e gozo. Coloca em evidência a pulsão e a modulação do sintoma pela repetição e satisfação. A vinculação do sintoma ao corpo é através do fantasma, cujo complemento corporal, em sua fórmula, é dado pelo objeto a.
O último ensino de Lacan é marcado pela relação do sintoma à letra, como irredutível. O inconsciente como um saber cifrado, cujo exercício é o gozo. Se o fantasma é o que recobre a falta no Outro, encontra um limite no sintoma, que é índice do fracasso do fantasma e um modo de tratar a falta. O sintoma é tomado como signo (como uma versão significante), e com uma versão letra (produtora de gozo). Há um limite da psicanálise em articular o fora do sentido da letra com o significante que lhe dê sentido.
Nos três momentos distintos do ensino de Lacan, observamos que o sintoma sempre está articulado ao corpo e o que varia é o conceito de conexão: metáfora, gozo e letra.
Neste percurso, o sintoma passa do modelo de mensagem – versão freudiana do sintoma como mensagem a decifrar, compatível com a noção lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem – à modalidade de gozo do sujeito – sintoma-letra que é imune a eficácia simbólica (é a passagem da lingüística para a topologia).
No seminário (XXIII, 1975/6) O sinthoma, a teoria do nó borromeu é reforçada – entendida como a estrutura essencial do sujeito – que tem no sinthoma o quarto nó que enlaça o RSI (e sempre ameaça desfazer-se). Esta concepção é o que permite ao sujeito viver, já que organiza um modo particular de gozar. Agora o sintoma é colocado no centro da clínica e já não se faz a diferença entre o sintoma e o fantasma – é a política da recusa do sentido , a política do real, correlativo ao conceito de falasser – termo que tão bem resolve a dicotomia corpo-significante.
Tomar o sintoma como acontecimento de corpo pressupõe os efeitos do discurso que afeta o corpo e deixa marcas indeléveis. O sujeito sintomatiza, não se reconhece aí; portanto, não se identifica ao sintoma. Esta característica é que faz o corpo falar – propriedade do homem, o falasser – e por outro lado, cria a disfunção, da qual o sujeito pode se queixar. Tratar então do corpo, implica a assunção da história do sujeito, marcada pela contingência.
Fragmento do texto "O SINTHOMA COCA COLA" apresentado na XVI Jornada Clínica da EBP-RJ , 2005
terça-feira, 14 de julho de 2009
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