domingo, 28 de junho de 2009

“Traço de espírito”

Maria Cristina de Távora Sparano
ProfªDrªdo Departamento de Filosofia e profª do Mestrado em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí-UFPI


A análise do filme “Um homem bom” (Good) teve como foco a conexão filosofia e psicanálise.
A ação do filme tem como cenário a Alemanha nazista e a ascensão nacionalista dos ideais de Hitler, principalmente em relação à raça ariana e à perseguição aos judeus. A personagem principal, John Halder tem como “traço de espírito” (a witz freudiana, no dizer de Lacan) - o engano – porém, com a particularidade de não causar o riso como no chiste, mas o espanto, pois a ação é dramática e não cômica.
Halder se enreda em situações inesperadas e inusitadas, é tomado por elas, deixando-se levar no limite do patético. Um exemplo disso, no filme, é o tema do romance que Halder escreveu como obra de ficção onde a personagem “por amor” a quem sofre recorre à eutanásia. O elogio a essa prática é aproveitado pela propaganda nazista e Halder ofuscado por ela, cede, ele mesmo é objeto do chiste.
Em filosofia, atitudes como as de Halder são analisadas à luz da razão e é por esse ponto de vista que podem ser criticadas. A racionalidade diz da impossibilidade de nossas ações serem incoerentes, i. é, as ações são o resultado de uma conduta racional e de acordo com princípios do conhecimento. Não posso agir contra aquilo que sei que é o melhor. Essa é uma postura ética e tem na ética aristotélica sua melhor dimensão. Na Ética a Nicômaco, texto de Aristóteles dedicado à Ética, temos os princípios de uma ética finalista que se convencionou chamar de “ética do bem”. No entanto, nesse mesmo texto, mais precisamente no cap. VII, Aristóteles fala de uma situação em que o homem é negligente com o fim de suas ações. Essa situação tem por nome “acrasia”. Ações acráticas são tidas como ações de incontinência moral ou concupiscência. Nos velhos termos de nossas avós são fruto de “fraqueza de vontade”, pois uma vontade forte, um caráter forte, não se deixa se levar pelas situações contingentes da vida, mesmo sendo convenientes ou inevitáveis. Essa conveniência é a isca que suborna um homem “fraco de vontade”. Halder é assim, sabe o que é bom e justo, mas é levado pela situação. Não resta dúvida que se atormenta um pouco, mas não acredita nas evidências, como a perseguição nazista aos judeus. Sua crença é verdadeira. O limite entre a verdade e o engano o leva ao auto-engano. No entanto, isso não o livra da angustia e se refugia, toda vez que é tomado por ela, na fantasia e então, ouve uma música, Mahler...
Freud na conferência 31 (1932) fala da “crise do eu” onde se evidencia a divisão da estrutura psíquica em: eu, super eu e isso. O centro da personalidade psíquica é o eu erguido como anteparo diante da morte e da finitude. O eu é aquela instância que tem como antítese o outro, que pode ser até ele mesmo. Assim, o eu pode ser o observador, mas também o observado quando tomado como objeto. A consciência moral tem essa função observadora e regula as ações do eu, vulgarmente chamado de super eu. Já os instintos do eu, a parte inacessível da personalidade, que não conhece nem o bem nem o mal, nem o justo nem o injusto estão presentes no conflito e na divisão da personalidade, são as forças do isso.
Freud diz que o eu obedece a três senhores: o mundo externo, o super eu ou consciência moral e ao isso. Assim também é Halder, submetido às circunstâncias da história (nazismo), às circunstâncias de sua própria história pessoal, a seus ideais e a seus impulsos mais básicos. Ao tentar agradar aos três senhores, só tem uma saída, a angústia e a fantasia.
A abertura ao inconsciente é o que Lacan chama de “traço de espírito” e que se revela nas ações da personagem quando este se engana diante das situações incontroláveis de sua vida. É uma possibilidade para a assunção do sujeito, do sujeito do inconsciente. Como ensina Freud, na mesma conferência: Wo es war soll ich werden*

* onde o isso era o eu pode advir

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