Claire
Zebrowski
Gostaria de interrogar a orientação do discurso e
a postura da psicanálise em relação à questão do autismo, nestes tempos em que
a sociedade promove os conhecimentos imaginários.
Minha observação não visa as escolhas feitas
pelas famílias, que estão tentando encontrar maneiras que levem seus filhos
autistas a avançarem, mas o discurso dos promotores dos métodos do tipo ABA, e
daqueles que excluem a possibilidade de um acompanhamento variado e livremente
organizado para cada pessoa com autismo.
O saber pronto para o
uso como sintoma de nossa época
No Petit Journal número 61 ,
Laetitia Belle recorda um artigo de François Leguil publicado na revista Mental.
A partir da fórmula dada por Jacques-Alain Miller «Os usos do sintoma», em seu
curso da Orientação lacaniana, François Leguil sustenta: «Nós podemos
opor à noção de uso a de modo de usar; aos modos de usar, de preferência, se
pensarmos em sua proliferação quase persecutória, como a proliferação que é o
preço das técnicas»2 . Esta distinção me evoca a evolução dos
conhecimentos na sociedade capitalista contemporânea. Falo dos conhecimentos no
plural e, não do saber no singular, porque o saber não se manifesta mais tanto
como veículo das idéias – políticas, sociais, religiosas –, mas antes, como
verdades contíguas aos objetos de conhecimento, à maneira das aplicações para
os iphones. O saber é «tecnificado» [technifié],
diretamente colado ao objeto, reificado. Deve ser eficaz como mostram a
referência aos peritos, a generalização das políticas de avaliação, ou
ainda a leitura montada numa escala que as TCC aplicam à humanidade, e vem daí,
o método ABA apresentado como única fonte de saber sobre o autismo.
O artigo «Uma semana com o ABA», publicado no
Lacan Cotidiano n º 1973, mostra bem o tipo de «saber» que se busca
para inspirar àqueles que trabalham com pessoas autistas. Este é um saber que não deixa espaço para a troca, que não
pode ser discutido. É assim que Sylvie Dagnino, enfermeira em um
centro infantil, narra a semana de formação no método ABA que ela seguiu:
«Durante os primeiros dois dias, é passado o essencial da formação. Nos dias
seguintes, o treinador repete as mesmas afirmações, ordenados em sequências
curtas de edição de vídeo. Há poucas trocas com os participantes, pouco espaço
para as perguntas». Gestos marcados, a altura da voz do treinador, cativam a
atenção, «impedindo qualquer reflexão pessoal», «seu discurso não deixa espaço
para a incerteza».
O que se entende, é que o método ABA, essa
«análise aplicada aos comportamentos» como o nomeia a treinadora, é dado como
uma verdade eficiente. Este é um saber agarrado ao seu objeto por um «é assim»,
o que retorna quase como identificar a palavra a um real. Poderíamos nos preocupar com o risco exposto pelo
método ABA de levar a um discurso de ódio. Retomemos com
Jacques Lacan. No Seminário, Livro 1, em que ele situa as três paixões,
que são o amor, o ódio, e a ignorância, em relação às três ordens do simbólico,
do real e do imaginário: «Na junção do simbólico e do imaginário, nesta fenda,
se quiserem, esta aresta que se chama amor - na conjunção do imaginário e do
real – o ódio e, na junção do real e do simbólico, a ignorância»4.
O ódio, é, portanto, o que se encontra quando não
há mais o simbólico, quando a linguagem foi ejetada e apenas o imaginário e o
real se emaranham. A psicanálise não diz «a cada problema há uma solução»,
ela afirma que a qualquer situação corresponde um saber pronto para ser
usado. Ela sustenta que a relação não existe, e que diante do enigma, trata-se
de se questionar e não, de início, responder. É
esta posição interrogativa do sujeito que determina o verdadeiro e o falso, nos
diz Lacan.5 É daí que me vem,
portanto, uma política da ignorância.
Política da
ignorância
Ainda no Seminário 1, Lacan coloca a
pergunta: «O que é a ignorância? É uma noção certamente dialética, porque é
somente na perspectiva da verdade que ela se constitui como tal»6. Ignorância e verdade
fazem par.
No que diz respeito ao psicanalista, a ignorância é uma postura,
que funda a sua ética. Lacan prossegue assim : «Em outros termos, a
posição do analista deve ser a de uma ignorantia docta, o que não quer
dizer sábia, mas formal»7. Segundo Le Petit
Robert, formal é o que, por um lado, é preciso e afirmativo: o psicanalista
tem que ser preciso e afirmativo. E, por outra parte, o formal é o que concerne
à forma: o psicanalista tem a fazer com a estrutura do saber. Ora, na estrutura
do saber, é precisamente aquela em que existe uma hiância, uma não-relação no
coração de todo saber. O saber do psicanalista não é «tecnificado», ele não
supõe que isso anda. Ao contrário, o que ele sabe é que isso não anda necessariamente,
ou seja, que não há necessidade que isso funcione, que isso fracasse. O psicanalista toma, portanto, a postura do ignorante no
sentido em que há saber sobre esta hiância. É o que funda a sua ética, porque é
a partir dela que ele opera, e é daí que ele pode ouvir o que cada sujeito tem
de único. Estamos muito distante do método ABA, que expõe as
pessoas autistas a comportamentos calcados em modelos imaginários de
normalidade. Inversamente, a psicanálise aposta que um sujeito autista tem algo
a inventar e não apenas a imitar, e que isto não se mede em termos de eficácia.
É neste sentido que o ato analítico pode permanecer um ato ético.
Vamos ao segundo tipo de ignorância da qual quero
falar: uma ignorância de caráter político. Esta idéia me vem da seguinte
leitura do Seminário 1: «A tentação é grande, porque está em
voga, neste tempo do ódio, transformar a ignorantia docta, no que
chamei, não é de ontem, uma ignorantia docens. Que o psicanalista
acredite saber alguma coisa, em psicologia por exemplo, já é o começo da sua
perda»8. A ignorância do
psicanalista deve ser douta, no sentido formal como nós vimos, e não docens,
científica. Em outras palavras, o saber em psicanálise não é da ordem do
conhecimento, nem da representação.9 O psicanalista não prega
um saber total, totalmente imaginário poderíamos dizer, ele não busca
professar, e seu discurso público se ressente disso. Quanto ao «tempo de ódio»
do qual fala Lacan em 1954, ou seja, menos de dez anos após o fim da segunda
guerra mundial, pode-se considerar que não tem mais validade hoje. Entretanto,
a imagem de nossa sociedade, a ascensão ao zênite do objeto a como o
formula Jacques-Alain Miller, sem mencionar a perturbação da ordem simbólica,
devem despertar a nossa vigilância quanto ao empuxo dos discursos em forma de
injunção à um modelo. O real e o imaginário fazem raramente um bom conjunto
quando são desatados do simbólico. As pesquisas mostram que o autismo faz
enigma, e é por isso que uma abordagem no plural é necessária. Assim, contra a
onipotência dos saberes sintomáticos de nossa época, prontos ao uso, contra as
suas aplicações sem mediação sobre o autismo, eu tomaria o partido de uma
política da ignorância em psicanálise, que deixa lugar ao saber inédito de cada
sujeito.
As referências
bibliográficas encontram-se no fim deste número.
Claire Zebrowski apresentou esta
intervenção por ocasião do FORUM POUR UN ABORD CLINIQUE DE L'AUTISME, que
ocorreu em Angers nesta quinta, dia 14 de junho.
Para uma informação sobre o conjunto dos fóruns
organizados em toda a França: