sexta-feira, 13 de julho de 2012

A INFÂNCIA SOB CONTROLE


Miquel Bassols


Essa intervenção foi feita em Barcelona, durante uma reunião preparatória para o Fórum 3 do ELN, que acontecerá em Sevilha, 2 de junho de 2012, sobre o tema « O quê a avaliação silencia: a infância sob controle » 

1) A infância, tal como a concebemos, nem sempre foi definida da mesma forma. Isto é um fato, que já tinhamos destacado a partir dos estudos, por exemplo, de Philippe Ariès e da História das mentalidades. O tempo designado como “infância†mudou consideravelmente ao longo da história, o quê nos indica que a infância é, antes de tudo, um fato de discurso. O que entendemos hoje por “infância†é necessariamente constituído como um “tempo passado†, mais ou menos idealizado, como um lugar situado em e a partir do discurso do Outro. Aliás, é sempre oportuno lembrar, como Lacan o fez em várias ocasiões, a etimologia do termo infância que provém de infans: (in-fari) alguém que não é capaz de falar, não para articular as palavras, mas para falar em público, de se representar no espaço público enquanto que sujeito do discurso. A infância é, portanto, constituida primeiramente como um lugar anterior e exterior a um discurso. A criança é assim aquela que deve permanecer necessariamente sob a responsabilidade do Outro, sem ser capaz de se tornar sujeito de uma responsabilidade social.

2) E porquê se deveria “controlar†esse fato de discurso? Porque a infância veio para designar também algo ignorado na vida de cada sujeito, algo que permanece também fora do discurso, como o que, simultaneamente, é o mais íntimo e estranho, o que é o mais idealizado, mas também o mais escondido. Se Freud pôde dizer que qualquer lembrança é uma lembrança encobridora, a infância é, como experiência de um tempo subjetivo, a lembrança encobridora por excelência de cada sujeito: ela sempre esconde um segredo familiar, ela é o véu, a tela de um segredo sempre ignorado.

3) E qual é esse segredo, sempre ignorado? É, primeiramente, o segredo do quê chamamos de “gozo†, quer dizer, uma experiência em torno dos diversos objetos pulsionais. A infância torna assim presente o objeto de uma experiência de gozo para cada sujeito. “A infância sob controle†é então a infância como um objeto das práticas do controle do Outro – das práticas de poder, vigilância e castigo (cf. Michel Foucault). A infância como objeto também é, necessariamente, o lugar de uma segregação. Ela faz série, historicamente, com o lugar da loucura e da mulher. Lembremos a observação de Jacques Lacan em 1968, no seu “Alocução sobre as psicoses da criança†: a segregação é “o fator, o problema mais candente em nossa época, enquanto que, a primeira, ela tem que sentir o questionamento de todas as estruturas sociais pelo progresso da ciência2†. Lacan antecipou assim a segregação como o fenômeno que se estende em nosso universo “de maneira cada vez mais premente†.
Apesar das boas intenções de qualquer política de integração, como não se pode notar que a infância é atualmente um objeto de segregação, na medida em quê ela é inerente à função do objeto como resto de um gozo? Não se têm garantias de que uma maior atenção e uma vigilância reforçada possam preservar a infância desta separação estrutural. Pode-se ver estes efeitos em determinadas políticas de integração a todo o custo da criança “diferente†, integração que duplica, na verdade, este efeito de segregação. Sob o ideal de normalização da criança sempre haverá este lugar do objeto “segregado†como resto de gozo.

4) A criança foi e é objeto do gozo do Outro, especialmente como um objeto sexual: presume-se que esta observação faz parte - assumida como tal - da descoberta freudiana. Mas, identificar a infância como objeto não foi o ponto mais subversivo desta descoberta. A verdadeira descoberta - já presente nos “Três ensaios sobre a teoria sexual†de 1905 – é de ter ouvido o sujeito da infância como um sujeito de pleno direito na sua relação ao inconsciente e ao desejo. Há algo mais subversivo ainda do quê de ter atualizado o lugar da criança como um objeto sexual: é a idéia de um gozo sexual na infância, a idéia de que existe um sujeito, responsável por um desejo e um gozo, no espaço que se designa como “infância†; é também o fato de que se tenha uma responsabilidade no sujeito do inconsciente freudiano, que se estende para a infância o lugar de um sujeito da fala e da linguagem.

5) Quem está pronto hoje para assumir esta verdade e seus efeitos nos diversos campos do saber e nas práticas que são-lhe proprias? Mantemos normalmente um silêncio sobre a infância como lugar de um sujeito de desejo e de gozo.
O discurso científico, na sua aliança com o discurso do capitalismo, se lançou decididamente numa estratégia de avaliação, contrôle, vigilância e triagem da infância, como sujeito de um gozo que se torna intolerável, que augura mesmo o pior dos destinos sociais. É preciso se lembrar das campanhas realizadas em vários países para a prevenção da delinquência adulta, nas escolas, a partir do controle avaliador das crianças.
O discurso jurídico tem atualmente encontrado dificuldades em identificar a responsabilidade do sujeito da infância: a partir de que momento um sujeito pode ser considerado legalmente responsável por seus atos? A aplicação das leis faz recuar este momento a uma idade cada vez mais precoce.
O discurso pedagógico, entretanto, continua atualmente claramente dividido entre uma visão da criança como objeto de um controle e de uma prevenção dos “distúrbios†do mundo adulto, e uma visão da criança como um educando, um sujeito de experiência em relação ao saber.
6) Para o discurso psicanalítico, a criança é, primeiramente, um sujeito-suposto-saber da mesma forma que o adulto. Foi o comentário feito por Jacques-Alain Miller na intervenção durante as Jornadas da Criança, em março de 2011, com o título A criança e o saber:
“É a criança, na psicanálise, que é suposto saber, e é mais o Outro de que se trata educar, é o Outro que deve aprender a se segurar. Quando este Outro é incoerente e dividido, quando ele deixa assim o sujeito sem bússola e sem identificação, trata-se de elucubrar com a criança um saber ao seu alcance, à sua medida, que possa servir-lhe. Quando o Outro asfixia o sujeito, trata-se, com a criança, de fazê-lo recuar, para fazer com quê esta criança respire. Em todos os casos, o analista está do lado do sujeito†.

Escutar e ouvir a infância como sujeito-suposto-saber implica tomar cada criança como um ser que fala, como um falasser, mesmo quando ele é falado em demasia pelo Outro como infans, como sintoma deste Outro, mas sujeito enfim responsável do desejo e do gozo que o habitam, sempre fora de controle.

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