quarta-feira, 25 de março de 2015

Psicanálise, Cinema e Conexões


Filme: Eu, Christiane F. 13 Anos, Drogada e Prostituída.
Diretor: Ulrich Edel.
Comentários:
Ricardo Cruz, Psicólogo, aderente do CEPP.
Thadia Eulalio, Psicóloga, aderente do CEPP.
Data: 28/03
Horário: 8:00h
Local: Auditório da ADUFPI
Apoio: ADUFPI e Programa de Pós-graduação em Antropologia-PPGANT/UFPI





domingo, 15 de março de 2015

Hiperativos e outros tufões por Jacques-Alain Miller


Sexta-feira, 13 de fevereiro

Eu havia me prometido ler o artigo do último Obs sobre a hiperatividade. Conforme à nova estratégia editorial do semanário, o título está na sua cara: “Seu filho é hiperativo?” O porquê do artigo está no encarte: “A Alta Autoridade da Saúde reconhece a hiperatividade”.
A formatação da página tem toda a cara de informe publicitário: retratos de crianças ladeados pelos nomes de especialidades. Paradigma: «Com a Ritalina, Hector passou rapidamente a sentir-se melhor». Contudo, o texto, este é a boa nova. Ele destaca em particular que o TDA/H – transtorno do déficit de atenção, com ou sem hiperatividade – “continua a ser objeto de uma forte guerra dos psis na França”. Exato: a maioria dos praticantes nos CMP (centros médicos psicológicos) não veem nele um transtorno a tratar pela molécula ad hoc, mas um sintoma ligado a um conflito íntimo, a desfazer pela fala.
François Gonon, neurobiólogo do CNRS em Bordeaux, mostrou bem que o déficit de dopamina incriminado no transtorno de atenção não existe, a Educação Nacional não persiste menos a falar da hiperatividade como uma doença neurológica. E a redatora do Obs, Anne Crignon, não deixa de citar Jordan Smoller, professor na Harvard School of Public Health, autor de um célebre pastiche descrevendo a infância como “uma doença cujos principais sinais são o nanismo, a imaturidade e a instabilidade emocional”, e Jörg Blech, do Spiegel, por seu livro sobre Os inventores de doenças.
Em Big Pharma, tudo é dito com justeza: “Nos Estados Unidos, onde a publicidade de medicamentos é autorizada na televisão, centenas de milhares são gastos para promover o diagnóstico da hiperatividade (...). O conceito de hiperatividade se espalha pelo planeta, assim como o de “transtorno bipolar” (...) “Recrutar doentes”: é assim que se fala nos corredores das firmas.”
Um diagrama, na página 66, informa o leitor sobre a prescrição de Ritalina em número de doses por 1000 habitantes. Islândia, Canadá e Estados Unidos se mantêm no topo. A França e o Reino Unido estão ficando pra trás. É aí que os esforços do marketing se concentram. Como pode ser que o leitor não se desprenda do sentimento de que Obs, com suas sete páginas, suas fotos, seus grandes títulos, participa, queira ou não, desse esforço?
Em contrapartida, as duas páginas que Éric Favereau dedicou ao mesmo assunto no Libé de ontem, não induzem ao mal estar: é direto e sem rebarbas. Duas entrevistas que dialogam completam a análise. A primeira é com o excelente Bruno Falissard, politécnico que se tornou psiquiatra infantil, que eu zoei no passado por sua esperança de Medir a subjetividade na saúde (Masson, 2001; 2e éd. 2008). O outro dá a palavra a Patrick Landman, psiquiatra e psicanalista, presidente do grupo Stop-DSM, no qual a Escola da Causa Freudiana está representada; ele acaba de publicar pela Albin Michel ToushyperactifsA incrível epidemia de transtornos de atenção; ele vê nos TDA/H uma “construção social”.
Régis Debray
Como distinguir uma criança hiperativa de uma travessa ou superdotada, ou ainda fora dos padrões? Quando conheci Régis na Escola Normal, ele já tinha 22 anos, mas ainda era considerado superdotado, e não apenas porque entrara cacique[1] (primeiro) dois anos antes, em 1960. Ele era membro da UEC (União dos Estudantes Comunistas) como a maioria dos althusserianos, mas, em relação a esse grupo, ele ficava à parte, um pé dentro e outro fora, no canto, um meio-sorriso não tolo, não sem irritar os tolos. Nós também éramos pedantes, e quando eu, por minha vez, entrei em 1962, logo fui informado de que Régis, claro, era Régis, um grande futuro estava reservado a ele, mas que era um estilista, um literato, e em filosofia não tinha um conhecimento sólido.
Aconteceu-me, depois disso, de encontrá-lo algumas vezes, mas foi de longe, e ao ler seus livros, que acompanhei sua carreira. Em suma, durante longo tempo ele jamais “pertenceu”. Durante toda a sua vida ele terá mantido o seu lado gato de Kipling[2], que segue sozinho, já bem desenhado outrora. Para os animais desse tipo, a sociedade previu, quando têm um grande talento, espaços reservados: as academias. Eles se avizinham, não se recrutam, não se identificam senão à sua própria diferença. Por muitas razões ele tem seu lugar entre os Goncourt. Ali ele é justamente vizinho de Bernard Pivot, que ele assassinou no passado, novo Lorenzaccio, pela “ditadura” que este exercia no “mercado do livro”. Ei-los, não déspotas, mas oligarcas. “De resto, os melhores filhos do mundo”.
Se evoco Régis, é porque La Croix ontem, e Marianne hoje, dedicaram-lhe, um uma página, outro duas, sobre o lançamento de seu novo livro, Un Candide à sa fenêtre. Para dizer que ele escreve rápido e bem, e que publica mito, o sr. Raspiengeas, do jornal católico chama-o de “esse grafomaníaco”, o sr. Conan, do jornal sui generis, de “esse polígrafo de gênio”.  Para o sr. Conan ele é “desengajado”, “entregou os pontos”, “não quer mais lutar”. O sr. Raspengeas pensa o contrário: ele o designa como alguém que “parece indiferente, mas sua pluma cospe fogo”. De fato, os dois o mostram ferrenho contra “a literatura sem escrita”; “o romance sem ficção”; a arte contemporânea, “folclores para elites transnacionais”; “a classe dirigente” inculta etc.. Esses dois artigos me fariam comprar o livro, se já não o tivesse feito. Agora preciso lê-lo. Gostaria de comentá-lo antes que saia o próximo.
No verso da página Debray, La Croix destaca dois lançamentos recentes sobre a derrota de 1870, “matriz de nosso século XX”. Tendo em vista a referência a esse episódio doloroso de nossa história que utilizei na quarta, em meu acesso de francofobia,no mínimo será bom que eu os leia. E já quero adquirir o Diccionnaire biographique des Protestants français de 1789 à nos jours, cujo primeiro tomo acaba de ser lançado: “Os protestantes são Franceses de pleno exercício desde 1787”, destaca Patrick Cabanel. Para os judeus, a data será 13 de novembro de 1791.
Roland Dumas
Luc Le Vaillant fez na última página do Libération um retrato do advogado ex-ministro. Aos 92 anos, dificilmente alguém é hiperativo, mas permanece fora das normas quando sempre foi. Será que isso é bom? Será que é mau? A gente nem suspeita disso: é um monumento. Não farei seu retrato, ele era próximo demais da família Lacan, especialmente de Sylvia, que ele encantara, como fazia com todas as mulheres, até a sra. Thatcher, parece, sem malícia. Sylvia lhe dera um apelido afetuoso e debochado que, acho, ele não conhece. Direi a ele quando nos encontrarmos.
Sylvia o havia conhecido por ocasião do processo da “rede Jeanson”[3] (os “porteurs de valises” da FLN). Sua filha mais velha, Laurence Bataille era uma; ele foi seu defensor; ela havia sido condenada a três meses de prisão. Mais compromisso, seu sobrinho Diego, filho de sua irmã Rose e de André Masson, por três anos. Sylvia apresentou Roland a seus próximos, os Masson, os Giacometti (ela era muito amiga de Annette), os Leiris, e por meio de Zette e Kahnweiler, seu pai, ele teve acesso a Picasso, que também gostava muito dele.
Roland havia sido resistente quando muito jovem. No pós-guerra ele foi o advogado vitorioso de Georges Guingouin, comunista, uma alta figura da Resistência, e ganhou o reconhecimento do Partido. Foi membro do coletivo dos advogados do FLN, juntamente com Vergès. Por mais de dez anos também foi advogado do Canard enchaîné. Era, portanto, um homem de esquerda com pedigree, um impecável maçom, e sua devoção pessoal a François Mitterrand era completa.
Ele sempre soubera conservar, ao mesmo tempo, relações com personagens situadas à direita e à extrema-direita.«Seu feixe não era avaro nem odiento»[4]. Nada do que fosse humano lhe era estrangeiro. Ele tinha uma coleção de longas colheres para jantar a seu bel prazer com diabos e diabretes. Ele exerceu nove anos em “escritório agrupado” com um antigo primeiro secretário da Conférence du Stage[5], Jean-Marc Varaut, católico de direita formado pelos Oratorianos[6], monarquista da Action Française[7], um dos animadores, em 1966, da campanha presidencial de Tixier-Vignancour, antigo ministro de Vichy (diretor de campanha: Jean-Marie Le Pen), que, para surpresa geral (ou talvez não tão geral assim, não é mesmo?), no segundo turno apoiará Mitterrand. “Partilhei com o professor Varaut mais metros quadrados do que ideias políticas”, dirá Roland, malicioso e enternecedor. Quanto a Jean-Marc Varaut, ele foi eleito para a Academia das Ciências Morais e Políticas.
Deste modo Roland tinha seu acesso a lugares recônditos. Ele sempre teve, por exemplo, um excelente acesso aos poderosos do mundo muçulmano, particularmente o coronel Kadhafi, a quem levou o presidente Mitterrand para um encontro secreto em Creta, e o general Tlas, ministro sírio da Defesa, e homem forte do regime de Hafez al-Assad, pai de Bachar.
Com o passar do tempo, ele relaxou cada vez mais, e um Dumas 2º emergiu do primeiro. Um Dumas que não se incomodava em beijar Marine Le Pen nas duas bochechas, que dava seu apoio ao companheiro dela para que ele chegasse ao estatuto de advogado, que se permitia rir sem maldade nos espetáculos de Dieudonné, que declarava sem rodeios o ceticismo que lhe inspirava a versão oficial dos atentados de 11 de setembro: “Não acredito nisso”.
A esse respeito me ocorre, Roland, que em um de seus últimos livros de memórias você relata com surpresa que alguém lhe disse que eu havia dito que Lacan era antissemita. E você traz seu testemunho de defesa: nada em minhas interações com Lacan, você diz, jamais me deu essa impressão (cito de memória).
O que eu disse em meu curso, Roland, foi o seguinte. Aos 23 anos, sabemos disso com certeza por uma carta a Maurras da famosa Pampille, sra. Léon Daudet, Lacan era maurrassiano, portanto, conforme qualquer verossimilhança, antissemita ou colorido de antissemitismo ou cultivando-o. E é esse mesmo homem que se apaixona por uma atriz judia casada com outro homem, perde sua legítima esposa em vez de romper com ela, salva sua amante do pior ao recuperar com coragem seu dossiê e o de sua mãe no comissariado de Cagnes-sur-Mer, e dá à filha fruto desse adultério, nascida em 1941, o nome de Judith. Depois ele se casa com Sylvia e consegue dar seu sobrenome a Judith. Obrigado, Roland, mas você acha realmente que era preciso dar-se o trabalho de lavar a memória de Lacan de uma acusação difamatória que eu teria dirigido a ele?
Para tornar mais leve a atmosfera, vou contar-lhes uma anedota. Eu ainda estava na Escola Normal, e perguntei a Lacan: “Dentre todos aqueles com quem você se relacionou, quem você mais admirou?” Ele me respondeu: “Koyré, Kojève, Lévi-Strauss, Roman Jakobson”. E acrescentou: “Todos sabiam cozinhar”. Era uma alusão ao que dissera de Althusser, que era um excelente cozinheiro. Esses quatro tinham outro traço comum.
O que é certo é que Lacan não era um desses humanistas em pele de cordeiro para quem o judeu não existe, para quem o judeu é uma ilusão “essencialista”, como dizem nos Diafoirus de hoje.

Cortes da mídia
Tenho ainda algo a dizer sobre sete artigos que selecionei na imprensa de ontem e hoje. Prometo ser breve, pois só me resta fazer isso.

A insegurança cultural
1. - O conceito de insegurança cultural é tão pertinente que acham que ele nasceu no momento atual. Não é nada disso. Ele foi introduzido pelo professor Laurent Bouvet, que lhe dedicou um livro, lançado em 7 de janeiro pela editora Fayard. Eu o lerei sem falta. O conceito designa “um clima” determinado pelo “tensionamento das referências, sejam elas econômicas, sociais ou culturais, de populações na primeira linha da mundialização e de seus efeitos, particularmente europeus”.
O sr. Bouvet pensa também que populações que de fato têm os mesmos interesses de classe (não, ele diz “interesses comum, não ouso dizer de classe”) opostos às elites, são abusivamente clivados por diferenças culturais que na realidade são secundárias, mas que elas elites precisamente têm interesse de manter e aumentar (Libération, 12/2).

O mutismo do muçulmano moderado
2. - Asne Seierstadt, escritora norueguesa, articula em duas páginas do Libé o massacre de Utoya, de 22 de julho de 2011, 77 mortos, e o recente massacre de Paris. «O objetivo declarado de Anders Behring Breivik era purificar a Europa dos muçulmanos. (…) Os terroristas franceses representam exatamente aquilo contra o que Breivik lutava».A Noruega não é otimista: «Por todo lado no mundo muçulmano as vozes liberais se calam, seja porque os imãs moderados são mortos pelos jihadistas, ou então porque os militantes laicos são presos e torturados pelos regimes autoritários».
Oh! Os regimes muçulmanos autoritários não são necessariamente detalhistas, eles torturam e matam igualmente os jihadistas e os irmãos muçulmanos. É o caso, em particular, do regime do excelente Al-Sissi no Egito, o salvador de nossa indústria aeronáutica e de seus empregos. Isto me faz pensar que vi anunciada na Harper o lançamento próximo do novo livro de Ayaan Hirsi Ali, herege. (Libération, 13 de fevereiro).

Entender-se melhor
3. – Não existe mal do qual não possa sair um bem. O massacre em Paris já teve essa consequência positiva que “os delegados diocesanos pelas relações com o islã querem aproveitar uma retomada da atenção para propor aos cristãos e aos muçulmanos que se entendam melhor”. É nesses momentos que a Igreja é admirável. Os lírios dos campos não fiam nem tecem, mas a Igreja sim, ela tece indefinidamente laço social, e remenda sem se cansar o tecido rasgado da pobre França.
Muçulmanos e cristãos, compreender-se melhor? Trabalho aqui no mesmo sentido, acrescentando também os judeus, o que não é uma tarefa fácil, pois, no campo da decência, eles deixam muito a desejar. O que querem? Não são universalistas. Suplico-lhe, Roland, que não diga em seu próximo livro: Desta vez eu digo tudo, que o antissemita não é Lacan, sou eu.
Os judeus têm algo de excessivo, de que eles mesmos debocham, e que denominam por uma palavra em ídiche que é menos familiar aos franceses do que aos americanos. O mais simples é eu reproduzir aqui a nota muito bem feita pela Wikipédia.
«Chutzpah é uma forma de audácia, para o bem ou para o mal. A palavra vem do hebreu huspâ (חֻצְפָּה), que significa «insolência», «audácia» e «impertinência». No uso moderno, essa expressão adquiriu um leque mais variado de significações. Em hebreu, a palavra chutzpah marca uma indignação dirigida a alguém que ultrapassou de modo ultrajante e desavergonhado os limites do comportamento aceitável. Em iídiche e em inglês, a palavra tem conotações ambivalentes, e até positivas. Chutzpah pode ser utilizado para exprimir a admiração em relação a uma ousadia não-conformista. Contudo, em Les Joies du Yiddish, a expressão é ilustrada pela história do parricídio implorando a indulgência do tribunal ao exclamar «Tenham piedade de um pobre órfão»... A palavra também passou do iídiche ao polonês (hucpa), ao alemão (Chuzpe), ao holandês (gotspe) e ao inglês (americano); ela designa a arrogância, a audácia, a ousadia e a ausência de vergonha».
Para voltarmos às nossas ovelhas islamo-cristãs, La Croix me informa então que a Conferência dos Bispos da França criou o Serviço das Relações com o Islã (SRI). Seria oportuno que a Associação Mundial de Psicanálise fizesse a mesma coisa? Eu perguntaria a seu presidente, meu amigo Miquel Bassols. Ele é Catalão. Os Catalães têm a reputação de ser os judeus da Espanha, mas são judeus sem chutzpah: ela lhes foi cerceada pelos Castelhanos. No lugar disso, eles têm o par seny e rauxa, o bom senso apimentado pela loucura das grandezas. Ver Raymond Lulle, santo na Catalunha, conhecido em seu tempo (1232-1315) como «Arabicus Christianus»; Gaudi; e Dali (La Croix, 13 de fevereiro).

Os poderes da fala
4. – É ainda La Croix que me informa que a História da França, da qual eu falava outro dia, está em vias de ser reescrita de cabo a rabo por Jean-François Kahn, no estilo hiperativo e super vitaminado que ele tornou famoso em Marianne: interpelações, exclamações, ênfases, amplificações, hipérboles. Ele já está no tomo II, no período 100-430, e o tomo I está em edição de bolso. Vou ter que correr atrás disso tudo.
Frédéric Mounier, que o interroga, intitula a entrevista com uma frase de Kahn: «A trindade é um re-questionamento da parte mais terrificante do monoteísmo». É muito astuto isto, muito preciso, faz pensar. Mas eu digo para mim mesmo que JFK não deve ter uma excessiva benevolência pelo islã, onde o Um é exclusivo de todo «shade of grey».Inclusive, ele confidencia que é a favor de aceitar todos os mitos fundadores de «nossa identidade nacional», dentre elas a batalha de Poitiers e Joana d’Arc.
Para fazê-lo, ele recomenda a tese de Raymond Aron, 1938, já não é muito lida. Ele reteve disso que, diz, «o historiador faz verdadeiramente a História ao contá-la». Em suma, diria Mallarmé, a França é feita para resultar em um belo livro de Jean-François Kahn. Não haverá aí, em um judeu que no entanto manifestamente assimilado, como que um dedo dechutzpah?
Eu adoraria que JFK recebesse minha provocação. Eu o faria sustentar esse texto por seu primo, meu amigo Gilles. (La Croix, 13 de fevereiro).

Problemas da laicidade
5. - Apressemos o passo. Em Marianne, duas matérias sobre a laicidade. O sr.Claude Obadia, professor certificado[8] de filosofia, conta sua surpresa que a Inspetoria Geral de Filosofia, assim como o SRI, tenha aproveitado o massacre de janeiro para oferecer aos professores de filosofia das academias da região de Paris a possibilidade de se formarem em «Recursos filosóficos e espirituais do islã.»
Eu me pergunto quem orienta a Inspetoria Geral de Filosofia atualmente. Antigamente, era meu velho mestre Canguilhem. Ele era conhecido por fazer chorar as jovens mulheres filósofas cujo exame passava por ele, mas era um republicano irrepreensível e um convicto laico. Hoje, é como estar em um episódio de Soumission, a farsa de Houellebecq. E as pessoas dão um sorriso amarelo. Nenhuma ofensa aquia os Asiáticos, o amarelo em questão sendo aquele do colorido dos doentes do fígado. Nenhuma ofensa também aos doentes do fígado. Como politicamente correto, não se sabe o que fazer.
Sempre acontece de o sr. Obadia pedir modestamente que se pense um pouco nos «valores que definem a República», assim como nos pais fundadores de nossa laicidade, dentre os quais se incluem Renouvier, Victor Cousin, Durkheim, e Ferdinand Buisson.
Em relação a isso, um texto assinado pelo presidente e pelo secretário geral do Observatório da laicidade. Trata-se desse organismo oficial instalado em abril de 2013 pelo sr. Hollande, que observou as coisas tão bem que seu presidente, sr. Bianco, havia concluído em junho do mesmo ano: «A França não tem problema com sua laicidade.»
Essa frase ficou. O alto funcionário lamenta que ela tenha sido «demasiadas vezes deformada.» Sem dúvida ele quer dizer que ela não foi compreendida de acordo com sua intenção de significação, pois o enunciado, por sua vez, circulou intocado. Esta frase - «pura como a alvorada», Althusser poderia talvez chamá-la de lírica - alcança tamanho auge na negação dos fenômenos empiricamente observáveis, que só poderia ser explicada por elevadas considerações de filosofia moral e política que justifiquem pisotear qualquer fetichismo dos fatos. É este o caso. O sr. Bianco sustenta de fato que «a unidade da República não é a uniformidade». Distinção crucial. Aqueles que confundem unidade e uniformidade, nós os chamaremos de monoculturalistas. Os outros, que fazem a distinção que, segundo o sr. Bianco, se impõe, serão multiculturalistas.
Ora, então, tudo o que aparece aos ‘mono’ como violações inéditas da laicidade, a combater arduamente e sem trégua, constitui, ao contrário, para os ‘multi’, progressos criativos que para prosperar precisam apenas da neutralidade dos poderes públicos; neutralidade que seria, segundo eles, a essência da laicidade.
Esse exemplo serve para ilustrar como pode ser relativo o estatuto do fato, em relação às interpretações que ele suscita. De modo algum isto impede que o sr. Bianco preconize com grande alarido “o desenvolvimento do ensino laico do fato religioso”. Se não me engano, essa ideia foi promovida no passado por Régis Debray, entre a publicação de duas das suas obras mais trabalhadas e mais retumbantes: Dieu, un itinéraire, 2001; L’Enseignement du fait réligieux dans l’école laïque, 2002, com Jack Lang; Le Feu sacré: Fonction du réligieux, 2003.
Já naquela época eu estremeci. Régis me viu estremecer. Isto não o agradou, ele me havia dito. Eu me pergunto se ele ainda está nessa mesma sintonia. Eu saberia, talvez, ao ler seu Candide. Sempre acontece de o sr. Bianco se regozijar por já ter sido encontrado pela sra. Vallaud-Belkacem, que criou «vagas de pesquisadores sobre islamologia». Os ‘multi’ congratularão o sr. Bianco, ao passo que os ‘mono’ pensarão que isto não pressagia nada de bom (Marianne, 13 de fevereiro).

Diplomas de laicidade
6. - O último texto é uma joia. Ele saiu esta noite em M, le magazine du Monde, cuja capa é ornada com uma bela foto em preto e branco do sr. Marc Ladreit de Lacharrière. O bilionário parisiense, self made man cujo nome remonta às Cruzadas, tem no olhar o mesmo brilho que o ator Jean Le Poulain, hoje falecido. M lhe dedica sete páginas. Mas foi a pequena nota «mediante convite» de Guillemette Faure que me deteve. Se eu me escutasse, passaria in extenso, e tudo estaria dito.
Vocês sabem bem? Em um dia de 2007, Nicolas Sarkozy, então ministro do interior, convocou o chefe do gabinete central dos cultos, funcionário de seu ministério, para intimá-lo a estabelecer uma formação universitária em interculturalidade (é assim que se pronuncia) e em laicidade. Ele lhe deu o prazo de um mês.
Sr. Didier Leschi - é o nome do chefe do gabinete - solicita, a César o que é de César, à Sorbonne. Recusa. Pedido reiterado. Nova recusa. Por quê? «Isto atrairá barbudos para nós, essa ideia não nos agrada». (resposta informal).
Com a fuga das novidades, que personagem Bem-Necessário se apresenta então na Praça Beauvau[9] para propor seus serviços? Vocês nunca adivinharão: o ICP! Sim, o Instituto Católico de Paris, na rua d’Assas, nº 6, o mesmo sobre o qual Marine, neta de minha madrasta Jacqueline, me elogiava no passado os cursos de filosofia.
«Eu achei isso audacioso», confessa o sr. Leschi. «Sim, me confirma meu amigo Nathan, às vezes os goys têm uma audácia dos diabos, até isso querem tirar de nós!» Não tão rápido. Mons. Lustiger morreu dia 2 de agosto de 2007. E se ele estivesse por trás da chutzpah do ICP? Talvez se possa encontrar isso.
«Topemos», acaba dizendo o sr. Leschi. E desde então, a cada ano que Deus faz, uma nova promoção se vê entregando novamente seus diplomas de laicidade na rua d’Assas. Já estamos na sétima promoção.
«E o que é isto exatamente, a laicidade? », pergunta Guillemette, nova Candide, ao conselheiro do ministro do Interior, que está ali em um serviço contratado, representando o ministério. Este – porque está perdido? Porque é prudente? – só sabe oferecer à jornalista de M uma definição pela negativa, a Negativabgrenzung dos Alemães, digamos, para ser pedante: «A laicidade não é a ignorância do fato religioso.»
Lá vem ele de novo! O «fato» religioso! O bichinho solto na natureza, ou antes na cultura, pelo amigo Régis! Ele terá feito esse caminho em treze anos. «É o bichinho que sobe … sobe… sobe…» Ele já está na boca do sr. conselheiro, na língua. «Quo non ascendet?» Então, será a grande cosquinha final! A indigente talvez rebente um vaso, e aí veremos, ao estilo Félix Faure[10], a epectase da República!
O fato religioso! Ainda assim, que achado! O truque é fazer isso de modo positivista. Não crédulo. De modo algum crédulo. Dizer: as religiões existem, isso é tudo. São dados históricos. Elas são,como tais, indubitáveis, inevitáveis. Elas estão por todo lado, na história e na geografia, na filosofia e na literatura, nas ciências humanas ou o que resta delas, nos teus sonhos e pesadelos, na arquitetura, a escultura, pintura, música, poesia, o teatro, rap, hip-hop e grafite, a comida, as roupas, o jeito de assoar o nariz ou de limpar o traseiro. Elas têm um papel maior na formação de todas as Weltanschauungen, tanto individuais quanto coletivas, que a humanidade conheceu desde a noite dos tempos. E seria preciso ignorá-los? Deixar de mencioná-los? Estar na censura, o recalque, até mesmo o desmentido? E porquê?Para agradar a alguns laicotes, hiperlaicotes, francesotes, maçons comilões de padres e reles descristianizadores, que ainda nem se deram ao trabalho de fazer o mínimo aggiornamento desde o caso Dreyfus?
Aí está. Vocês estão nessa? Sejam audaciosos.
É isso. Vocês estão nessa? Sejam audaciosos. Não sejam impiedosos! Guillemette Faure nota com bom senso: «Se a laicidade era tão simples de definir, não haveria necessidade de formações de 225 horas.» Ela acrescenta que cada um, no dia da promoção, não podia deixar de se perguntar como foi possível «chegarem a atribuir diplomas de laicidade em uma sala decorada com um crucifixo, sob o patrocínio do ministério do Interior.» Consequentemente, ela escolheu seu título, admirável pela simplicidade: «A laicidade sob o crucifixo.»

Tradução: Teresinha N. M. Prado.


[1]N.T. Gíria da Escola Normal Superior para designar os alunos que entraram nessa universidade passando em primeiro lugar no concurso de admissão.
[2]N.T. Contoinfantil do escritor inglês Rudyard Kipling:Le chat qui s’en va tout seul (1903).
[3]N.T. Grupo de militantes franceses sob a liderança de Francis Jeanson, que apoiava a FLN (Frente de Liberação Nacional) da Argélia, e transportavam fundos e documentos falsos em maletas, daí o apelido de “porteurs de valises” (transportadores de bagagens).
[4]N.T. Trecho de poema de Victor Hugo citado por Lacan no Seminário 3.
[5]N.T. Concurso da área jurídica específico da legislação francesa.
[6]N.T. Sociedade católica apostólica fundada na Itália por Saint Philippe Néri no séc. XVI.
[7]N.T. Movimento político nacionalista de extrema direita.
[8]N.T. Professeur agregé – titulação que não existe no Brasil; faz parte de um concurso centralizado no âmbito federal e é exigida dos professores que pretendem lecionar no ensino fundamental 2 e médio nas escolas públicas francesas e tem especificidades conforme a área pretendida.
[9]N.T. Local onde se situa a sede do Ministério do Interior francês.
[10]N.T. Ex-presidente francês, que morreu de epectase: morte súbita durante um orgasmo.


domingo, 1 de março de 2015

A «Common Decency» do Umma





por Jacques-Alain Miller

Quarta-feira, 4 de fevereiro

Mulher mais parisiense do que Sylvia, não havia. Sua família, judia, viera da Romênia. Mulher mais espirituosa também não, não havia. Como eu gostava quando ela imitava Georges Bataille e Michel Leiris ao telefone, para me fazer rir! Lentamente, e com uma voz grave e solene: «Alô, Michel? Sou eu, Georges. — Sim, Georges, sou eu, Michel. — Como vai, Michel? — Vou bem, Georges. E você, como vai?» Eu dizia: «De novo!De novo!», e ela inventava conversas desopilantes entre os dois monstros sagrados, sobre assuntos da atualidade. Bataille e Leiris eram Trágicos. Sylvia, por sua vez, era da École Prévert. Ela foi membro do grupo Octobre. Quando acontecia de Lacan estar lá, ele chorava de rir com a gente, e lhe beijava a mão.
De todos os seus netos, é Sandra, minha sobrinha, quem mais se parece com Sylvia, no temperamento. Ela não tem nada de seu avô Bataille.Ela dirige a pequena equipe que faz toda a editing de Elle, os títulos e as manchetes. Ela só gosta de literatura. Então ela tem isso de Bataille, apesar de tudo. Através de Laurence, sua mãe. Ela me trazia ontem à noite, no jantar, uma charmosa plaqueta das edições Allia, uma entrevista de John Cage contando suas lembranças de Marcel Duchamp. «Isto se chama “Rire et se taire[1]”. Pensei que devia ser pra você!» Bem observado. Ganho minha vida a me calar; à noite, é preciso que eu ria, senão eu morro. Entendo que Cage diga de Duchamp: «ele levava muito a sério o fato de se divertir». Para um psicanalista, isto é vital, me parece.
Duchamp tentando ensinar Cage a jogar melhor xadrez lhe dizia: «Não jogue apenas do seu lado da partida, jogue dos dois lados». Genial! Isto me esclarece sobre meu proceder diante do pior desses grandes conflitos político-morais que estragam a vida da humanidade. Vejam.
Meu amigo Mario acaba de me advertir de que as pessoas estão muito irritadas em Buenos Aires, capital mundial da psicanálise, contra o que pude escrever, corrigindo BHL[2]: «os judeus roubaram a terra do povo palestino, e trata-se de que lha devolvam». O pobre Mario passa seu tempo a acalmar todo mundo, ele confia em mim por princípio, mas vejo bem que ele mesmo está muito emocionado. Lá, eu sou uma celebridade. Cerca de vinte livros publicados. Devem alcovitar, «lacanvitar[3]», por todos os cantos.
O que eu fiz? Tomar partido dos palestinos. Bernard fazia uma cortina de fumaça. Eu expressei de maneira concisa o argumento muçulmano massivo. Sem dúvida eu mexi a peça certa ou apertei no ponto certo, já que, do outro lado, alguém reagiu: «Ai!». É bom sinal. Será preciso que eu encontre o equivalente do lado israelita. Pois minha estratégia está um degrau acima da manobra de Duchamp. Ele aconselha, em suma, a colocar-se no lugar do adversário para ler seu jogo e ganhar. Para mim, o combate é com o Anjo da debilidade humana. Ganhar, seria entender, no sentido de Spinoza. Para isso me é necessário passar por «um curioso entrecruzamento», como Foucault adorava dizer.
As coisas, na verdade, não estão entrecruzadas, mas emaranhadas. A mesma frase que, em Buenos Aires, estraga a vida de Mario, encanta Angelina em São Paulo. Ela também é uma amiga, ela também é judia, ela também exerce a psicanálise. O final de sua análise lhe permitiu, me assegura, encontrar o novo amor de sua vida. Ele se chama Lotfi. Eu o conheci em Paris, no meio de janeiro.
É um personagem. Depois de concluir o ensino médio no Cairo, esse elegante cirurgião, tunisiano de origem, fez a Faculdade de medicina de Grenoble, e hoje está aposentado. Cidadão do mundo, ele viaja muito, tem uma filha em Boston, sua velha mãe na Tunísia, sua amada, então, no Brasil. É o filho de Salah Ben Youssef, que foi, nos anos cinquenta do século passado, o secretário geral do Néo-Destour, o partido de Bourguiba. Em ruptura com «o Combatente Supremo[4]», foi preso, escapou, foi condenado à morte, e se exilou. Depois de um encontro infrutífero em Zurich, Bourguiba provoca seu assassinato em Frankfurt, no dia 12 de agosto de 1961. Isto provocou uma grande confusão na época, eu me lembro. Lotfi tinha onze anos, ele ainda carrega a ferida dessa época. Tal como o pai venerado, ele se define como um nacionalista árabe, um genuíno laico. Ele tem a nostalgia de Nasser. Sua filha, advogada do tribunal de Nova Iorque, é casada com um americano. Membro de uma ONG, ela viveu quatro anos em Israel, defendendo os árabes israelitas; ela prossegue desde então em Massachusetts. Penso na famosa réplica de Gide: «Nascido em Paris, de pai Uzetiano e de mãe Normanda, onde quer o senhor, sr. Barrès, que eu me enraíze?» Com Lotfi e sua família, o fenômeno é de uma amplitude totalmente diferente.
Testo em relação a ele a minha tese. Digo que todo muçulmano, qualquer que seja – exceto talvez alguns infelizes aculturados, «muçulmanos das Luzes» autoproclamados, ou então gênios desordenados como Rushdie – sofre, é infeliz, sente-se mal, incomodado, oprimido, quando alguém falta ao respeito com Maomé. Nem todos se tratam com Kalachnikov, longe disso, mas todos sentem, em níveis diferentes, esse mal-estar (Unbehagen de Freud).

Nem todos morriam, mas todos eram afetados
Lotfi não diz não. Peço-lhe que me diga a frase que, segundo ele, exprime o mais próximo possível, o mais simples, de modo trivial, sem ideologia, «o dado imediato da consciência» correlativo a esse desprazer carnal, desse «acontecimento de corpo» (Lacan) que, na minha hipótese, afeta o muçulmano. Ele pensa em sua mãe de 90 anos diante de sua televisão. Ele a ouve dizer, quando lhe informam sobre as grosseiras blasfêmias francesas: «Ma téte'melch». É uma expressão egípcia ou tunisiana dialetal, que pode ser traduzida por: «isto não convém», ou «isto não se faz».
Domingo passado, no Mc Donalds da rua Souffot, outro teste. Começo a conversar com uma jovem sudanesa que é professora de árabe. Para dizer o «isto não se faz», Tasnim encontra logo, em árabe literário – a língua do Corão, que ninguém fala, mas que é referência –, a expressão «La ya lique». Assim que possível, consultarei minha amiga Ruth, judia, agrégée[5] de árabe, professora na Faculdade de Ciências Políticas de Paris, que escreve artigos muito pertinentes acerca da atualidade no Huffington Post.
A blasfêmia, em primeiro lugar, é uma indecência. Um significante irruptivo intervém, fere, lesa a «Common Decency» (Orwell-Michéa) do Umma. Só um número ínfimo de crédulos, evidentemente, pega nas armas, mas não se trata disso, e sim da impossibilidade lógica absoluta que ataca a co-presença, no mesmo sujeito muçulmano, da fé e da indiferença à blasfêmia. Não há nenhum corpo de muçulmano que não estremece quando o descrente blasfema. Isto não é verdade nem para os judeus nem para os cristãos. Quanto aos jesuítas, que constituem uma raça à parte, com a blasfêmia eles se regozijam, se agitam para fazê-los ver o quanto são advertidos, zen, como não têm medo de confiar.
Penso em Nabilla[6]Ela fez seu nome graças a uma estrofe que destacava a importância de um xampu para uma mulher, a menos que fosse careca. Eu imaginaria que alguém indignasse, nos mesmos termos, se um crédulo não reagisse às capas de Charlie: “Alô! Não, mas alô, pô! Tu é um bom muçulmano, tu não fica fulo de raiva? Alô! Alô! Tá ligado? Tu é um bom muçulmano, tu não fica fulo de raiva? É como seu eu te dissesse: tu é bom muçulmano, tu não tem o Corão?”[7]
Entre os meus amigos muçulmanos há Fouzia, jovem psicanalista. O triste é que ela ignora o árabe. Sua família veio de Marrocos, ela nasceu aqui. Reservada, trabalhadora, sempre impecável, sempre polida, sempre alegre, uma refinada pérola oriental da época de Luís XV. Jura apenas pelo desejo feminino, sua liberdade, o direito ao capricho. Ela pagou um preço por isso: está divorciada, com dois filhos. Seu marido, francês de nascença convertido ao Islã, acreditara ter-se casado com uma mulher submissa. Contudo, noto nela o mesmo dado imediato diante da blasfêmia: “isso não se faz”. Ela não me diz isso, mas é visível que ela não concebe o prazer que posso ter com isso, meu gozo de incrédulo. Isto lhe parece vulgar, vagamente desprezível, eu a decepciono. Leio nas entrelinhas: sou um malcriado, um grosseiro.
Entre meus amigos judeus há Esther. Ela é haredi («ultra-ortodoxa»), francesa nascida na França, ela dá aulas em uma escola religiosa em Nice.Ela é uma bala de canhão talmúdico. Não é ela quem me dará os elementos para contrapor o argumento do «roubo da terra»: aos seus olhos, a terra é para os judeus apenas a oportunidade de uma idolatria, uma espécie de velocino de ouro. Os judeus só receberam a terra depois de receber a Lei, destaca ela, e depois da saída do Egito, o que significa justamente o desprendimento em relação à terra. Ela me explica que “o religioso se transferiu para o político, disso decorre sua extremização, seu fechamento e sua insensatez, dirigida a todos aqueles que discutem a legitimidade do Estado de Israel na Terra Santa. E na outra extremidade, o kibutz, o ‘sacrifício dos soldados’, e um nacionalismo questionável.”
Esther é temperamental, com a língua bem presa ela solta: «Falar da ‘terra de Israel’ é por princípio contranatura na identidade judaica. Meu anti-sionismo religioso é de todo modo um pouco menos babaca que aqueles que dizem que é preciso esperar o Messias para morar em Israel. Sim, os judeus roubaram a terra porque não sabem gerir sua relação com ela. E perdem a cabeça a ponto de fazer muros e cercas de arame farpado. Os israelitas dizem: “Não temos escolha”. Isso é o pior!»
Aponto para ela que está tomando partido dos palestinos. «Os judeus roubaram a terra, de fato. Mas dos palestinos, que são os maiores imbecis do Oriente Médio, oportunistas, lamuriosos, incapazes de humanidade, de democracia, e portanto de propriedade. Sim, eu sou anti-sionista, mas igualmente anti-palestina. Considero sua causa indefensável. Não conheço sua história em muitos detalhes, mas para mim não se pode esperar nada de uma população kamikaze cujo desejo de viver se transformou em desejo de ver o outro morrer, enquanto o valor da vida é primordial e irredutível na religião judaica. Isto não impede de criticar os judeus, que se aviltam nesse conflito.»
Meus amigos portenhos vão cair de costas. Não há haredim na Argentina? Sem dúvida, não entre os analistas. Entretanto, um dia vocês terão Esther como colega, pois ela está em análise e começa a atender. Ela está indo muito bem com seus pacientes, quando não se impacienta. Moral da história: «There are more things in Heaven and Earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy.» De repente, não sei mais se posso me guiar pelo dito de Duchamp. Será que estamos jogando xadrez aqui? É mais um rugby intelectual. E com mais de duas equipes.
Publicado no dia 6 de fevereiro no lepoint.fr
Tradução: Teresinha N. M. Prado.



[1] N.T. Rir e se calar.
[2] N.T. Bernard-Henri Lévy.
[3] N.T. Em francês, respectivamente: cancaner e “lacancaner”.
[4] N.T. O próprio Bourguiba. Do árabe Mujahidin, embora seja atualmente atribuído quase que exclusivamente aos combatentes armados do fundamentalismo islâmico, não tem apenas essa acepção. Também pode significar alguém que combate por seu país, sua pátria, seu Estado ou seu povo, não necessariamente religioso. No caso, este foi epíteto atribuído na época a esse governante, referido nas fontes de pesquisa como laico.
[5] N.T. Título da carreira acadêmica, como um professor titular no Brasil.
[6] Modelo e personalidade francesa.
[7] Miller parodia a fala da modelo no mencionado comercial do xampu: "Euh, allô! non, mais allô, quoi. T'es une fille et t'as pas de shampooing? Allô. Allô! Je sais pas, moi, vous me recevez? T'es une fille, t'as pas de shampooing? C'est comme si je dis: t'es une fille, t'as pas de cheveux!"