Sexta-feira, 13 de fevereiro
Eu havia me prometido ler o artigo do
último Obs sobre a hiperatividade. Conforme à nova estratégia
editorial do semanário, o título está na sua cara: “Seu filho é hiperativo?” O
porquê do artigo está no encarte: “A Alta Autoridade da Saúde reconhece a
hiperatividade”.
A formatação da página tem toda a cara
de informe publicitário: retratos de crianças ladeados pelos nomes de
especialidades. Paradigma: «Com a Ritalina, Hector passou rapidamente a
sentir-se melhor». Contudo, o texto, este é a boa nova. Ele destaca em
particular que o TDA/H – transtorno do déficit de atenção, com ou sem
hiperatividade – “continua a ser objeto de uma forte guerra dos psis na
França”. Exato: a maioria dos praticantes nos CMP (centros médicos
psicológicos) não veem nele um transtorno a tratar pela molécula ad hoc,
mas um sintoma ligado a um conflito íntimo, a desfazer pela fala.
François Gonon, neurobiólogo do CNRS
em Bordeaux, mostrou bem que o déficit de dopamina incriminado no transtorno de
atenção não existe, a Educação Nacional não persiste menos a falar da
hiperatividade como uma doença neurológica. E a redatora do Obs,
Anne Crignon, não deixa de citar Jordan Smoller, professor na Harvard School of
Public Health, autor de um célebre pastiche descrevendo a infância como “uma
doença cujos principais sinais são o nanismo, a imaturidade e a instabilidade
emocional”, e Jörg Blech, do Spiegel, por seu livro sobre Os
inventores de doenças.
Em Big Pharma, tudo é
dito com justeza: “Nos Estados Unidos, onde a publicidade de medicamentos é
autorizada na televisão, centenas de milhares são gastos para promover o
diagnóstico da hiperatividade (...). O conceito de hiperatividade se espalha
pelo planeta, assim como o de “transtorno bipolar” (...) “Recrutar doentes”: é
assim que se fala nos corredores das firmas.”
Um diagrama, na página 66, informa o
leitor sobre a prescrição de Ritalina em número de doses por 1000 habitantes.
Islândia, Canadá e Estados Unidos se mantêm no topo. A França e o Reino Unido
estão ficando pra trás. É aí que os esforços do marketing se concentram. Como
pode ser que o leitor não se desprenda do sentimento de que Obs,
com suas sete páginas, suas fotos, seus grandes títulos, participa, queira ou
não, desse esforço?
Em contrapartida, as duas páginas que
Éric Favereau dedicou ao mesmo assunto no Libé de ontem, não
induzem ao mal estar: é direto e sem rebarbas. Duas entrevistas que dialogam
completam a análise. A primeira é com o excelente Bruno Falissard, politécnico
que se tornou psiquiatra infantil, que eu zoei no passado por sua esperança de Medir
a subjetividade na saúde (Masson, 2001; 2e éd. 2008). O outro dá a
palavra a Patrick Landman, psiquiatra e psicanalista, presidente do grupo
Stop-DSM, no qual a Escola da Causa Freudiana está representada; ele acaba de
publicar pela Albin Michel Toushyperactifs. A incrível epidemia
de transtornos de atenção; ele vê nos TDA/H uma “construção social”.
Régis Debray
Como distinguir uma criança
hiperativa de uma travessa ou superdotada, ou ainda fora dos padrões? Quando
conheci Régis na Escola Normal, ele já tinha 22 anos, mas ainda era considerado
superdotado, e não apenas porque entrara cacique[1] (primeiro) dois anos antes, em
1960. Ele era membro da UEC (União dos Estudantes Comunistas) como a maioria
dos althusserianos, mas, em relação a esse grupo, ele ficava à parte, um pé dentro
e outro fora, no canto, um meio-sorriso não tolo, não sem irritar os tolos. Nós
também éramos pedantes, e quando eu, por minha vez, entrei em 1962, logo fui
informado de que Régis, claro, era Régis, um grande futuro estava reservado a
ele, mas que era um estilista, um literato, e em filosofia não tinha um
conhecimento sólido.
Aconteceu-me, depois disso, de
encontrá-lo algumas vezes, mas foi de longe, e ao ler seus livros, que
acompanhei sua carreira. Em suma, durante longo tempo ele jamais “pertenceu”. Durante
toda a sua vida ele terá mantido o seu lado gato de Kipling[2], que segue
sozinho, já bem desenhado outrora. Para os animais desse tipo, a sociedade
previu, quando têm um grande talento, espaços reservados: as academias. Eles se
avizinham, não se recrutam, não se identificam senão à sua própria diferença.
Por muitas razões ele tem seu lugar entre os Goncourt. Ali ele é justamente
vizinho de Bernard Pivot, que ele assassinou no passado, novo Lorenzaccio, pela
“ditadura” que este exercia no “mercado do livro”. Ei-los, não déspotas, mas
oligarcas. “De resto, os melhores filhos do mundo”.
Se evoco Régis, é porque La
Croix ontem, e Marianne hoje, dedicaram-lhe, um uma
página, outro duas, sobre o lançamento de seu novo livro, Un Candide à
sa fenêtre. Para dizer que ele escreve rápido e bem, e que publica mito, o
sr. Raspiengeas, do jornal católico chama-o de “esse grafomaníaco”, o sr.
Conan, do jornal sui generis, de “esse polígrafo de gênio”. Para o sr.
Conan ele é “desengajado”, “entregou os pontos”, “não quer mais lutar”. O sr.
Raspengeas pensa o contrário: ele o designa como alguém que “parece
indiferente, mas sua pluma cospe fogo”. De fato, os dois o mostram ferrenho
contra “a literatura sem escrita”; “o romance sem ficção”; a arte
contemporânea, “folclores para elites transnacionais”; “a classe dirigente”
inculta etc.. Esses dois artigos me fariam comprar o livro, se já não o tivesse
feito. Agora preciso lê-lo. Gostaria de comentá-lo antes que saia o próximo.
No verso da página Debray, La
Croix destaca dois lançamentos recentes sobre a derrota de 1870,
“matriz de nosso século XX”. Tendo em vista a referência a esse episódio
doloroso de nossa história que utilizei na quarta, em meu acesso de
francofobia,no mínimo será bom que eu os leia. E já quero adquirir o Diccionnaire
biographique des Protestants français de 1789 à nos jours, cujo primeiro
tomo acaba de ser lançado: “Os protestantes são Franceses de pleno exercício
desde 1787”, destaca Patrick Cabanel. Para os judeus, a data será 13 de
novembro de 1791.
Roland Dumas
Luc Le Vaillant fez na última página
do Libération um retrato do advogado ex-ministro. Aos 92 anos,
dificilmente alguém é hiperativo, mas permanece fora das normas quando sempre
foi. Será que isso é bom? Será que é mau? A gente nem suspeita disso: é um
monumento. Não farei seu retrato, ele era próximo demais da família Lacan,
especialmente de Sylvia, que ele encantara, como fazia com todas as mulheres,
até a sra. Thatcher, parece, sem malícia. Sylvia lhe dera um apelido afetuoso e
debochado que, acho, ele não conhece. Direi a ele quando nos encontrarmos.
Sylvia o havia conhecido por ocasião
do processo da “rede Jeanson”[3] (os “porteurs
de valises” da FLN). Sua filha mais velha, Laurence Bataille era uma; ele
foi seu defensor; ela havia sido condenada a três meses de prisão. Mais
compromisso, seu sobrinho Diego, filho de sua irmã Rose e de André Masson, por
três anos. Sylvia apresentou Roland a seus próximos, os Masson, os Giacometti
(ela era muito amiga de Annette), os Leiris, e por meio de Zette e Kahnweiler,
seu pai, ele teve acesso a Picasso, que também gostava muito dele.
Roland havia sido resistente quando
muito jovem. No pós-guerra ele foi o advogado vitorioso de Georges Guingouin,
comunista, uma alta figura da Resistência, e ganhou o reconhecimento do
Partido. Foi membro do coletivo dos advogados do FLN, juntamente com Vergès.
Por mais de dez anos também foi advogado do Canard enchaîné. Era,
portanto, um homem de esquerda com pedigree, um impecável maçom, e sua devoção
pessoal a François Mitterrand era completa.
Ele sempre soubera conservar, ao
mesmo tempo, relações com personagens situadas à direita e à
extrema-direita.«Seu feixe não era avaro nem odiento»[4]. Nada do que fosse humano lhe era
estrangeiro. Ele tinha uma coleção de longas colheres para jantar a seu bel
prazer com diabos e diabretes. Ele exerceu nove anos em “escritório agrupado”
com um antigo primeiro secretário da Conférence du Stage[5], Jean-Marc Varaut, católico de
direita formado pelos Oratorianos[6], monarquista da
Action Française[7], um dos
animadores, em 1966, da campanha presidencial de Tixier-Vignancour, antigo
ministro de Vichy (diretor de campanha: Jean-Marie Le Pen), que, para surpresa
geral (ou talvez não tão geral assim, não é mesmo?), no segundo turno apoiará
Mitterrand. “Partilhei com o professor Varaut mais metros quadrados do que
ideias políticas”, dirá Roland, malicioso e enternecedor. Quanto a Jean-Marc
Varaut, ele foi eleito para a Academia das Ciências Morais e Políticas.
Deste modo Roland tinha seu acesso a
lugares recônditos. Ele sempre teve, por exemplo, um excelente acesso aos
poderosos do mundo muçulmano, particularmente o coronel Kadhafi, a quem levou o
presidente Mitterrand para um encontro secreto em Creta, e o general Tlas,
ministro sírio da Defesa, e homem forte do regime de Hafez al-Assad, pai de
Bachar.
Com o passar do tempo, ele relaxou
cada vez mais, e um Dumas 2º emergiu do primeiro. Um Dumas que não se
incomodava em beijar Marine Le Pen nas duas bochechas, que dava seu apoio ao
companheiro dela para que ele chegasse ao estatuto de advogado, que se permitia
rir sem maldade nos espetáculos de Dieudonné, que declarava sem rodeios o
ceticismo que lhe inspirava a versão oficial dos atentados de 11 de setembro:
“Não acredito nisso”.
A esse respeito me ocorre, Roland,
que em um de seus últimos livros de memórias você relata com surpresa que
alguém lhe disse que eu havia dito que Lacan era antissemita. E você traz seu
testemunho de defesa: nada em minhas interações com Lacan, você diz, jamais me
deu essa impressão (cito de memória).
O que eu disse em meu curso, Roland,
foi o seguinte. Aos 23 anos, sabemos disso com certeza por uma carta a Maurras
da famosa Pampille, sra. Léon Daudet, Lacan era maurrassiano, portanto,
conforme qualquer verossimilhança, antissemita ou colorido de antissemitismo ou
cultivando-o. E é esse mesmo homem que se apaixona por uma atriz judia casada
com outro homem, perde sua legítima esposa em vez de romper com ela, salva sua
amante do pior ao recuperar com coragem seu dossiê e o de sua mãe no
comissariado de Cagnes-sur-Mer, e dá à filha fruto desse adultério, nascida em
1941, o nome de Judith. Depois ele se casa com Sylvia e consegue dar seu
sobrenome a Judith. Obrigado, Roland, mas você acha realmente que era preciso
dar-se o trabalho de lavar a memória de Lacan de uma acusação difamatória que eu
teria dirigido a ele?
Para tornar mais leve a atmosfera,
vou contar-lhes uma anedota. Eu ainda estava na Escola Normal, e perguntei a
Lacan: “Dentre todos aqueles com quem você se relacionou, quem você mais
admirou?” Ele me respondeu: “Koyré, Kojève, Lévi-Strauss, Roman Jakobson”. E
acrescentou: “Todos sabiam cozinhar”. Era uma alusão ao que dissera de
Althusser, que era um excelente cozinheiro. Esses quatro tinham outro traço
comum.
O que é certo é que Lacan não era um
desses humanistas em pele de cordeiro para quem o judeu não existe, para quem o
judeu é uma ilusão “essencialista”, como dizem nos Diafoirus de hoje.
Cortes da mídia
Tenho ainda algo a dizer sobre sete
artigos que selecionei na imprensa de ontem e hoje. Prometo ser breve, pois só
me resta fazer isso.
A insegurança cultural
1. - O conceito de
insegurança cultural é tão pertinente que acham que ele nasceu no momento atual.
Não é nada disso. Ele foi introduzido pelo professor Laurent Bouvet, que lhe
dedicou um livro, lançado em 7 de janeiro pela editora Fayard. Eu o lerei sem
falta. O conceito designa “um clima” determinado pelo “tensionamento das
referências, sejam elas econômicas, sociais ou culturais, de populações na
primeira linha da mundialização e de seus efeitos, particularmente europeus”.
O sr. Bouvet pensa também que
populações que de fato têm os mesmos interesses de classe (não, ele diz
“interesses comum, não ouso dizer de classe”) opostos às elites, são
abusivamente clivados por diferenças culturais que na realidade são
secundárias, mas que elas elites precisamente têm interesse de manter e
aumentar (Libération, 12/2).
O mutismo do muçulmano moderado
2. - Asne Seierstadt, escritora
norueguesa, articula em duas páginas do Libé o massacre de
Utoya, de 22 de julho de 2011, 77 mortos, e o recente massacre de Paris. «O
objetivo declarado de Anders Behring Breivik era purificar a Europa dos
muçulmanos. (…) Os terroristas franceses representam exatamente aquilo contra o
que Breivik lutava».A Noruega não é otimista: «Por todo lado no mundo muçulmano
as vozes liberais se calam, seja porque os imãs moderados são mortos pelos
jihadistas, ou então porque os militantes laicos são presos e torturados pelos
regimes autoritários».
Oh! Os regimes muçulmanos
autoritários não são necessariamente detalhistas, eles torturam e matam
igualmente os jihadistas e os irmãos muçulmanos. É o caso, em particular, do
regime do excelente Al-Sissi no Egito, o salvador de nossa indústria
aeronáutica e de seus empregos. Isto me faz pensar que vi anunciada na Harper o
lançamento próximo do novo livro de Ayaan Hirsi Ali, herege. (Libération,
13 de fevereiro).
Entender-se melhor
3. – Não existe mal do qual não possa
sair um bem. O massacre em Paris já teve essa consequência positiva que “os
delegados diocesanos pelas relações com o islã querem aproveitar uma retomada
da atenção para propor aos cristãos e aos muçulmanos que se entendam melhor”. É
nesses momentos que a Igreja é admirável. Os lírios dos campos não fiam nem
tecem, mas a Igreja sim, ela tece indefinidamente laço social, e remenda sem se
cansar o tecido rasgado da pobre França.
Muçulmanos e cristãos, compreender-se
melhor? Trabalho aqui no mesmo sentido, acrescentando também os judeus, o que
não é uma tarefa fácil, pois, no campo da decência, eles deixam muito a
desejar. O que querem? Não são universalistas. Suplico-lhe, Roland, que não
diga em seu próximo livro: Desta vez eu digo tudo, que o
antissemita não é Lacan, sou eu.
Os judeus têm algo de excessivo, de
que eles mesmos debocham, e que denominam por uma palavra em ídiche que é menos
familiar aos franceses do que aos americanos. O mais simples é eu reproduzir
aqui a nota muito bem feita pela Wikipédia.
«Chutzpah é uma forma de
audácia, para o bem ou para o mal. A palavra vem do hebreu huspâ (חֻצְפָּה), que significa
«insolência», «audácia» e «impertinência». No uso moderno, essa expressão
adquiriu um leque mais variado de significações. Em hebreu, a palavra chutzpah marca
uma indignação dirigida a alguém que ultrapassou de modo ultrajante e
desavergonhado os limites do comportamento aceitável. Em iídiche e em inglês, a
palavra tem conotações ambivalentes, e até positivas. Chutzpah pode
ser utilizado para exprimir a admiração em relação a uma ousadia
não-conformista. Contudo, em Les Joies du Yiddish, a expressão é
ilustrada pela história do parricídio implorando a indulgência do tribunal ao
exclamar «Tenham piedade de um pobre órfão»... A palavra também passou do
iídiche ao polonês (hucpa), ao alemão (Chuzpe), ao holandês (gotspe)
e ao inglês (americano); ela designa a arrogância, a audácia, a ousadia e a
ausência de vergonha».
Para voltarmos às nossas ovelhas
islamo-cristãs, La Croix me informa então que a Conferência
dos Bispos da França criou o Serviço das Relações com o Islã (SRI). Seria
oportuno que a Associação Mundial de Psicanálise fizesse a mesma coisa? Eu
perguntaria a seu presidente, meu amigo Miquel Bassols. Ele é Catalão. Os
Catalães têm a reputação de ser os judeus da Espanha, mas são judeus sem chutzpah:
ela lhes foi cerceada pelos Castelhanos. No lugar disso, eles têm o par seny e rauxa,
o bom senso apimentado pela loucura das grandezas. Ver Raymond Lulle, santo na
Catalunha, conhecido em seu tempo (1232-1315) como «Arabicus Christianus»;
Gaudi; e Dali (La Croix, 13 de fevereiro).
Os poderes da fala
4. – É ainda La Croix que
me informa que a História da França, da qual eu falava outro dia, está em vias
de ser reescrita de cabo a rabo por Jean-François Kahn, no estilo hiperativo e
super vitaminado que ele tornou famoso em Marianne: interpelações,
exclamações, ênfases, amplificações, hipérboles. Ele já está no tomo II, no
período 100-430, e o tomo I está em edição de bolso. Vou ter que correr atrás
disso tudo.
Frédéric Mounier, que o interroga,
intitula a entrevista com uma frase de Kahn: «A trindade é um re-questionamento
da parte mais terrificante do monoteísmo». É muito astuto isto, muito preciso,
faz pensar. Mas eu digo para mim mesmo que JFK não deve ter uma excessiva
benevolência pelo islã, onde o Um é exclusivo de todo «shade of grey».Inclusive,
ele confidencia que é a favor de aceitar todos os mitos fundadores de «nossa
identidade nacional», dentre elas a batalha de Poitiers e Joana d’Arc.
Para fazê-lo, ele recomenda a tese de
Raymond Aron, 1938, já não é muito lida. Ele reteve disso que, diz, «o
historiador faz verdadeiramente a História ao contá-la». Em suma, diria
Mallarmé, a França é feita para resultar em um belo livro de Jean-François
Kahn. Não haverá aí, em um judeu que no entanto manifestamente assimilado, como
que um dedo dechutzpah?
Eu adoraria que JFK recebesse minha
provocação. Eu o faria sustentar esse texto por seu primo, meu amigo Gilles. (La
Croix, 13 de fevereiro).
Problemas da laicidade
5. - Apressemos o passo. Em Marianne,
duas matérias sobre a laicidade. O sr.Claude Obadia, professor certificado[8] de filosofia, conta
sua surpresa que a Inspetoria Geral de Filosofia, assim como o SRI, tenha
aproveitado o massacre de janeiro para oferecer aos professores de filosofia
das academias da região de Paris a possibilidade de se formarem em «Recursos
filosóficos e espirituais do islã.»
Eu me pergunto quem orienta a
Inspetoria Geral de Filosofia atualmente. Antigamente, era meu velho mestre
Canguilhem. Ele era conhecido por fazer chorar as jovens mulheres filósofas
cujo exame passava por ele, mas era um republicano irrepreensível e um convicto
laico. Hoje, é como estar em um episódio de Soumission, a farsa de
Houellebecq. E as pessoas dão um sorriso amarelo. Nenhuma ofensa aquia os
Asiáticos, o amarelo em questão sendo aquele do colorido dos doentes do fígado.
Nenhuma ofensa também aos doentes do fígado. Como politicamente correto, não se
sabe o que fazer.
Sempre acontece de o sr. Obadia pedir
modestamente que se pense um pouco nos «valores que definem a República», assim
como nos pais fundadores de nossa laicidade, dentre os quais se incluem
Renouvier, Victor Cousin, Durkheim, e Ferdinand Buisson.
Em relação a isso, um texto assinado
pelo presidente e pelo secretário geral do Observatório da laicidade. Trata-se
desse organismo oficial instalado em abril de 2013 pelo sr. Hollande, que
observou as coisas tão bem que seu presidente, sr. Bianco, havia concluído em
junho do mesmo ano: «A França não tem problema com sua laicidade.»
Essa frase
ficou. O alto funcionário lamenta que ela tenha sido «demasiadas vezes
deformada.» Sem dúvida ele quer dizer que ela não foi compreendida de acordo
com sua intenção de significação, pois o enunciado, por sua vez, circulou
intocado. Esta frase - «pura como a alvorada», Althusser poderia talvez
chamá-la de lírica - alcança tamanho auge na negação dos fenômenos
empiricamente observáveis, que só poderia ser explicada por elevadas considerações
de filosofia moral e política que justifiquem pisotear qualquer fetichismo dos
fatos. É este o caso. O sr. Bianco sustenta de
fato que «a unidade da República não é a uniformidade». Distinção crucial.
Aqueles que confundem unidade e uniformidade, nós os chamaremos de
monoculturalistas. Os outros, que fazem a distinção que, segundo o sr. Bianco,
se impõe, serão multiculturalistas.
Ora, então, tudo o que aparece aos
‘mono’ como violações inéditas da laicidade, a combater arduamente e sem
trégua, constitui, ao contrário, para os ‘multi’, progressos criativos que para
prosperar precisam apenas da neutralidade dos poderes públicos; neutralidade
que seria, segundo eles, a essência da laicidade.
Esse exemplo serve para ilustrar como
pode ser relativo o estatuto do fato, em relação às interpretações que ele
suscita. De modo algum isto impede que o sr. Bianco preconize com grande
alarido “o desenvolvimento do ensino laico do fato religioso”. Se não me
engano, essa ideia foi promovida no passado por Régis Debray, entre a
publicação de duas das suas obras mais trabalhadas e mais retumbantes: Dieu,
un itinéraire, 2001; L’Enseignement du fait réligieux dans l’école
laïque, 2002, com Jack Lang; Le Feu sacré: Fonction du réligieux,
2003.
Já naquela época eu estremeci. Régis
me viu estremecer. Isto não o agradou, ele me havia dito. Eu me pergunto se ele
ainda está nessa mesma sintonia. Eu saberia, talvez, ao ler seu Candide.
Sempre acontece de o sr. Bianco se regozijar por já ter sido encontrado pela
sra. Vallaud-Belkacem, que criou «vagas de pesquisadores sobre islamologia». Os
‘multi’ congratularão o sr. Bianco, ao passo que os ‘mono’ pensarão que isto
não pressagia nada de bom (Marianne, 13 de fevereiro).
Diplomas de
laicidade
6. - O último texto é uma joia. Ele
saiu esta noite em M, le magazine du Monde, cuja capa é ornada com
uma bela foto em preto e branco do sr. Marc
Ladreit de Lacharrière. O bilionário parisiense, self made man cujo
nome remonta às Cruzadas, tem no olhar o mesmo brilho que o ator Jean Le
Poulain, hoje falecido. M lhe dedica
sete páginas. Mas foi a pequena nota «mediante convite» de Guillemette Faure que me
deteve. Se eu me escutasse, passaria in extenso, e tudo estaria
dito.
Vocês sabem bem? Em um dia de 2007,
Nicolas Sarkozy, então ministro do interior, convocou o chefe do gabinete
central dos cultos, funcionário de seu ministério, para intimá-lo a estabelecer
uma formação universitária em interculturalidade (é assim que se pronuncia) e
em laicidade. Ele lhe deu o prazo de um mês.
Sr. Didier Leschi - é o nome do chefe
do gabinete - solicita, a César o que é de César, à Sorbonne. Recusa. Pedido
reiterado. Nova recusa. Por quê? «Isto atrairá barbudos para nós, essa ideia
não nos agrada». (resposta informal).
Com a fuga das novidades, que
personagem Bem-Necessário se apresenta então na Praça Beauvau[9] para propor seus serviços? Vocês
nunca adivinharão: o ICP! Sim, o Instituto Católico de Paris, na rua d’Assas,
nº 6, o mesmo sobre o qual Marine, neta de minha madrasta Jacqueline, me
elogiava no passado os cursos de filosofia.
«Eu achei isso audacioso», confessa o
sr. Leschi. «Sim, me confirma meu amigo Nathan, às vezes os goys têm uma
audácia dos diabos, até isso querem tirar de nós!» Não tão rápido. Mons.
Lustiger morreu dia 2 de agosto de 2007. E se ele estivesse por trás da chutzpah do
ICP? Talvez se possa encontrar isso.
«Topemos», acaba dizendo o sr. Leschi. E desde então, a
cada ano que Deus faz, uma nova promoção se vê entregando novamente seus
diplomas de laicidade na rua d’Assas. Já
estamos na sétima promoção.
«E o que é isto exatamente, a
laicidade? », pergunta Guillemette, nova Candide, ao conselheiro do
ministro do Interior, que está ali em um serviço contratado, representando o
ministério. Este – porque está perdido? Porque é prudente?
– só sabe oferecer à jornalista de M uma definição pela
negativa, a Negativabgrenzung dos Alemães, digamos, para ser
pedante: «A laicidade não é a ignorância do fato religioso.»
Lá vem ele de novo! O «fato»
religioso! O bichinho solto na natureza, ou antes na cultura, pelo amigo Régis!
Ele terá feito esse caminho em treze anos. «É o bichinho que sobe … sobe…
sobe…» Ele já está na boca do sr. conselheiro, na língua. «Quo
non ascendet?» Então, será a grande cosquinha final! A indigente talvez
rebente um vaso, e aí veremos, ao estilo Félix Faure[10], a epectase da República!
O fato
religioso! Ainda assim, que achado! O truque é fazer isso de modo positivista. Não
crédulo. De modo algum crédulo. Dizer: as religiões existem, isso é tudo. São
dados históricos. Elas são,como tais, indubitáveis, inevitáveis. Elas estão por todo
lado, na história e na geografia, na filosofia e na literatura, nas ciências
humanas ou o que resta delas, nos teus sonhos e pesadelos, na arquitetura, a
escultura, pintura, música, poesia, o teatro, rap, hip-hop e grafite, a comida,
as roupas, o jeito de assoar o nariz ou de limpar o traseiro. Elas têm um papel
maior na formação de todas as Weltanschauungen, tanto individuais
quanto coletivas, que a humanidade conheceu desde a noite dos tempos. E seria
preciso ignorá-los? Deixar de
mencioná-los? Estar na censura, o recalque, até mesmo o desmentido? E
porquê?Para agradar a alguns laicotes, hiperlaicotes, francesotes, maçons
comilões de padres e reles descristianizadores, que ainda nem se deram ao
trabalho de fazer o mínimo aggiornamento desde o caso Dreyfus?
Aí está. Vocês estão nessa? Sejam
audaciosos.
É isso. Vocês estão nessa? Sejam
audaciosos. Não sejam impiedosos! Guillemette Faure nota com bom senso: «Se a
laicidade era tão simples de definir, não haveria necessidade de formações de
225 horas.» Ela acrescenta que cada um, no dia da promoção, não podia deixar de
se perguntar como foi possível «chegarem a atribuir diplomas de laicidade em
uma sala decorada com um crucifixo, sob o patrocínio do ministério do
Interior.» Consequentemente, ela escolheu seu título, admirável pela
simplicidade: «A laicidade sob o crucifixo.»
Tradução: Teresinha N. M. Prado.
[1]N.T. Gíria da Escola Normal Superior
para designar os alunos que entraram nessa universidade passando em primeiro
lugar no concurso de admissão.
[3]N.T. Grupo de militantes franceses
sob a liderança de Francis Jeanson, que apoiava a FLN (Frente de Liberação
Nacional) da Argélia, e transportavam fundos e documentos falsos em maletas,
daí o apelido de “porteurs de valises” (transportadores de bagagens).
[4]N.T. Trecho de poema de Victor Hugo
citado por Lacan no Seminário 3.
[5]N.T. Concurso da área jurídica
específico da legislação francesa.
[6]N.T. Sociedade católica apostólica
fundada na Itália por Saint Philippe Néri no séc. XVI.
[7]N.T. Movimento político nacionalista
de extrema direita.
[8]N.T. Professeur agregé – titulação
que não existe no Brasil; faz parte de um concurso centralizado no âmbito
federal e é exigida dos professores que pretendem lecionar no ensino
fundamental 2 e médio nas escolas públicas francesas e tem especificidades
conforme a área pretendida.
[9]N.T. Local onde se situa a sede do
Ministério do Interior francês.
[10]N.T. Ex-presidente francês, que
morreu de epectase: morte súbita durante um orgasmo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário