domingo, 1 de março de 2015

A «Common Decency» do Umma





por Jacques-Alain Miller

Quarta-feira, 4 de fevereiro

Mulher mais parisiense do que Sylvia, não havia. Sua família, judia, viera da Romênia. Mulher mais espirituosa também não, não havia. Como eu gostava quando ela imitava Georges Bataille e Michel Leiris ao telefone, para me fazer rir! Lentamente, e com uma voz grave e solene: «Alô, Michel? Sou eu, Georges. — Sim, Georges, sou eu, Michel. — Como vai, Michel? — Vou bem, Georges. E você, como vai?» Eu dizia: «De novo!De novo!», e ela inventava conversas desopilantes entre os dois monstros sagrados, sobre assuntos da atualidade. Bataille e Leiris eram Trágicos. Sylvia, por sua vez, era da École Prévert. Ela foi membro do grupo Octobre. Quando acontecia de Lacan estar lá, ele chorava de rir com a gente, e lhe beijava a mão.
De todos os seus netos, é Sandra, minha sobrinha, quem mais se parece com Sylvia, no temperamento. Ela não tem nada de seu avô Bataille.Ela dirige a pequena equipe que faz toda a editing de Elle, os títulos e as manchetes. Ela só gosta de literatura. Então ela tem isso de Bataille, apesar de tudo. Através de Laurence, sua mãe. Ela me trazia ontem à noite, no jantar, uma charmosa plaqueta das edições Allia, uma entrevista de John Cage contando suas lembranças de Marcel Duchamp. «Isto se chama “Rire et se taire[1]”. Pensei que devia ser pra você!» Bem observado. Ganho minha vida a me calar; à noite, é preciso que eu ria, senão eu morro. Entendo que Cage diga de Duchamp: «ele levava muito a sério o fato de se divertir». Para um psicanalista, isto é vital, me parece.
Duchamp tentando ensinar Cage a jogar melhor xadrez lhe dizia: «Não jogue apenas do seu lado da partida, jogue dos dois lados». Genial! Isto me esclarece sobre meu proceder diante do pior desses grandes conflitos político-morais que estragam a vida da humanidade. Vejam.
Meu amigo Mario acaba de me advertir de que as pessoas estão muito irritadas em Buenos Aires, capital mundial da psicanálise, contra o que pude escrever, corrigindo BHL[2]: «os judeus roubaram a terra do povo palestino, e trata-se de que lha devolvam». O pobre Mario passa seu tempo a acalmar todo mundo, ele confia em mim por princípio, mas vejo bem que ele mesmo está muito emocionado. Lá, eu sou uma celebridade. Cerca de vinte livros publicados. Devem alcovitar, «lacanvitar[3]», por todos os cantos.
O que eu fiz? Tomar partido dos palestinos. Bernard fazia uma cortina de fumaça. Eu expressei de maneira concisa o argumento muçulmano massivo. Sem dúvida eu mexi a peça certa ou apertei no ponto certo, já que, do outro lado, alguém reagiu: «Ai!». É bom sinal. Será preciso que eu encontre o equivalente do lado israelita. Pois minha estratégia está um degrau acima da manobra de Duchamp. Ele aconselha, em suma, a colocar-se no lugar do adversário para ler seu jogo e ganhar. Para mim, o combate é com o Anjo da debilidade humana. Ganhar, seria entender, no sentido de Spinoza. Para isso me é necessário passar por «um curioso entrecruzamento», como Foucault adorava dizer.
As coisas, na verdade, não estão entrecruzadas, mas emaranhadas. A mesma frase que, em Buenos Aires, estraga a vida de Mario, encanta Angelina em São Paulo. Ela também é uma amiga, ela também é judia, ela também exerce a psicanálise. O final de sua análise lhe permitiu, me assegura, encontrar o novo amor de sua vida. Ele se chama Lotfi. Eu o conheci em Paris, no meio de janeiro.
É um personagem. Depois de concluir o ensino médio no Cairo, esse elegante cirurgião, tunisiano de origem, fez a Faculdade de medicina de Grenoble, e hoje está aposentado. Cidadão do mundo, ele viaja muito, tem uma filha em Boston, sua velha mãe na Tunísia, sua amada, então, no Brasil. É o filho de Salah Ben Youssef, que foi, nos anos cinquenta do século passado, o secretário geral do Néo-Destour, o partido de Bourguiba. Em ruptura com «o Combatente Supremo[4]», foi preso, escapou, foi condenado à morte, e se exilou. Depois de um encontro infrutífero em Zurich, Bourguiba provoca seu assassinato em Frankfurt, no dia 12 de agosto de 1961. Isto provocou uma grande confusão na época, eu me lembro. Lotfi tinha onze anos, ele ainda carrega a ferida dessa época. Tal como o pai venerado, ele se define como um nacionalista árabe, um genuíno laico. Ele tem a nostalgia de Nasser. Sua filha, advogada do tribunal de Nova Iorque, é casada com um americano. Membro de uma ONG, ela viveu quatro anos em Israel, defendendo os árabes israelitas; ela prossegue desde então em Massachusetts. Penso na famosa réplica de Gide: «Nascido em Paris, de pai Uzetiano e de mãe Normanda, onde quer o senhor, sr. Barrès, que eu me enraíze?» Com Lotfi e sua família, o fenômeno é de uma amplitude totalmente diferente.
Testo em relação a ele a minha tese. Digo que todo muçulmano, qualquer que seja – exceto talvez alguns infelizes aculturados, «muçulmanos das Luzes» autoproclamados, ou então gênios desordenados como Rushdie – sofre, é infeliz, sente-se mal, incomodado, oprimido, quando alguém falta ao respeito com Maomé. Nem todos se tratam com Kalachnikov, longe disso, mas todos sentem, em níveis diferentes, esse mal-estar (Unbehagen de Freud).

Nem todos morriam, mas todos eram afetados
Lotfi não diz não. Peço-lhe que me diga a frase que, segundo ele, exprime o mais próximo possível, o mais simples, de modo trivial, sem ideologia, «o dado imediato da consciência» correlativo a esse desprazer carnal, desse «acontecimento de corpo» (Lacan) que, na minha hipótese, afeta o muçulmano. Ele pensa em sua mãe de 90 anos diante de sua televisão. Ele a ouve dizer, quando lhe informam sobre as grosseiras blasfêmias francesas: «Ma téte'melch». É uma expressão egípcia ou tunisiana dialetal, que pode ser traduzida por: «isto não convém», ou «isto não se faz».
Domingo passado, no Mc Donalds da rua Souffot, outro teste. Começo a conversar com uma jovem sudanesa que é professora de árabe. Para dizer o «isto não se faz», Tasnim encontra logo, em árabe literário – a língua do Corão, que ninguém fala, mas que é referência –, a expressão «La ya lique». Assim que possível, consultarei minha amiga Ruth, judia, agrégée[5] de árabe, professora na Faculdade de Ciências Políticas de Paris, que escreve artigos muito pertinentes acerca da atualidade no Huffington Post.
A blasfêmia, em primeiro lugar, é uma indecência. Um significante irruptivo intervém, fere, lesa a «Common Decency» (Orwell-Michéa) do Umma. Só um número ínfimo de crédulos, evidentemente, pega nas armas, mas não se trata disso, e sim da impossibilidade lógica absoluta que ataca a co-presença, no mesmo sujeito muçulmano, da fé e da indiferença à blasfêmia. Não há nenhum corpo de muçulmano que não estremece quando o descrente blasfema. Isto não é verdade nem para os judeus nem para os cristãos. Quanto aos jesuítas, que constituem uma raça à parte, com a blasfêmia eles se regozijam, se agitam para fazê-los ver o quanto são advertidos, zen, como não têm medo de confiar.
Penso em Nabilla[6]Ela fez seu nome graças a uma estrofe que destacava a importância de um xampu para uma mulher, a menos que fosse careca. Eu imaginaria que alguém indignasse, nos mesmos termos, se um crédulo não reagisse às capas de Charlie: “Alô! Não, mas alô, pô! Tu é um bom muçulmano, tu não fica fulo de raiva? Alô! Alô! Tá ligado? Tu é um bom muçulmano, tu não fica fulo de raiva? É como seu eu te dissesse: tu é bom muçulmano, tu não tem o Corão?”[7]
Entre os meus amigos muçulmanos há Fouzia, jovem psicanalista. O triste é que ela ignora o árabe. Sua família veio de Marrocos, ela nasceu aqui. Reservada, trabalhadora, sempre impecável, sempre polida, sempre alegre, uma refinada pérola oriental da época de Luís XV. Jura apenas pelo desejo feminino, sua liberdade, o direito ao capricho. Ela pagou um preço por isso: está divorciada, com dois filhos. Seu marido, francês de nascença convertido ao Islã, acreditara ter-se casado com uma mulher submissa. Contudo, noto nela o mesmo dado imediato diante da blasfêmia: “isso não se faz”. Ela não me diz isso, mas é visível que ela não concebe o prazer que posso ter com isso, meu gozo de incrédulo. Isto lhe parece vulgar, vagamente desprezível, eu a decepciono. Leio nas entrelinhas: sou um malcriado, um grosseiro.
Entre meus amigos judeus há Esther. Ela é haredi («ultra-ortodoxa»), francesa nascida na França, ela dá aulas em uma escola religiosa em Nice.Ela é uma bala de canhão talmúdico. Não é ela quem me dará os elementos para contrapor o argumento do «roubo da terra»: aos seus olhos, a terra é para os judeus apenas a oportunidade de uma idolatria, uma espécie de velocino de ouro. Os judeus só receberam a terra depois de receber a Lei, destaca ela, e depois da saída do Egito, o que significa justamente o desprendimento em relação à terra. Ela me explica que “o religioso se transferiu para o político, disso decorre sua extremização, seu fechamento e sua insensatez, dirigida a todos aqueles que discutem a legitimidade do Estado de Israel na Terra Santa. E na outra extremidade, o kibutz, o ‘sacrifício dos soldados’, e um nacionalismo questionável.”
Esther é temperamental, com a língua bem presa ela solta: «Falar da ‘terra de Israel’ é por princípio contranatura na identidade judaica. Meu anti-sionismo religioso é de todo modo um pouco menos babaca que aqueles que dizem que é preciso esperar o Messias para morar em Israel. Sim, os judeus roubaram a terra porque não sabem gerir sua relação com ela. E perdem a cabeça a ponto de fazer muros e cercas de arame farpado. Os israelitas dizem: “Não temos escolha”. Isso é o pior!»
Aponto para ela que está tomando partido dos palestinos. «Os judeus roubaram a terra, de fato. Mas dos palestinos, que são os maiores imbecis do Oriente Médio, oportunistas, lamuriosos, incapazes de humanidade, de democracia, e portanto de propriedade. Sim, eu sou anti-sionista, mas igualmente anti-palestina. Considero sua causa indefensável. Não conheço sua história em muitos detalhes, mas para mim não se pode esperar nada de uma população kamikaze cujo desejo de viver se transformou em desejo de ver o outro morrer, enquanto o valor da vida é primordial e irredutível na religião judaica. Isto não impede de criticar os judeus, que se aviltam nesse conflito.»
Meus amigos portenhos vão cair de costas. Não há haredim na Argentina? Sem dúvida, não entre os analistas. Entretanto, um dia vocês terão Esther como colega, pois ela está em análise e começa a atender. Ela está indo muito bem com seus pacientes, quando não se impacienta. Moral da história: «There are more things in Heaven and Earth, Horatio, than are dreamt of in your philosophy.» De repente, não sei mais se posso me guiar pelo dito de Duchamp. Será que estamos jogando xadrez aqui? É mais um rugby intelectual. E com mais de duas equipes.
Publicado no dia 6 de fevereiro no lepoint.fr
Tradução: Teresinha N. M. Prado.



[1] N.T. Rir e se calar.
[2] N.T. Bernard-Henri Lévy.
[3] N.T. Em francês, respectivamente: cancaner e “lacancaner”.
[4] N.T. O próprio Bourguiba. Do árabe Mujahidin, embora seja atualmente atribuído quase que exclusivamente aos combatentes armados do fundamentalismo islâmico, não tem apenas essa acepção. Também pode significar alguém que combate por seu país, sua pátria, seu Estado ou seu povo, não necessariamente religioso. No caso, este foi epíteto atribuído na época a esse governante, referido nas fontes de pesquisa como laico.
[5] N.T. Título da carreira acadêmica, como um professor titular no Brasil.
[6] Modelo e personalidade francesa.
[7] Miller parodia a fala da modelo no mencionado comercial do xampu: "Euh, allô! non, mais allô, quoi. T'es une fille et t'as pas de shampooing? Allô. Allô! Je sais pas, moi, vous me recevez? T'es une fille, t'as pas de shampooing? C'est comme si je dis: t'es une fille, t'as pas de cheveux!"


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