terça-feira, 2 de junho de 2015

Internet, uma nova figura do Outro? por Nathalie Charraud

Que figuras do Outro trazem as novas tecnologias da computação, da robótica e dos seres humanos biologicamente e até cognitivamente ampliados [biônicos], nos anunciam para um futuro  próximo?
            No Seminário II, que traz a famosa conferência sobre cibernética, Lacan declarava que os computadores (então máquinas de calcular) representavam uma ameaça muito maior do que a bomba atômica(1). Essa afirmação, quase palavra por palavra, é retomada hoje, mais de sessenta anos depois, por alguns defensores de poderosas empresas de pesquisa de inteligência artificial como: Google, Apple, Facebook e Amazon (GAFA).
            Na Le Point[i], em um forum a pergunta: «O transumanismo é o futuro do homem?». Três brilhantes trintenários membros do think tank [expressão americana para designar pesquisadores independentes de estratégias empresariais e científicas...] Geração Livre explicam: «O termo“transumanismo” foi criado em 1957 por Julian Huxley, irmão do autor do Admirável Mundo Novo [Aldous Huxley]. Os três objetivos que caracterizam o transumanismo hoje são: prolongar a duração da vida humana, aumentar as capacidades humanas e desenvolver a Inteligência Artificial(IA). [...] as Nanotecnologias (N), a Biologia (B), a Tecnologia da Informação (I) e as Ciências Cognitives – Robótica, IA e as Neuro Ciências – (C) [juntas notadas por NBIC] permitem a realização desses projetos. Segundo os transumanistas, o homem do futuro será um organismo protótipo orientado para se aperfeiçoar continuamente, como a versão beta de um software» (2). A morte seria apagada por uma atualização do software ...  O transumanismo se desdobra hoje em várias correntes, cujas utopias políticas se diferenciam em função de um liberalismo mais ou menos acentuado(3).
            A afirmação de Lacan apoiava-se no fato de que precisamos de imagens para pensar, e que as respostas dadas por um computador poderiam ultrapassar o que um ser humano apreende pelas imagens. A explosão das capacidades de computação torna provável o surgimento de uma IA superior à inteligência humana. «De acordo com Ray Kurzweil (Engenheiro Chefe das NBIC do Google), uma inteligência artificial dotada de consciência deverá derrotar a inteligência humana a partir de 2045, sendo então um bilhão de vezes mais poderosa do que a reunião de todos os cérebros.» (4)
            A reunião de todos os cérebros, é o que propõe a web, essa tela que já agrupa 40% dos seres humanos da terra, provavelmente 50% em 2020. Desde que o telefone celular permite conectar-se ao mundo inteiro, as capacidades de informação e de pesquisa crescem de forma exponencial.
            Sem querer discutir a consciência dos robôs ou o seu inconsciente (um romance de ficção científica tem por título Os robôs sonham?), podemos nos perguntar sobre este Outro, simultaneamente real e simbólico que constitui hoje a Internet. A Internet tornou-se o Outro como lugar do simbólico. Se o Outro do simbólico se incorporasse em nossas referências tradicionais nas figuras do pai ou da mãe, que detinham como sujeitos do objeto a, isso é diretamente o smartphone, como o a que nos liga a este Outro do simbólico. Alguma coisa da dimensão subjetiva vai pular junto com a queda do Pai? É o objeto que nos conecta diretamente ao simbólico, como já o fazia o carretel do fort-da da netinha de Freud, mas aqui a alienação persiste, o objeto não escolhe, com o que ficaremos todos doravante loucos se não pudermos mais nos separar dos nossos celulares!
            No Seminário X, A angústia, Lacan declina as dimensões do Outro em três abordagens: a demanda do Outro; o desejo do Outro; o gozo do Outro (5). No ano seguinte, no Seminário XI, Lacan introduz o saber do Outro que permite definir a posição do analista na transferência como Sujeito Suposto Saber.
Assim as dimensões do Outro: demanda, desejo, gozo, se completam com o saber.
            O Outro-Internet é, ao mesmo tempo, todos esses Outros. Ele suscita demandas e desejos, é essencialmente gozo porque é trabalho e contagem. As religiões radicais os utilizam a serviço de seus gozos mortíferos. Ele não é desprovido de falta em relação ao saber, como nos mostra o fenômeno Wikipedia.
            O Outro da Internet pretende ser também o Outro da transparência, da gratuidade e do compartilhamento, e mesmo da solidariedade. Pelo menos é assim que veem os ideólogos do transumanismo que não distinguem mais a Internet dos outros avanços que oferecem os progressos da computação e preferem falar de NBIC.
             O que afirmam os transumanistas é que a limitação humana, que para Lacan levaria a algo enlouquecedor para a interpretação e a compreensão dos resultados fornecidos por uma máquina, pode ser ultrapassada e nós seremos até obrigados a evoluir nessa direção: «Será perigoso demais ser inferior demais às máquinas, com o risco de se tornar seus escravos em um cenário como o Matrix. Para estar à altura, o Google propõe hibridarmos, nós e a IA: tornarmo-nos cyborgs para não sermos destruídos!» (6).
Esse será o fim do ser humano 1.0, mas também o fim da guerra e do capitalismo, de acordo com os defensores dessa ideologia, porque as dimensões de risco e de jogo não terão mais sentido, pois os cálculos têm uma capacidade de previsão esmagadora sobre todos os métodos clássicos de avaliação. Sérios problemas políticos surgirão, entretanto. Esses jovens os analisam seriamente e preconizam, por exemplo, organizações em grupos sociais de pequenas dimensões para conter qualquer totalitarismo que, segundo eles, não representam realmente um risco. Contraprodutivo, o totalitarismo será eliminado de uma sociedade onde o uso substituirá a propridade. É neste sentido que os internautas foram mobilizados em grande número para sustentar o projeto de regulamentação para a neutralidade da net nos Estados Unidos, e saudaram a votação de 27 de feveiro último da FCC (Federal Communications Commission) em favor da interdição, feita aos operadores de bloquear sites, ou de privilegiar outros, por razões comerciais.
             No último capítulo do Seminário X, onde ele resume as etapas de formação da angústia, Lacan relembra que, para Freud, a angústia é um sinal diante de um perigo vital, e precisa: «um perigo ligado ao caráter de cessão do momento constitutivo do objeto a». O sinal é, então, anterior à cessão do objeto. Lacan deduziu daí que, para Freud, alguma coisa é mais primitiva que a situação de perigo, e isso é a angústia diante da cessão imminente do objeto. Ele evoca o traumatismo do nascimento, momento em que o pequeno sujeito é separado do meio líquido no qual ele se banhava para se econtrar em um meio totalmente diferente, separado da placenta que o envolvia. Este é o primeiro objeto a do sujeito, ligado ao Outro e ao enigma do seu desejo. A angústia se deve ao fato de que nós não sabemos que objeto a temos sido para o Outro e para seu desejo.
            Um Outro não identificado e seu desejo enigmático estão presentes por trás das situações de angústia. Enquanto ele não é nomeado, esse Outro é profundamente ameaçador e angustiante. «Não há superação da angústia senão quando o Outro é nomeado» (7). A angústia está ligada à presença de um Outro e de seu objeto, em geral o objeto olhar que pode ser sentido por trás de um brilho, uma mancha ou um ruído.
            Com a Internet, estamos diante de um desconhecido em nível mundial que deveria ser uma fonte de angústia. Além disso, o fenômeno do olhar do Big Brother foi bem descrito por Gérard Wajcman: estamos quase continuamente sob o olhar das câmeras de vigilância e outros vigias informatizados, mesmo se não os vemos (8). No entanto, não estamos tão angustiados por isso. A nova onda dos internautas vê o contrário na internet, vê um lugar de exercício da democracia e da liberdade de expressão a ser preservada como eles têm mostrado ao considerar a neutralidade da rede como uma vitória «cidadã».
             O criador do think tank Geração Livre nos coloca, entretanto, em guarda. Retomando uma fórmula de Foucault (9), ele adverte que o homem pode desaparecer: «A combinação do transumanismo com o Big data lança nossa espécie em uma trajetória desconhecida e exponencial, a ponto de um cientista como Stephen Hawking recentemente advertir que a inteligência artificial poderia por um fim à raça humana» (10).
            Eis aí um perigo e uma ameaça diante da qual seria adequado, segundo Freud, sentir uma certa angústia, sinal que nós ainda podemos perceber enquanto humanos 1.0.
             Mas Laurent Alexandre, como neurocirurgião, sublinha como a opinião é geralmente favorável às tentativas das biotecnologias que oferecem promessas inauditas de progresso na medecina e ele está convencido que logo a sua profissão de cirurgião não existirá mais, as ações cirúrgicas serão todas executadas por robôs. As medicações por implantação de nanopartículas estão prestes a se efetuar, e quem se aborrecerá quando se trata de progresso real para a saúde?
             Quanto aos computadores, a questão é mais complexa. Alan Turing, o conceitualizador do primeiro computador, se interrogava sobre o que poderia diferenciar, fundamentalmente, um ser humano de um computador, e idealizou o famoso teste de Turing: conversar com algo escondido atrás de uma cortina e advinhar se se trata de um ser humano ou de um computador. Recentemente um computador «venceu» o teste: mais da metade das pessoas que tinham conversado com ele o tomaram por um adolescente de 13 anos que ele simulou ser. No belo filme que o consagrou, Imitation Game (11), Turing é finamente apresentado como se colocando a questão de saber se ele é, ele próprio, um humano ou uma máquina. O teste que ele inventou se baseia justamente no fato de que só somos humanos se os outros nos reconhessem como tal. No final do «O tempo lógico e a asserção da certeza anticipada», não liga Lacan a questão da pressa a essa angústia de ser rejeitado pela humanidade, como não sendo um homem, isto no contexto imediato do pós guerra quando, efetivamente, muitos seres humanos foram tratados como não sendo homens? «Afirmo-me ser um homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser um homem» (12) . Como uma tal informação poderia se aplicar aos robôs? Muitos filmes de ficção científica jogam com esta questão (13).
            Hoje, do ponto de vista da inteligência medida pelo QI, a máquina tem recursos inteligentes bilhões de vezes mais poderosos do que os do homem. Mas o que distingue o homem da máquina é também que ela não tem o imaginário: só o homem é capaz de imaginar e criar imagens que já não estejam já disponíveis na caixa do seu smartphone ou em sua rede. Este imaginário que, enodado ao simbólico e ao real, é chamado de intuição, é o que nos permite inventar e criar. O imaginário, que é a nossa fraqueza contra as máquinas, é também o que nos distingue como humanos. A criação artística, no sentido mais amplo, permanece, mais do que nunca, sendo o nosso bem mais valioso.
 
1 : Lacan J., Le Séminaire, livre II, Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, Paris, Seuil, 1978, p. 111.
2 : Alexandre L., « Le transhumanisme est-il l’avenir de l’homme ? », Le Point n° 2215, p. 115.
3 : Voir par exemple « Les vertiges du transhumanisme », Le Monde Culture, 12.02.2015, ou Wikipedia.
4 : Alexandre L., « Le transhumanisme est-il l’avenir de l’homme ? », op. cit.., p.116
5 : Lacan J., Le Séminaire, livre X,  L’angoisse, Paris, Seuil, 2004, p. 71.
6 : Ibid., p. 116.
7 : Ibid., p. 390.
8 : Cf. Wajcman G., L’oeil absolu, Denoël, 2010.
9 : M. Foucault, 1966, conclusion de Les mots et les choses, cité par G. Koenig, Le Point n° 2215, p. 117.
10 : Koenig G. , « L’homme peut s’effacer », Le Point n° 2215, p. 118.
11 : Cf.  présentation de ce film dans Hebdo-blog de l’ECF n°22.
12 : Lacan J., Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 213.
13 : On peut citer Blade runner, Total recall ou Her, parmi beaucoup d’autres.

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