Que figuras do Outro trazem as novas tecnologias da computação, da robótica e dos seres humanos biologicamente e até cognitivamente ampliados [biônicos], nos anunciam para um futuro próximo?
No
Seminário II, que traz a famosa conferência sobre cibernética, Lacan
declarava que os computadores (então máquinas de calcular) representavam
uma ameaça muito maior do que a bomba atômica(1).
Essa afirmação, quase palavra por palavra, é retomada hoje, mais de
sessenta anos depois, por alguns defensores de poderosas empresas de
pesquisa de inteligência artificial como: Google, Apple, Facebook e
Amazon (GAFA).
Na Le Point[i], em um forum a pergunta: «O transumanismo é o futuro do homem?». Três brilhantes trintenários membros do think tank
[expressão americana para designar pesquisadores independentes de
estratégias empresariais e científicas...] Geração Livre explicam: «O
termo“transumanismo” foi criado em 1957 por Julian Huxley, irmão do
autor do Admirável Mundo Novo [Aldous Huxley]. Os três objetivos
que caracterizam o transumanismo hoje são: prolongar a duração da vida
humana, aumentar as capacidades humanas e desenvolver a Inteligência
Artificial(IA). [...] as Nanotecnologias (N), a Biologia (B), a
Tecnologia da Informação (I) e as Ciências Cognitives – Robótica, IA e
as Neuro Ciências – (C) [juntas notadas por NBIC] permitem a realização
desses projetos. Segundo os transumanistas, o homem do futuro será um organismo protótipo orientado para se aperfeiçoar continuamente, como a versão beta de um software» (2). A morte seria apagada por uma atualização do software ... O transumanismo se desdobra hoje em várias correntes, cujas utopias políticas se diferenciam em função de um liberalismo mais ou menos acentuado(3).
A afirmação de Lacan apoiava-se
no fato de que precisamos de imagens para pensar, e que as respostas
dadas por um computador poderiam ultrapassar o que um ser humano
apreende pelas imagens. A explosão das capacidades de computação torna provável o surgimento de uma IA superior à inteligência humana. «De acordo com Ray Kurzweil (Engenheiro Chefe das NBIC do Google), uma inteligência artificial dotada de consciência
deverá derrotar a inteligência humana a partir de 2045, sendo então um
bilhão de vezes mais poderosa do que a reunião de todos os cérebros.» (4)
A reunião de todos os cérebros, é o que propõe a web, essa tela que já
agrupa 40% dos seres humanos da terra, provavelmente 50% em 2020. Desde
que o telefone celular permite conectar-se ao mundo inteiro, as
capacidades de informação e de pesquisa crescem de forma exponencial.
Sem querer discutir a consciência dos robôs ou o seu inconsciente (um romance de ficção científica tem por título Os robôs sonham?), podemos
nos perguntar sobre este Outro, simultaneamente real e simbólico que
constitui hoje a Internet. A Internet tornou-se o Outro como lugar do
simbólico. Se o Outro do simbólico se incorporasse em nossas referências tradicionais nas figuras do pai ou da mãe, que detinham como sujeitos do objeto a, isso é diretamente o smartphone, como o a
que nos liga a este Outro do simbólico. Alguma coisa da dimensão
subjetiva vai pular junto com a queda do Pai? É o objeto que nos conecta
diretamente ao simbólico, como já o fazia o carretel do fort-da da
netinha de Freud, mas aqui a alienação persiste, o objeto não escolhe,
com o que ficaremos todos doravante loucos se não pudermos mais nos
separar dos nossos celulares!
No Seminário X, A angústia,
Lacan declina as dimensões do Outro em três abordagens: a demanda do
Outro; o desejo do Outro; o gozo do Outro (5). No ano seguinte, no
Seminário XI, Lacan introduz o saber do Outro que permite definir a
posição do analista na transferência como Sujeito Suposto Saber.
Assim as dimensões do Outro: demanda, desejo, gozo, se completam com o saber.
O Outro-Internet é, ao mesmo tempo, todos esses Outros. Ele suscita
demandas e desejos, é essencialmente gozo porque é trabalho e contagem.
As religiões radicais os utilizam a serviço de seus gozos mortíferos.
Ele não é desprovido de falta em relação ao saber, como nos mostra o
fenômeno Wikipedia.
O Outro da Internet pretende ser também o Outro da transparência, da
gratuidade e do compartilhamento, e mesmo da solidariedade. Pelo menos é
assim que veem os ideólogos do transumanismo que não distinguem mais a
Internet dos outros avanços que oferecem os progressos da computação e
preferem falar de NBIC.
O que afirmam os transumanistas é que a limitação humana, que para Lacan levaria a algo enlouquecedor para a interpretação e a compreensão dos resultados fornecidos por uma máquina, pode ser ultrapassada e
nós seremos até obrigados a evoluir nessa direção: «Será perigoso
demais ser inferior demais às máquinas, com o risco de se tornar seus
escravos em um cenário como o Matrix. Para estar à altura, o Google
propõe hibridarmos, nós e a IA: tornarmo-nos cyborgs para não sermos
destruídos!» (6).
Esse
será o fim do ser humano 1.0, mas também o fim da guerra e do
capitalismo, de acordo com os defensores dessa ideologia, porque as
dimensões de risco e de jogo
não terão mais sentido, pois os cálculos têm uma capacidade de previsão
esmagadora sobre todos os métodos clássicos de avaliação. Sérios
problemas políticos surgirão, entretanto. Esses jovens os analisam
seriamente e preconizam, por exemplo, organizações em grupos sociais de
pequenas dimensões para conter qualquer totalitarismo que, segundo eles,
não representam realmente um risco. Contraprodutivo, o totalitarismo
será eliminado de uma sociedade onde o uso substituirá a propridade. É neste sentido que os internautas
foram mobilizados em grande número para sustentar o projeto de
regulamentação para a neutralidade da net nos Estados Unidos, e saudaram
a votação de 27 de feveiro último da FCC (Federal Communications Commission) em favor da interdição, feita aos operadores de bloquear sites, ou de privilegiar outros, por razões comerciais.
No último capítulo do Seminário X, onde ele resume as etapas de formação da angústia, Lacan relembra que, para Freud, a angústia é um sinal diante de um perigo vital, e precisa: «um perigo ligado ao caráter de cessão do momento constitutivo do objeto a».
O sinal é, então, anterior à cessão do objeto. Lacan deduziu daí que,
para Freud, alguma coisa é mais primitiva que a situação de perigo, e
isso é a angústia diante da cessão imminente do objeto. Ele evoca o
traumatismo do nascimento, momento em que o pequeno sujeito é separado
do meio líquido no qual ele se banhava para se econtrar em um meio
totalmente diferente, separado da placenta que o envolvia. Este é o
primeiro objeto a do sujeito, ligado ao Outro e ao enigma do seu desejo. A angústia se deve ao fato de que nós não sabemos que objeto a temos sido para o Outro e para seu desejo.
Um Outro não identificado e seu desejo enigmático estão presentes por trás das situações de angústia. Enquanto ele não é nomeado, esse Outro é profundamente
ameaçador e angustiante. «Não há superação da angústia senão quando o
Outro é nomeado» (7). A angústia está ligada à presença de um Outro e de
seu objeto, em geral o objeto olhar que pode ser sentido por trás de um
brilho, uma mancha ou um ruído.
Com
a Internet, estamos diante de um desconhecido em nível mundial que
deveria ser uma fonte de angústia. Além disso, o fenômeno do olhar do
Big Brother foi bem descrito por Gérard Wajcman: estamos quase
continuamente sob o olhar das câmeras de vigilância e outros vigias informatizados, mesmo se não os vemos (8). No entanto, não estamos tão angustiados por isso. A nova onda dos internautas vê
o contrário na internet, vê um lugar de exercício da democracia e da
liberdade de expressão a ser preservada como eles têm mostrado ao
considerar a neutralidade da rede como uma vitória «cidadã».
O criador do think tank Geração Livre nos coloca, entretanto, em guarda. Retomando uma fórmula de Foucault (9), ele adverte que o homem pode desaparecer: «A combinação do transumanismo com o Big data lança nossa espécie em uma trajetória desconhecida e exponencial, a ponto de um cientista como Stephen Hawking recentemente advertir que a inteligência artificial poderia por um fim à raça humana» (10).
Eis aí um perigo e uma ameaça diante da qual seria adequado, segundo Freud, sentir uma certa angústia, sinal que nós ainda podemos perceber enquanto humanos 1.0.
Mas Laurent Alexandre, como neurocirurgião, sublinha como a opinião é
geralmente favorável às tentativas das biotecnologias que oferecem
promessas inauditas de progresso na medecina e ele está convencido que
logo a sua profissão de cirurgião não existirá mais, as ações cirúrgicas
serão todas executadas por robôs. As medicações por implantação de
nanopartículas estão prestes a se efetuar, e quem se aborrecerá quando
se trata de progresso real para a saúde?
Quanto
aos computadores, a questão é mais complexa. Alan Turing, o
conceitualizador do primeiro computador, se interrogava sobre o que
poderia diferenciar, fundamentalmente, um ser humano de um computador, e
idealizou o famoso teste de Turing: conversar com algo escondido atrás de uma cortina e
advinhar se se trata de um ser humano ou de um computador. Recentemente
um computador «venceu» o teste: mais da metade das pessoas que tinham
conversado com ele o tomaram por um adolescente de 13 anos que ele
simulou ser. No belo filme que o consagrou, Imitation Game (11),
Turing é finamente apresentado como se colocando a questão de saber se
ele é, ele próprio, um humano ou uma máquina. O teste que ele inventou
se baseia justamente no fato de que só somos humanos se os outros nos
reconhessem como tal. No final do «O tempo lógico e a asserção da
certeza anticipada», não liga Lacan a questão da pressa a essa angústia
de ser rejeitado pela humanidade, como não sendo um homem, isto no contexto imediato do pós guerra quando, efetivamente, muitos seres humanos foram tratados como não sendo homens? «Afirmo-me ser um homem, por medo de ser convencido pelos homens de não ser um homem» (12) . Como uma tal informação poderia se aplicar aos robôs? Muitos filmes de ficção científica jogam com esta questão (13).
Hoje,
do ponto de vista da inteligência medida pelo QI, a máquina tem
recursos inteligentes bilhões de vezes mais poderosos do que os do homem. Mas o que distingue o homem da máquina é também que ela não tem o imaginário: só o homem é capaz de imaginar e criar imagens que já não estejam já disponíveis na caixa do seu smartphone ou em sua rede. Este imaginário que, enodado ao simbólico e ao real, é chamado de intuição, é o que nos permite inventar e criar. O imaginário, que
é a nossa fraqueza contra as máquinas, é também o que nos distingue
como humanos. A criação artística, no sentido mais amplo, permanece,
mais do que nunca, sendo o nosso bem mais valioso.
1 : Lacan J., Le Séminaire, livre II, Le moi dans la théorie de Freud et dans la technique de la psychanalyse, Paris, Seuil, 1978, p. 111.
2 : Alexandre L., « Le transhumanisme est-il l’avenir de l’homme ? », Le Point n° 2215, p. 115.
3 : Voir par exemple « Les vertiges du transhumanisme », Le Monde Culture, 12.02.2015, ou Wikipedia.
4 : Alexandre L., « Le transhumanisme est-il l’avenir de l’homme ? », op. cit.., p.116
5 : Lacan J., Le Séminaire, livre X, L’angoisse, Paris, Seuil, 2004, p. 71.
6 : Ibid., p. 116.
7 : Ibid., p. 390.
8 : Cf. Wajcman G., L’oeil absolu, Denoël, 2010.
9 : M. Foucault, 1966, conclusion de Les mots et les choses, cité par G. Koenig, Le Point n° 2215, p. 117.
10 : Koenig G. , « L’homme peut s’effacer », Le Point n° 2215, p. 118.
11 : Cf. présentation de ce film dans Hebdo-blog de l’ECF n°22.
12 : Lacan J., Écrits, Paris, Seuil, 1966, p. 213.
13 : On peut citer Blade runner, Total recall ou Her, parmi beaucoup d’autres.
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