Iordan Gurgel, Psiquiatra; Analista Membro da Associação Mundial de Psicanálise; Membro e Presidente da Escola Brasileira de Psicanálise
I - Política
Política é um significante que se refere mais ao universal e está sustentado nos ideais, sistemas e utopias, em contraponto ao particular da clínica e mais ainda do sujeito. A questão inicial é como pensar uma política do sinthoma?
Esta questão está, não só no âmago da experiência analítica – é a política da direção do tratamento, função do desejo do analista – mas também se constitui como determinante na diferença entre as orientações dos grupos analíticos. Por exemplo, a política da orientação lacaniana do final de análise como identificação ao sintoma se opõe à identificação ao analista da orientação da IPA. Mas, também nos diferenciamos da política da ciência, do discurso do mestre e seu consentâneo, o capitalista, que opera com o fantasma, com o fetiche, e enfrentamos o senso comum, que diz existir coisas obscuras que devem ser esclarecidas.
A posição política de Lacan, diz Miller , era ser contra tudo que é a favor, porque ...a política procede por identificação, ela manipula significantes mestres... para manipular o sujeito. Poderiamos então deduzir que a política vai contra a psicanálise, que busca a queda das identificações do sujeito, esvaziar o gozo do sintoma e atravessar a fantasia que impulsionava seu destino. Mas, paradoxalmente o inconsciente é a política! disse Lacan para chamar atenção da estrutura do inconsciente: trans-individual, sintonizada com o discurso do Outro e dessubstanciada, que mais se assemelha com uma relação, ou com algo que se produz em uma relação, assim como na política.
Lacan, na Direção do tratamento, diz que o analista é menos livre em sua estratégia do que em sua tática e mais: ele é menos livre ainda no que domina a estratégia e a tática, isto é, a política. Formular uma ética que elevasse o desejo do analista ao vértice da experiência era a consigna deste texto que predominou em toda obra e clínica de Lacan. A força deste instrumento na direção do tratamento procede de tudo o que o analista não deve fazer e consiste em não se servir da força que lhe dá a situação de linguagem instituída pela demanda do sujeito que sofre . Lacan foi enfático: é o desejo do analista que mantém a direção da análise; ele dirige a cura e não o paciente, condição necessária para estabelecer uma política do sinthoma.
Anos depois, em A Terceira, Lacan reafirma : o poder é sempre um poder ligado à palavra...a política repousa sobre o fato de que todo mundo fica demasiado contente em ter alguém que lhe diga: em frente, marche – aliás sem se importar para onde. No discurso do mestre há alguém que faz semblante de comandar e isto é da estrutura mesma deste discurso em oposição ao discurso do analista.
II – Política do Sintoma
Toda a produção humana (cultura, religião, ciência), pode ser entendida a partir da falha estrutural do simbólico em relação ao real. A política se revela como uma modalidade particular de modalizar o encontro com o real . Uma outra maneira de pensá-la é como a possibilidade de poder se convier com o diferente e para tanto é necessário que este diferente mude de posição, o que nos aproxima da concepção do sintoma com o qual devemos conviver em uma parceria infinita e que não nos faça sofrer como dantes.
A importância da psicanálise está em intervir, desde a subjetividade do sujeito, naquilo que lhe faz sintoma a partir da vida cotidiana. O sintoma é o que denuncia que há o real, que nem tudo é construído e programado, além de ser o elemento verdadeiramente clínico, considerando que as formações do inconsciente: sonho, lapso, chiste, ato falho não são motivos de tratamento . Em um primeiro momento ele é reconhecido, endereçado ao Outro; é um dado elemento da realidade social compartilhada. Lacan o define como um fato – dado fundamental da experiência analítica – e tomá-lo como fato é colocá-lo no âmbito da política.
O acontecimento Freud introduziu o reconhecimento das pulsões e a questão quanto à satisfação: o mal-estar, as doenças e os sintomas, que são substitutos da satisfação das pulsões. Em conseqüência, se o sintoma é uma satisfação disfarçada, é possível decifrá-lo e esta era a política freudiana para o sintoma, que esbarrou no rochedo da castração. É, para Freud, a condição de ser sobredeterminado e ocultar uma verdade, que o sintoma estaria fadado a sempre perseguir um sentido e escapar dele, acrescentou Lacan.
Assim, a política do sintoma, fundante da clínica psicanalítica, é sua inserção clínica do sentido gozado (que está na fala), que é decifrável, enquanto formação propriamente semântica. A aparente resolução deste sintoma esbarra na constatação que mesmo quando decifrado ele persiste o que nos remete a uma nova formulação de sua política.
III – Políticas do Sinthoma:
Um passo a mais é considerar a política do sinthoma, que implica um avanço conceitual a partir do final do ensino de Lacan, que contempla a conjunção do atravessamento do fantasma à identificação ao sintoma, mas principalmente a separação entre o real e o fora sentido. Esta condição é de uma relevância extraordinária, porque nos ajuda a pensar a relação entre a psicanálise pura e aplicada, demonstrando mais aproximações que separações e afastando-as definitivamente das psicoterapias . A psicanálise pura é como deveria ser – se conclui com o Passe – e a aplicada é tal como é. Esta é a psicanálise aplicada ao sintoma que é reduzido de gozo, mas não se atinge o fantasma para atravessa-lo . A psicanálise pura é levada até suas últimas conseqüências, até um ponto de detenção que se apresenta como algo particular a cada sujeito que passou pela experiência: um despertar, um entusiasmo, uma iluminação, uma verdade, um encontro, enfim um ponto de real, uma suposição de saber no real .
Esta nova concepção política é tributária da enunciação de Lacan (em Joyce, o sintoma): o gozo próprio ao sintoma exclui o sentido – isto é demonstrado na experiência analítica quando se verifica a impotência da interpretação. O sintoma não é uma metáfora, mas funciona como um ponto de basta quanto a metonímia do desejo – ele faz barreira ao desejo. Mesmo decifrado o sintoma subsiste – esta é a política própria ao sintoma, persistir. A política do sinthoma não inclui a clínica apenas como tudo o que se diz em uma análise, e sim como o impossível de dizer, de suportar e se baseia no modelo obsessivo do sintoma – é fundamentalmente real já que resiste ao dizer. É sintoma não porque tem uma significação e sim porque se repete . Algo se resolve do sintoma não porque se encontrou uma significação última, mas porque se encontrou o impossível de se explicar.
No seminário O sinthoma, a teoria do nó borromeu é reforçada com a introdução do sinthoma como o quarto nó que enlaça o RSI (e sempre ameaça desfazer-se). Agora o sinthoma é colocado no centro da clínica e já não se faz a diferença entre sintoma e fantasma – é a política da recusa do sentido que aponta para o real, correlativo ao conceito de falasser .
Dizer política do sinthoma e associá-la à psicanálise pura extrapola o campo da política institucional para tomá-la no mais íntimo da relação analítica e fazê-la tributária do desejo do analista. Trata-se de uma política da direção do tratamento e suas conseqüências, que ultrapassa a lógica edípica, passa pela operação redução, que permite ir além da interpretação, põe um limite ao sentido, e nos defronta com a passagem do inconsciente transferencial para o real .
IV - Desejo do Analista:
A passagem do sintoma para sinthoma necessita de um operador, o desejo do analista. Em relação a psicanálise pura a política é esta transformação. Podemos pensar o desejo do analista enquanto função analítica que estabelece a política da direção da cura e vai de encontro a rebeldia do sintoma. É um desejo que não se sustenta no fantasma – este já foi atravessado e incorporado no sinthoma – tampouco está impregnado do gozo do sintoma, e sim modulado por um saber fazer aí; é o desejo de separar o sujeito de suas identificações, dos significantes amos que o coletiviza.
Um exemplo clínico, a partir de um relato de Passe , nos apresenta um sujeito que vivia em dificuldades na sua relação com o grupo analítico – não estar a altura de suas tarefas. O surgimento do desejo do analista a partir de uma intervenção do analista, dentro de um contexto político-sintomático, levou-o a questionar se isso era possível de demonstrar e transmitir. Ao perceber que o trabalho analítico produziu uma mudança em sua posição subjetiva, antes sustentada pelo horror ao saber, deu um passo adiante e, ao considerar-se como exceção no grupo, abriu-lhe as portas para defrontar-se com o Outro barrado e aparecesse a perda de gozo que sustentava sua posição no grupo. O que apresentamos como ilustrativo é o que foi destacado pelo sujeito: pôr o desejo do analista – em sua vertente clínica e epistêmica – à prova e trabalhar pela Escola, constituindo-se assim, no caso, uma passagem da política-sintoma para a Escola-Sinthoma.
Para se instituir uma política do sinthoma é necessário verificar sua aplicabilidade considerando os princípios do ato analítico :
- O analista não se identifica com nenhum dos papéis que o analisante queira que ele represente, tampouco com nenhum ideal da civilização. Nenhum lugar pode lhe ser atribuído a não ser o da questão sobre o desejo.
- A decifração do sentido nas trocas entre analisante e analista não é só o que está em jogo.
- Quando o analisante fala, ele quer, para além do sentido daquilo que diz, alcançar no Outro o parceiro de suas expectativas, crenças e desejos. Ele visa o parceiro de sua fantasia. O psicanalista esclarecido pela experiência sobre a natureza de sua própria fantasia, leva isso em conta. Ele se abstém de agir em nome dessa fantasia.
- Não há tratamento standard. A experiência da psicanálise tem apenas uma regularidade: a da originalidade do cenário através do qual se manifesta a singularidade subjetiva e a produção de sua singularidade, sua exceção.
- A melhor definição da duração do tratamento é «sob medida». Um tratamento é levado adiante até que o analisante esteja suficientemente satisfeito com aquilo do qual fez a experiência. Visa-se não a aplicação de uma norma, mas sim um ajuste do sujeito consigo mesmo.
- A relação entre os sexos não tem uma solução que possa ser «para todos». Nesse sentido, ela permanece marcada com o selo do incurável, nela, sempre haverá algo que falha. O sexo, no ser falante, decorre do «não-todo».
- É no passe que o analista atesta a superação de seus impasses.
Se na política do social é o povo que sempre paga os gastos do acontecimento político para a política do sinthoma, no âmbito da psicanálise pura, o analista paga com seu desejo – renúncia ao desejo de poder, que lhe impõe não se utilizar dos meios que ele dispõe, a sugestão e a identificação – ao ser causado e trabalhar pela causa analítica, implicando-se, não só com a clínica, mas também com o Outro social e o compromisso com sua época.
Estamos na política, seja na formação do analista, na direção do tratamento e suas conseqüências: a psicanálise aplicada, a psicanálise pura e o Passe. Mas, especialmente, la política del analista es la del sinthoma, eso que le permite situarse más allá del ideal unificante y de la norma adaptativa que el Otro quiere implantar .
Citado por Miller em O.Lacaniana 40, p. 11.
Conforme Xavier Esqué, Una política del síntoma. XI Jornadas Castellano-Leonesas de Psicoanalisis.
segunda-feira, 30 de março de 2009
terça-feira, 24 de março de 2009
Considerações acerca do III Colóquio: Psicanálise e Sintoma
Carlange de Castro
É psicanalista, especialista em psicologia clínica
e diretora do CEPP.
Caminhar. Foi essa a palavra que surgiu durante o III Colóquio: Psicanálise e Sintoma que aconteceu nos dias 20 e 21 de março como abertura das atividades do CEPP. Para esse momento esteve conosco Iordan Gurgel, psiquiatra, analista e presidente da Escola Brasileira de Psicanálise.
Iordan Gurgel, no primeiro dia, faz uma contextualização da psicanálise e a diferença entre o saber universitário (um saber completo e articulado a um mestre), e o saber psicanalítico, que é inerente ao sujeito.
Durante o seminário, Psicanálise e Sintoma, Iordan pontua o sintoma como uma formação do inconsciente, que a partir do acumulo de significantes e sentidos, vai estruturando-o na tentativa de tamponar uma falta que é estruturante. Para o sujeito, o sintoma se apresenta como enigma, uma mensagem a ser cifrada, impossibilitando o sujeito de dizer algo sobre seu sintoma, provocando mal-estar. Iordan articula o saber médico com o da psicanálise afirmando que ambos não possuem a cura dos sintomas, o que existe é uma forma de tratar que depende mais do sujeito que do analista. A responsabilização do sintoma é do sujeito e não da medicação, sendo “a análise uma possibilidade de esvaziar o sintoma de gozo”. Desta forma, o sintoma é a via de entrada em uma análise. Não apenas um sintoma de ordem clinica, mas algo que provoque no sujeito um desconforto.
Na direção do tratamento, a psicanálise vai trabalhar como operativo que cause no sujeito o desejo de saber, modificando o estatuto do saber direcionado ao outro para direcionado a si, visando que o sujeito possa dar conta da relação particular do seu desejo.
Comprometido com esse ideal, o CEPP segue caminhando no campo da psicanálise, articulando-se a vários saberes, construindo o caminho para nossos próximos encontros.
É psicanalista, especialista em psicologia clínica
e diretora do CEPP.
Caminhar. Foi essa a palavra que surgiu durante o III Colóquio: Psicanálise e Sintoma que aconteceu nos dias 20 e 21 de março como abertura das atividades do CEPP. Para esse momento esteve conosco Iordan Gurgel, psiquiatra, analista e presidente da Escola Brasileira de Psicanálise.
Iordan Gurgel, no primeiro dia, faz uma contextualização da psicanálise e a diferença entre o saber universitário (um saber completo e articulado a um mestre), e o saber psicanalítico, que é inerente ao sujeito.
Durante o seminário, Psicanálise e Sintoma, Iordan pontua o sintoma como uma formação do inconsciente, que a partir do acumulo de significantes e sentidos, vai estruturando-o na tentativa de tamponar uma falta que é estruturante. Para o sujeito, o sintoma se apresenta como enigma, uma mensagem a ser cifrada, impossibilitando o sujeito de dizer algo sobre seu sintoma, provocando mal-estar. Iordan articula o saber médico com o da psicanálise afirmando que ambos não possuem a cura dos sintomas, o que existe é uma forma de tratar que depende mais do sujeito que do analista. A responsabilização do sintoma é do sujeito e não da medicação, sendo “a análise uma possibilidade de esvaziar o sintoma de gozo”. Desta forma, o sintoma é a via de entrada em uma análise. Não apenas um sintoma de ordem clinica, mas algo que provoque no sujeito um desconforto.
Na direção do tratamento, a psicanálise vai trabalhar como operativo que cause no sujeito o desejo de saber, modificando o estatuto do saber direcionado ao outro para direcionado a si, visando que o sujeito possa dar conta da relação particular do seu desejo.
Comprometido com esse ideal, o CEPP segue caminhando no campo da psicanálise, articulando-se a vários saberes, construindo o caminho para nossos próximos encontros.
domingo, 8 de março de 2009
Entrevista de Jacques-Alain Miller
Psychologies Magazine, outubro 2008, n° 278
Entrevista realizada por Hanna Waar
Psychologies: A psicanálise ensina alguma coisa sobre o amor?
Jacques-Alain Miller: Muito, pois é uma experiência cuja fonte é o amor. Trata-se desse amor automático, e freqüentemente inconsciente, que o analisando dirige ao analista e que se chama transferência. É um amor fictício, mas é do mesmo estofo que o amor verdadeiro. Ele atualiza sua mecânica: o amor se dirige àquele que a senhora pensa que conhece sua verdade verdadeira. Porém, o amor permite imaginar que essa verdade será amável, agradável, enquanto ela é, de fato, difícil de suportar.
P.: Então, o que é amar verdadeiramente?
J-A Miller: Amar verdadeiramente alguém é acreditar que, ao amá-lo, se alcançará a uma verdade sobre si. Ama-se aquele ou aquela que conserva a resposta, ou uma resposta, à nossa questão "Quem sou eu?".
P.: Por que alguns sabem amar e outros não?
J-A Miller: Alguns sabem provocar o amor no outro, os serial lovers - se posso dizer - homens e mulheres. Eles sabem quais botões apertar para se fazer amar. Porém, não necessariamente amam, mais brincam de gato e rato com suas presas. Para amar, é necessário confessar sua falta e reconhecer que se tem necessidade do outro, que ele lhe falta. Os que crêem ser completos sozinhos, ou querem ser, não sabem amar. E, às vezes, o constatam dolorosamente. Manipulam, mexem os pauzinhos, mas do amor não conhecem nem o risco, nem as delícias.
P.: "Ser completo sozinho”: só um homem pode acreditar nisso...
J-A Miller: Acertou! "Amar, dizia Lacan, é dar o que não se tem". O que quer dizer: amar é reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o que se possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que vai além de si mesmo. Para isso, é preciso se assegurar de sua falta, de sua "castração", como dizia Freud. E isso é essencialmente feminino. Só se ama verdadeiramente a partir de uma posição feminina. Amar feminiza. É por isso que o amor é sempre um pouco cômico em um homem. Porém, se ele se deixa intimidar pelo ridículo, é que, na realidade, não está seguro de sua virilidade.
P.: Amar seria mais difícil para os homens?
J-A Miller: Ah, sim! Mesmo um homem enamorado tem retornos de orgulho, assaltos de agressividade contra o objeto de seu amor, porque esse amor o coloca na posição de incompletude, de dependência. É por isso que pode desejar as mulheres que não ama, a fim de reencontrar a posição viril que coloca em suspensão quando ama. Esse princípio Freud denominou a "degradação da vida amorosa" no homem: a cisão do amor e do desejo sexual.
P.: E nas mulheres?
J-A Miller: É menos habitual. No caso mais freqüente há desdobramento do parceiro masculino. De um lado, está o amante que as faz gozar e que elas desejam, porém, há também o homem do amor, feminizado, funcionalmente castrado. Entretanto, não é a anatomia que comanda: existem as mulheres que adotam uma posição masculina. E cada vez mais. Um homem para o amor, em casa; e homens para o gozo, encontrados na Internet, na rua, no trem...
P.: Por que "cada vez mais"?
J-A Miller: Os estereótipos socioculturais da feminilidade e da virilidade estão em plena mutação. Os homens são convidados a acolher suas emoções, a amar, a se feminizar; as mulheres, elas, conhecem ao contrário um certo “empuxo-ao-homem”: em nome da igualdade jurídica são conduzidas a repetir “eu também”. Ao mesmo tempo, os homossexuais reivindicam os direitos e os símbolos dos héteros, como casamento e filiação. Donde uma grande instabilidade dos papéis, uma fluidez generalizada do teatro do amor, que contrasta com a fixidez de antigamente. O amor se torna “líquido”, constata o sociólogo Zygmunt Bauman (1). Cada um é levado a inventar seu próprio “estilo de vida” e a assumir seu modo de gozar e de amar. Os cenários tradicionais caem em lento desuso. A pressão social para neles se conformar não desapareceu, mas está em baixa.
P.: “O amor é sempre recíproco”, dizia Lacan. Isso ainda é verdade no contexto atual? O que significa?
J-A Miller: Repete-se esta frase sem compreendê-la ou compreendendo-a mal. Ela não quer dizer que é suficiente amar alguém para que ele vos ame. Isso seria absurdo. Quer dizer: “Se eu te amo é que tu és amável. Sou eu que amo, mas tu, tu também estás envolvido, porque há em ti alguma coisa que me faz te amar. É recíproco porque existe um vai-e-vem: o amor que tenho por ti é efeito do retorno da causa do amor que tu és para mim. Portanto, tu não estás aí à toa. Meu amor por ti não é só assunto meu, mas teu também. Meu amor diz alguma coisa de ti que talvez tu mesmo não conheças”. Isso não assegura, de forma alguma, que ao amor de um responderá o amor do outro: isso, quando isso se produz, é sempre da ordem do milagre, não é calculável por antecipação.
P.: Não se encontra seu ‘cada um’, sua ‘cada uma’ por acaso. Por que ele? Por que ela?
J-A Miller: Existe o que Freud chamou de Liebesbedingung, a condição do amor, a causa do desejo. É um traço particular – ou um conjunto de traços – que tem para cada um função determinante na escolha amorosa. Isto escapa totalmente às neurociências, porque é próprio de cada um, tem a ver com sua história singular e íntima. Traços às vezes ínfimos estão em jogo. Freud, por exemplo, assinalou como causa do desejo em um de seus pacientes um brilho de luz no nariz de uma mulher!
P.: É difícil acreditar em um amor fundado nesses elementos sem valor, nessas baboseiras!
J-A Miller: A realidade do inconsciente ultrapassa a ficção. A senhora não tem idéia de tudo o que está fundado, na vida humana, e especialmente no amor, em bagatelas, em cabeças de alfinete, os “divinos detalhes”. É verdade que, sobretudo no macho, se encontram tais causas do desejo, que são como fetiches cuja presença é indispensável para desencadear o processo amoroso. As particularidades miúdas, que relembram o pai, a mãe, o irmão, a irmã, tal personagem da infância, também têm seu papel na escolha amorosa das mulheres. Porém, a forma feminina do amor é, de preferência, mais erotômana que fetichista : elas querem ser amadas, e o interesse, o amor que alguém lhes manifesta, ou que elas supõem no outro, é sempre uma condição sine qua non para desencadear seu amor, ou, pelo menos, seu consentimento. O fenômeno é a base da corte masculina.
P.: O senhor atribui algum papel às fantasias?
J-A Miller: Nas mulheres, quer sejam conscientes ou inconscientes, são mais determinantes para a posição de gozo do que para a escolha amorosa. E é o inverso para os homens. Por exemplo, acontece de uma mulher só conseguir obter o gozo – o orgasmo, digamos – com a condição de se imaginar, durante o próprio ato, sendo batida, violada, ou de ser uma outra mulher, ou ainda de estar ausente, em outro lugar.
P.: E a fantasia masculina?
J-A Miller: Está bem evidente no amor à primeira vista. O exemplo clássico, comentado por Lacan, é, no romance de Goethe (2), a súbita paixão do jovem Werther por Charlotte, no momento em que a vê pela primeira vez, alimentando ao numeroso grupo de crianças que a rodeiam. Há aqui a qualidade maternal da mulher que desencadeia o amor. Outro exemplo, retirado de minha prática, é este: um patrão qüinquagenário recebe candidatas a um posto de secretária. Uma jovem mulher de 20 anos se apresenta; ele lhe declara de imediato seu fogo. Pergunta-se o que o tomou, entra em análise. Lá, descobre o desencadeante: ele havia nela reencontrado os traços que evocavam o que ele próprio era quando tinha 20 anos, quando se apresentou ao seu primeiro emprego. Ele estava, de alguma forma, caído de amores por ele mesmo. Reencontra-se nesses dois exemplos, as duas vertentes distinguidas por Freud: ama-se ou a pessoa que protege, aqui a mãe, ou a uma imagem narcísica de si mesmo.
P.: Tem-se a impressão de que somos marionetes!
J-A Miller: Não, entre tal homem e tal mulher, nada está escrito por antecipação, não há bússola, nem proporção pré-estabelecida. Seu encontro não é programado como o do espermatozóide e do óvulo; nada a ver também com os genes. Os homens e as mulheres falam, vivem num mundo de discurso, e isso é determinante. As modalidades do amor são ultra-sensíveis à cultura ambiente. Cada civilização se distingue pela maneira como estrutura a relação entre os sexos. Ora, acontece que no Ocidente, em nossas sociedades ao mesmo tempo liberais, mercadológicas e jurídicas, o “múltiplo” está passando a destronar o “um”. O modelo ideal do “grande amor de toda a vida” cede, pouco a pouco, terreno para o speed dating, o speed loving e toda floração de cenários amorosos alternativos, sucessivos, inclusive simultâneos.
P.: E o amor no tempo, em sua duração? Na eternidade?
J-A Miller: Dizia Balzac: “Toda paixão que não se acredita eterna é repugnante” (3). Entretanto, pode o laço se manter por toda a vida no registro da paixão? Quanto mais um homem se consagra a uma só mulher, mais ela tende a ter para ele uma significação maternal: quanto mais sublime e intocada, mais amada. São os homossexuais casados que melhor desenvolvem esse culto à mulher: Aragão canta seu amor por Elsa; assim que ela morre, bom dia rapazes! E quando uma mulher se agarra a um só homem, ela o castra. Portanto, o caminho é estreito. O melhor caminho do amor conjugal é a amizade, dizia, de fato, Aristóteles.
P.: O problema é que os homens dizem não compreender o que querem as mulheres; e as mulheres, o que os homens esperam delas...
J-A Miller: Sim. O que faz objeção à solução aristotélica é que o diálogo de um sexo ao outro é impossível, suspirava Lacan. Os amantes estão, de fato, condenados a aprender indefinidamente a língua do outro, tateando, buscando as chaves, sempre revogáveis. O amor é um labirinto de mal entendidos onde a saída não existe.
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(1) Zygmunt Bauman, L’amour liquide, de la fragilité des liens entre les hommes (Hachette Littératures, « Pluriel », 2008)
(2) Les souffrances du jeune Werther de Goethe (LGF, « le livre de poche », 2008).
(3) Honoré de Balzac in La comédie humaine, vol. VI, « Études de mœurs : scènes de la vie parisienne » (Gallimard, 1978).
Tradução de Maria do Carmo Dias Batista.
Entrevista realizada por Hanna Waar
Psychologies: A psicanálise ensina alguma coisa sobre o amor?
Jacques-Alain Miller: Muito, pois é uma experiência cuja fonte é o amor. Trata-se desse amor automático, e freqüentemente inconsciente, que o analisando dirige ao analista e que se chama transferência. É um amor fictício, mas é do mesmo estofo que o amor verdadeiro. Ele atualiza sua mecânica: o amor se dirige àquele que a senhora pensa que conhece sua verdade verdadeira. Porém, o amor permite imaginar que essa verdade será amável, agradável, enquanto ela é, de fato, difícil de suportar.
P.: Então, o que é amar verdadeiramente?
J-A Miller: Amar verdadeiramente alguém é acreditar que, ao amá-lo, se alcançará a uma verdade sobre si. Ama-se aquele ou aquela que conserva a resposta, ou uma resposta, à nossa questão "Quem sou eu?".
P.: Por que alguns sabem amar e outros não?
J-A Miller: Alguns sabem provocar o amor no outro, os serial lovers - se posso dizer - homens e mulheres. Eles sabem quais botões apertar para se fazer amar. Porém, não necessariamente amam, mais brincam de gato e rato com suas presas. Para amar, é necessário confessar sua falta e reconhecer que se tem necessidade do outro, que ele lhe falta. Os que crêem ser completos sozinhos, ou querem ser, não sabem amar. E, às vezes, o constatam dolorosamente. Manipulam, mexem os pauzinhos, mas do amor não conhecem nem o risco, nem as delícias.
P.: "Ser completo sozinho”: só um homem pode acreditar nisso...
J-A Miller: Acertou! "Amar, dizia Lacan, é dar o que não se tem". O que quer dizer: amar é reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o que se possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que vai além de si mesmo. Para isso, é preciso se assegurar de sua falta, de sua "castração", como dizia Freud. E isso é essencialmente feminino. Só se ama verdadeiramente a partir de uma posição feminina. Amar feminiza. É por isso que o amor é sempre um pouco cômico em um homem. Porém, se ele se deixa intimidar pelo ridículo, é que, na realidade, não está seguro de sua virilidade.
P.: Amar seria mais difícil para os homens?
J-A Miller: Ah, sim! Mesmo um homem enamorado tem retornos de orgulho, assaltos de agressividade contra o objeto de seu amor, porque esse amor o coloca na posição de incompletude, de dependência. É por isso que pode desejar as mulheres que não ama, a fim de reencontrar a posição viril que coloca em suspensão quando ama. Esse princípio Freud denominou a "degradação da vida amorosa" no homem: a cisão do amor e do desejo sexual.
P.: E nas mulheres?
J-A Miller: É menos habitual. No caso mais freqüente há desdobramento do parceiro masculino. De um lado, está o amante que as faz gozar e que elas desejam, porém, há também o homem do amor, feminizado, funcionalmente castrado. Entretanto, não é a anatomia que comanda: existem as mulheres que adotam uma posição masculina. E cada vez mais. Um homem para o amor, em casa; e homens para o gozo, encontrados na Internet, na rua, no trem...
P.: Por que "cada vez mais"?
J-A Miller: Os estereótipos socioculturais da feminilidade e da virilidade estão em plena mutação. Os homens são convidados a acolher suas emoções, a amar, a se feminizar; as mulheres, elas, conhecem ao contrário um certo “empuxo-ao-homem”: em nome da igualdade jurídica são conduzidas a repetir “eu também”. Ao mesmo tempo, os homossexuais reivindicam os direitos e os símbolos dos héteros, como casamento e filiação. Donde uma grande instabilidade dos papéis, uma fluidez generalizada do teatro do amor, que contrasta com a fixidez de antigamente. O amor se torna “líquido”, constata o sociólogo Zygmunt Bauman (1). Cada um é levado a inventar seu próprio “estilo de vida” e a assumir seu modo de gozar e de amar. Os cenários tradicionais caem em lento desuso. A pressão social para neles se conformar não desapareceu, mas está em baixa.
P.: “O amor é sempre recíproco”, dizia Lacan. Isso ainda é verdade no contexto atual? O que significa?
J-A Miller: Repete-se esta frase sem compreendê-la ou compreendendo-a mal. Ela não quer dizer que é suficiente amar alguém para que ele vos ame. Isso seria absurdo. Quer dizer: “Se eu te amo é que tu és amável. Sou eu que amo, mas tu, tu também estás envolvido, porque há em ti alguma coisa que me faz te amar. É recíproco porque existe um vai-e-vem: o amor que tenho por ti é efeito do retorno da causa do amor que tu és para mim. Portanto, tu não estás aí à toa. Meu amor por ti não é só assunto meu, mas teu também. Meu amor diz alguma coisa de ti que talvez tu mesmo não conheças”. Isso não assegura, de forma alguma, que ao amor de um responderá o amor do outro: isso, quando isso se produz, é sempre da ordem do milagre, não é calculável por antecipação.
P.: Não se encontra seu ‘cada um’, sua ‘cada uma’ por acaso. Por que ele? Por que ela?
J-A Miller: Existe o que Freud chamou de Liebesbedingung, a condição do amor, a causa do desejo. É um traço particular – ou um conjunto de traços – que tem para cada um função determinante na escolha amorosa. Isto escapa totalmente às neurociências, porque é próprio de cada um, tem a ver com sua história singular e íntima. Traços às vezes ínfimos estão em jogo. Freud, por exemplo, assinalou como causa do desejo em um de seus pacientes um brilho de luz no nariz de uma mulher!
P.: É difícil acreditar em um amor fundado nesses elementos sem valor, nessas baboseiras!
J-A Miller: A realidade do inconsciente ultrapassa a ficção. A senhora não tem idéia de tudo o que está fundado, na vida humana, e especialmente no amor, em bagatelas, em cabeças de alfinete, os “divinos detalhes”. É verdade que, sobretudo no macho, se encontram tais causas do desejo, que são como fetiches cuja presença é indispensável para desencadear o processo amoroso. As particularidades miúdas, que relembram o pai, a mãe, o irmão, a irmã, tal personagem da infância, também têm seu papel na escolha amorosa das mulheres. Porém, a forma feminina do amor é, de preferência, mais erotômana que fetichista : elas querem ser amadas, e o interesse, o amor que alguém lhes manifesta, ou que elas supõem no outro, é sempre uma condição sine qua non para desencadear seu amor, ou, pelo menos, seu consentimento. O fenômeno é a base da corte masculina.
P.: O senhor atribui algum papel às fantasias?
J-A Miller: Nas mulheres, quer sejam conscientes ou inconscientes, são mais determinantes para a posição de gozo do que para a escolha amorosa. E é o inverso para os homens. Por exemplo, acontece de uma mulher só conseguir obter o gozo – o orgasmo, digamos – com a condição de se imaginar, durante o próprio ato, sendo batida, violada, ou de ser uma outra mulher, ou ainda de estar ausente, em outro lugar.
P.: E a fantasia masculina?
J-A Miller: Está bem evidente no amor à primeira vista. O exemplo clássico, comentado por Lacan, é, no romance de Goethe (2), a súbita paixão do jovem Werther por Charlotte, no momento em que a vê pela primeira vez, alimentando ao numeroso grupo de crianças que a rodeiam. Há aqui a qualidade maternal da mulher que desencadeia o amor. Outro exemplo, retirado de minha prática, é este: um patrão qüinquagenário recebe candidatas a um posto de secretária. Uma jovem mulher de 20 anos se apresenta; ele lhe declara de imediato seu fogo. Pergunta-se o que o tomou, entra em análise. Lá, descobre o desencadeante: ele havia nela reencontrado os traços que evocavam o que ele próprio era quando tinha 20 anos, quando se apresentou ao seu primeiro emprego. Ele estava, de alguma forma, caído de amores por ele mesmo. Reencontra-se nesses dois exemplos, as duas vertentes distinguidas por Freud: ama-se ou a pessoa que protege, aqui a mãe, ou a uma imagem narcísica de si mesmo.
P.: Tem-se a impressão de que somos marionetes!
J-A Miller: Não, entre tal homem e tal mulher, nada está escrito por antecipação, não há bússola, nem proporção pré-estabelecida. Seu encontro não é programado como o do espermatozóide e do óvulo; nada a ver também com os genes. Os homens e as mulheres falam, vivem num mundo de discurso, e isso é determinante. As modalidades do amor são ultra-sensíveis à cultura ambiente. Cada civilização se distingue pela maneira como estrutura a relação entre os sexos. Ora, acontece que no Ocidente, em nossas sociedades ao mesmo tempo liberais, mercadológicas e jurídicas, o “múltiplo” está passando a destronar o “um”. O modelo ideal do “grande amor de toda a vida” cede, pouco a pouco, terreno para o speed dating, o speed loving e toda floração de cenários amorosos alternativos, sucessivos, inclusive simultâneos.
P.: E o amor no tempo, em sua duração? Na eternidade?
J-A Miller: Dizia Balzac: “Toda paixão que não se acredita eterna é repugnante” (3). Entretanto, pode o laço se manter por toda a vida no registro da paixão? Quanto mais um homem se consagra a uma só mulher, mais ela tende a ter para ele uma significação maternal: quanto mais sublime e intocada, mais amada. São os homossexuais casados que melhor desenvolvem esse culto à mulher: Aragão canta seu amor por Elsa; assim que ela morre, bom dia rapazes! E quando uma mulher se agarra a um só homem, ela o castra. Portanto, o caminho é estreito. O melhor caminho do amor conjugal é a amizade, dizia, de fato, Aristóteles.
P.: O problema é que os homens dizem não compreender o que querem as mulheres; e as mulheres, o que os homens esperam delas...
J-A Miller: Sim. O que faz objeção à solução aristotélica é que o diálogo de um sexo ao outro é impossível, suspirava Lacan. Os amantes estão, de fato, condenados a aprender indefinidamente a língua do outro, tateando, buscando as chaves, sempre revogáveis. O amor é um labirinto de mal entendidos onde a saída não existe.
________________________________________________________________________________________
(1) Zygmunt Bauman, L’amour liquide, de la fragilité des liens entre les hommes (Hachette Littératures, « Pluriel », 2008)
(2) Les souffrances du jeune Werther de Goethe (LGF, « le livre de poche », 2008).
(3) Honoré de Balzac in La comédie humaine, vol. VI, « Études de mœurs : scènes de la vie parisienne » (Gallimard, 1978).
Tradução de Maria do Carmo Dias Batista.
quarta-feira, 4 de março de 2009
Considerações sobre a Anorexia
Thaïs Moraes Correia
Psicanalista, Aderente da Delegação Geral do Maranhão e Escola Brasileira de Psicanálise-EBP
A primeira questão que os médicos costumam se fazer diante da anorexia é a ausência de “sintomas”. Há uma perda de peso auto-induzida por restrição alimentar que acontece de forma insidiosa sem a presença de febre, dor ou qualquer fraqueza.
Esses casos servem bem para pensarmos a diferença ente sintoma médico (que faz alarde, anuncia que algo não vai bem) do sintoma para a Psicanálise — insidioso e cifrado por entre as palavras: serve como ponto de significação.
Na medicina não há até o momento uma teoria etiológica da anorexia nervosa. Na teoria psicanalítica, especialmente nos idos 40 e 50 tinha-se uma visão de que a anorexia enquanto histeria de conversão simbolizava o repúdio à sexualidade. Alguns psicanalistas falavam em fantasias de gravidez oral.
Com Lacan podemos compreender a anorexia de outra forma. Nesses casos há uma demanda muda, silenciosa que deve ser acolhida. A paciente mantém uma relação anormal com a comida, sabe que arrisca sua vida, mas mantém esse saber fora da dimensão discursiva. Isto porque na anorexia há uma recusa dos deslizamentos significantes como se o desejo estivesse fragmentado pela fala — daí a deslibidinização que geralmente surge na adolescência quando emerge o enigma da sexualidade.
No caso da anorexia, o que se passa no corpo, não passa pelo discurso. O fato da pessoa ser escravo do não-comer também a leva a outra escravidão: do não-dizer. Há então uma fixação auto-erótica, o refúgio do sujeito num gozo suplementar.
É necessário uma intervenção — para que o sujeito pare de gozar. Cuspir significantes faz o sujeito trocar um gozo mudo por palavras. E de que a anoréxica goza? Exatamente de não comer nada, do (re)encontro com o nada.
Tanto nas toxicomanias como no FPS e nos transtornos alimentares há um gozo suplementar equivalente à pulsão da morte como se a dimensão do desejo estivesse esvaziada.
Numa análise, na vertente do amor de transferência, o sujeito pode encontrar o desejo que vai lhe permitir recusar o gozo excessivo.
“A anoréxica insiste no seu gozo comendo nada. O sintoma anoréxico, mais do que todo sintoma, contém um gozo que denuncia um apetite de inércia e morte. Assim, a demanda da anoréxica é muda, pois o Outro materno a esmagou pela engorda, empanturrando-a. De boca cheia, não se fala”.
Há uma fixação oral pela via do sujeito anoréxico? Fixação é um sujeito agarrado a um modo de gozo, quando ele deveria ultrapassa-lo, substituir por um outro modo de gozo. Uma análise vai provocar mudança inclusive na complexidade das pulsões: de mais de gozar a objeto causa de desejo.
Na anorexia há um horror desse corpo magérrimo que é provocado no outro.
As mães das anoréxicas são totalizantes e o que a anoréxica faz é “esburacar” a mãe nas palavras de Sara Fux.
Qual é a possibilidade de análise ai no caso dos sujeitos anoréxicos?
Uma paciente me procurou — estava com 36 quilos e só se alimentava de caldo de peixe e farelos de pão. Mostrava-se sem interesse inclusive de retornar ao consultório. Não se queixava, nem demandava nada a mim que como terapeuta lhe dava conforto e conselhos. Eu lhe dava alimento, enquanto o que ela queria era “nada”.Caberia mais ai uma psicanálise, pois é “o vazio da boca de um analista que a anoréxica, mais que ninguém, sabe que melhor satisfaz do que qualquer alimento”, nos diz Eliane Schermann.
A anorexia denuncia a questão da feminidade nos dias atuais. Se por um lado, as mulheres têm direitos ampliados por todas as esferas do social, há um massacre que aponta para um ideal de eu encarnado por esqueléticas top models.
Esse então é um drama moderno?
Nem tanto assim.
Vejamos o que acontece na Bulimia. Esse termo foi usado pela primeira vez em 1482 — como “aspiração de devorar” — e que como a anorexia, tornou-se um sintoma da moda. Preferimos chamá-las de sintoma social. Mosel, assim define :
«Por sintoma social se designa um problema comum a uma série de indivíduos em um dado momento da história, identificável como tal, mas enigmático quanto às suas causas e que represente um perigo ou um custo importante para a sociedade».
A bulimia se torna nos ano 70 um sintoma da moda, considerando inicialmente, como epidêmico, de início associado à anorexia, depois distinguido desta.
Pensando nesses sintomas é necessário falarmos do gozo aí implicado.
Na psicanálise, entende-se gozo, aquilo que não serve para nada. “Trata-se do nada que o anoréxico come, que o obsessivo coleciona e o histérico demanda — nos diz Christian Dunker.
É o nada que inclusive orienta a ação do analista: “pois se o amor é dar o que não se tem é bem certo que o sujeito possa esperar que se lhe dê, posto que um psicanalista não tem outra coisa que dar-lhe. Mas inclusive esse nada, ele não o dá, e mais vale assim: e por esse nada se lhe pagam”.
— Podemos então dizer que a forma como o sujeito lida com o nada, é a forma como ele produz seu sintoma.
O falo aponta para a falta enquanto que o objeto-mais-de-gozar nos aponta para o nada. Apesar de ambos abordarem a negatividade estão em oposição.
— Como uma análise caminha no sentido de fortalecer o recalque, haverá um esvaziamento de gozo que condicionará uma dessubjetivação — falta-a-ser — oposta então a nadificação que anoréxica usa como emblema de sua vida.
Psicanalista, Aderente da Delegação Geral do Maranhão e Escola Brasileira de Psicanálise-EBP
A primeira questão que os médicos costumam se fazer diante da anorexia é a ausência de “sintomas”. Há uma perda de peso auto-induzida por restrição alimentar que acontece de forma insidiosa sem a presença de febre, dor ou qualquer fraqueza.
Esses casos servem bem para pensarmos a diferença ente sintoma médico (que faz alarde, anuncia que algo não vai bem) do sintoma para a Psicanálise — insidioso e cifrado por entre as palavras: serve como ponto de significação.
Na medicina não há até o momento uma teoria etiológica da anorexia nervosa. Na teoria psicanalítica, especialmente nos idos 40 e 50 tinha-se uma visão de que a anorexia enquanto histeria de conversão simbolizava o repúdio à sexualidade. Alguns psicanalistas falavam em fantasias de gravidez oral.
Com Lacan podemos compreender a anorexia de outra forma. Nesses casos há uma demanda muda, silenciosa que deve ser acolhida. A paciente mantém uma relação anormal com a comida, sabe que arrisca sua vida, mas mantém esse saber fora da dimensão discursiva. Isto porque na anorexia há uma recusa dos deslizamentos significantes como se o desejo estivesse fragmentado pela fala — daí a deslibidinização que geralmente surge na adolescência quando emerge o enigma da sexualidade.
No caso da anorexia, o que se passa no corpo, não passa pelo discurso. O fato da pessoa ser escravo do não-comer também a leva a outra escravidão: do não-dizer. Há então uma fixação auto-erótica, o refúgio do sujeito num gozo suplementar.
É necessário uma intervenção — para que o sujeito pare de gozar. Cuspir significantes faz o sujeito trocar um gozo mudo por palavras. E de que a anoréxica goza? Exatamente de não comer nada, do (re)encontro com o nada.
Tanto nas toxicomanias como no FPS e nos transtornos alimentares há um gozo suplementar equivalente à pulsão da morte como se a dimensão do desejo estivesse esvaziada.
Numa análise, na vertente do amor de transferência, o sujeito pode encontrar o desejo que vai lhe permitir recusar o gozo excessivo.
“A anoréxica insiste no seu gozo comendo nada. O sintoma anoréxico, mais do que todo sintoma, contém um gozo que denuncia um apetite de inércia e morte. Assim, a demanda da anoréxica é muda, pois o Outro materno a esmagou pela engorda, empanturrando-a. De boca cheia, não se fala”.
Há uma fixação oral pela via do sujeito anoréxico? Fixação é um sujeito agarrado a um modo de gozo, quando ele deveria ultrapassa-lo, substituir por um outro modo de gozo. Uma análise vai provocar mudança inclusive na complexidade das pulsões: de mais de gozar a objeto causa de desejo.
Na anorexia há um horror desse corpo magérrimo que é provocado no outro.
As mães das anoréxicas são totalizantes e o que a anoréxica faz é “esburacar” a mãe nas palavras de Sara Fux.
Qual é a possibilidade de análise ai no caso dos sujeitos anoréxicos?
Uma paciente me procurou — estava com 36 quilos e só se alimentava de caldo de peixe e farelos de pão. Mostrava-se sem interesse inclusive de retornar ao consultório. Não se queixava, nem demandava nada a mim que como terapeuta lhe dava conforto e conselhos. Eu lhe dava alimento, enquanto o que ela queria era “nada”.Caberia mais ai uma psicanálise, pois é “o vazio da boca de um analista que a anoréxica, mais que ninguém, sabe que melhor satisfaz do que qualquer alimento”, nos diz Eliane Schermann.
A anorexia denuncia a questão da feminidade nos dias atuais. Se por um lado, as mulheres têm direitos ampliados por todas as esferas do social, há um massacre que aponta para um ideal de eu encarnado por esqueléticas top models.
Esse então é um drama moderno?
Nem tanto assim.
Vejamos o que acontece na Bulimia. Esse termo foi usado pela primeira vez em 1482 — como “aspiração de devorar” — e que como a anorexia, tornou-se um sintoma da moda. Preferimos chamá-las de sintoma social. Mosel, assim define :
«Por sintoma social se designa um problema comum a uma série de indivíduos em um dado momento da história, identificável como tal, mas enigmático quanto às suas causas e que represente um perigo ou um custo importante para a sociedade».
A bulimia se torna nos ano 70 um sintoma da moda, considerando inicialmente, como epidêmico, de início associado à anorexia, depois distinguido desta.
Pensando nesses sintomas é necessário falarmos do gozo aí implicado.
Na psicanálise, entende-se gozo, aquilo que não serve para nada. “Trata-se do nada que o anoréxico come, que o obsessivo coleciona e o histérico demanda — nos diz Christian Dunker.
É o nada que inclusive orienta a ação do analista: “pois se o amor é dar o que não se tem é bem certo que o sujeito possa esperar que se lhe dê, posto que um psicanalista não tem outra coisa que dar-lhe. Mas inclusive esse nada, ele não o dá, e mais vale assim: e por esse nada se lhe pagam”.
— Podemos então dizer que a forma como o sujeito lida com o nada, é a forma como ele produz seu sintoma.
O falo aponta para a falta enquanto que o objeto-mais-de-gozar nos aponta para o nada. Apesar de ambos abordarem a negatividade estão em oposição.
— Como uma análise caminha no sentido de fortalecer o recalque, haverá um esvaziamento de gozo que condicionará uma dessubjetivação — falta-a-ser — oposta então a nadificação que anoréxica usa como emblema de sua vida.
domingo, 1 de março de 2009
O QUE É UM CARTEL?
O cartel é uma invenção de Lacan que visa manter na Escola um trabalho permanente de investigação em relação à psicanálise. Esse dispositivo adota como princípio a elaboração apoiada em um pequeno grupo, cria, porém, por sua estrutura e funcionamento, mecanismos que possam conter os efeitos grupais.
- Leia o texto completo no site EBP
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Cartel On-line: Uma experiência virtual
Texto escrito por:
Sandra Conrado (+1) – PB
Carlange de Castro – PI
Marlos Ribeiro – PI
Yara Valione - SP
Nosso Cartel foi formado para discutir o seminário “Relação de Objeto” de Jacques Lacan e teve seu inicio em meados de julho deste ano.
Fazem parte desse Cartel: Carlange de Castro e Marlos Ribeiro de Teresina-PI, Yara Valione de São Paulo-SP e Sandra Conrado (+1) de João Pessoa-PB. No primeiro encontro tivemos conosco Rodolfo Melo de João Pessoa-PB, que deixou o cartel logo em seguida.
O que temos a dizer hoje nessa III Jornada de Cartéis da delegação Paraíba não está ainda dirigido a uma produção teórica de nosso estudo, visto o pouco tempo de discussões do tema, mas dizer da importância de dividir com vocês, uma experiência muito incomum: a de não estamos diante do corpo do colega para discutir os textos, mas diante de uma tela de computador. Os colegas estão cada um em suas casas, frente a seus computadores, com seus livros e anotações de lado.
Esta situação, de inicio pareceu incomodar. Falamos sem muita reflexão dessa estranheza, riamos, parecia a nós muito esquisito essa forma de trabalhar. Onde estaria a expressão facial, o olhar, os movimentos e os trejeitos dos corpos dos colegas?. Como imaginar as feições de Marlos, Carlange, Yara e Sandra? Como trabalhar sem a presentificação do corpo? O que iria nos garantir como imagem? Essas reflexões ficaram a principio nas entrelinhas. Ao que parecia, surgia o receio de tocar no assunto e de repente a coisa desandar, já que estávamos diante não da estranheza do que se vê pelo semblante do outro, mas do que não se olha, daquilo que nos é tão essencial no campo do imaginário. A expressão que mais manifestava-se no inicio dessa proeza, era:: “não estamos no corpo-a-corpo”, numa conotação que traduzia, seria possível fazer essa ausência funcionar? Garantimos a vocês que realmente foi necessário inventar uma forma de acontecer.
Agora, depois de quatro meses, paramos para falar disso e aqui estamos para relatar a nossa experiência particular de se estar num Cartel que funciona de forma virtual, tomando aqui, virtual em seu significado, ou seja, como o que está pré-determinado e contém todas as condições essenciais à sua realização, segundo o dicionário do Aurélio.
O cartel, assim como toda prática da psicanálise, é algo que foge ao que se chama de comum, seu funcionamento não tem nada de ordinário à prática de um grupo e o seu laço não é constituído em torno de um líder, mas de um tema que interessa aos que se juntam. Pensar e experimentar um cartel on-line são muito mais complexos que tudo isso. Embora a vida internauta seja uma prática do cotidiano globalizado, tivemos no inicio desse cartel uma dificuldade a mais. O que teríamos que fazer frente a um exercício que pede o corpo, ali onde ele não aparece? O universo da psicanálise circula através da fala e, se aproveitando da tecnologia moderna que isola e distancia o encontro do corpo do outros, estamos paradoxalmente no caminho de vencer o desafio de reunir pessoas de diferentes estados, em tempo real, em prol da causa analítica e, mais particularmente, da causa em que, cada um, nela se insere.
Penso ter sido por esse motivo, o fato de termos dado nosso primeiro passo, sem deixar de levar em conta a nossa estranheza.
Houve uma proposta de skape, mas ela foi logo abortada e só agora podemos entender o por quê. Com o skape havia a possibilidade da fala, mas a imagem continuaria ausente. O que adiantaria para nós uma fala sem corpo?
À medida que fomos nos encontrando no msn, foi-se estabelecendo um trabalho de transferência ao tema na tentativa de sair da dificuldade de querer dizer sem a expressão facial e o tom da voz. Dizer sem o tom exigia e exige ainda de nós algo a mais. Estamos assim, cada um no seu ritmo, mas sempre articulando as nossas questões ao que se extrai do texto. Nossa mudez, ganha um lugar especial e nos demos conta de que a escrita poderia fazer em nós o laço, o nó que amarra o furo da ausência do corpo.
Fizemos dessa escrita o nosso corpo, tudo que se diz nesse cartel tem que passar pelo punho, e se podermos enfatizar aqui para vocês, haja punho!!!
Pois bem, na ausência do corpo, inventamos outro corpo: a escrita.
O corpo parecia ir tomando outra forma, fazendo assim, dessa ausência, um lugar de transferência ao trabalho que não esbarra só no tema, mas ao esforço de dizer com a escrita. Parecia que ler os textos, escrever suas observações na tela, se interrogar, ia ganhando algo que se cede para além do corpo, algo que se cede para o Outro. Aquela transferência, tão conhecida nossa, que faz passagem para outra cena, onde se constitui um suposto saber, parecia na tela ilustrar, na escrita, o desejo de saber.
Ora, sabemos a partir de Lacan, no seminário 20, que o corpo é o lugar do Outro e no seminário 23 que a escrita assume um caráter estrutural, naquilo que marca o surgimento do sujeito que, pela diferença, pode, na sua singularidade, se contar, inventando o significante do que está ali para ser lido.
Penso que a partir disso podemos saber que o corpo poderia ir além do imaginário, ou seja, a partir disso podemos perder nossas imagens e buscar a cada letra escrita o encontro com o real de se está num cartel virtual, num cartel on-line, num tempo real onde também acontece o inesperado: “Marlos saiu da conversa” –”Marlos esta na conversa” e de repente, escreve: “gente perdi o que a gente tava dizendo, dá para voltar ai?”, “faltou energia”, “ O PC travou”, etc, etc, etc.
Quando Lacan aborda o nó borromeano no seminário 23, nos fala que nesse nó há um lapso, uma falha, mostrando que diante disso é possível a construção de um quarto elemento que funcionaria como ponto de amarração. A esse ponto de amarração Lacan nomeia de Sinthome. Se a Joyce foi possível uma escrita como ponto de amarração frente à falha do Nome-do-Pai, a nós a escrita nos serve como amarração da presença do Outro que tira de cada um a propriedade do corpo, mas introduz o laço que faz em nós a amarração no desejo de saber. Essa tem sido a nossa invenção, a nossa metáfora, o nosso “esforço de poesia”.
Lacan, ao tomar Joyce teve a cautela de fazer ver que não se tratava da aplicação da psicanálise à arte, função que Lacan sempre se desobrigou, mas o contrário, da aplicação da arte à psicanálise, uma vez que o artista sempre precede o psicanalista e lhe abre os caminhos.(1)
A cada encontro nossa colega de São Paulo, a mais distante de todas, nos envia um relatório. Essa iniciativa foi por sua própria conta! Quando menos esperamos, um belo dia estava lá, nas nossas caixas de e-mails, já desde a nossa primeira discussão teórica, surpreendentemente, um relato do que tinha acontecido no nosso primeiro encontro. Esse relatório, até hoje mantido, é elaborado em forma de conversa, como uma ata, como um ato que presentifica ali um corpo, um trabalho, um efeito, um desejo de fazer algo acontecer. Aquele que foi nomeado de + 1, naquele momento, não pode deixar de perceber a todos o quanto isso anima um cartel e discutimos, na perspectiva lacaniana, quanto o + 1 pode girar, ou seja, que esta função não está colada numa das pessoas que se junta a outras, mas na função que qualquer um ocupa dentro do cartel, quando zela pelo trabalho, não importando em que condições materiais e ideais este cartel esteja funcionando.
Uma das maiores provas desse funcionamento é o desfio de levar a cada letra escrita o desejo de diminuir a distância geográfica a aproximar o trabalho que temos pela frente, sem perder de vista “o vivo do sujeito”, nem se limitar, simplesmente, aos dogmas da tecnologia.
Segundo Cláudio Cardoso Paiva, professor do departamento de comunicação da UFPB, se referindo ao virtual, nos diz: “Estas contribuições têm instigado trabalhos férteis que procuram se orientar metodologicamente nos domínios de uma ”antropologia” da informação e da comunicacão´. Contudo, é o entusiasmo das gerações mais recentes, que utilizam os computadores e a Internet de modo criativo, realizando pesquisas conseqüentes, que nos estimulam a considerarmos pertinente a recepção destas novas tecnologias”.
É no entusiasmo de nossa geração e no espírito do tempo, no qual o psicanalista não arreda seu desejo de sustentar a psicanálise no mundo, que estamos frente ao novo e à disponibilidade de inventar e manejjar o que não cessa de não se inscrever.
Sandra Conrado (+1) – PB
Carlange de Castro – PI
Marlos Ribeiro – PI
Yara Valione - SP
Nosso Cartel foi formado para discutir o seminário “Relação de Objeto” de Jacques Lacan e teve seu inicio em meados de julho deste ano.
Fazem parte desse Cartel: Carlange de Castro e Marlos Ribeiro de Teresina-PI, Yara Valione de São Paulo-SP e Sandra Conrado (+1) de João Pessoa-PB. No primeiro encontro tivemos conosco Rodolfo Melo de João Pessoa-PB, que deixou o cartel logo em seguida.
O que temos a dizer hoje nessa III Jornada de Cartéis da delegação Paraíba não está ainda dirigido a uma produção teórica de nosso estudo, visto o pouco tempo de discussões do tema, mas dizer da importância de dividir com vocês, uma experiência muito incomum: a de não estamos diante do corpo do colega para discutir os textos, mas diante de uma tela de computador. Os colegas estão cada um em suas casas, frente a seus computadores, com seus livros e anotações de lado.
Esta situação, de inicio pareceu incomodar. Falamos sem muita reflexão dessa estranheza, riamos, parecia a nós muito esquisito essa forma de trabalhar. Onde estaria a expressão facial, o olhar, os movimentos e os trejeitos dos corpos dos colegas?. Como imaginar as feições de Marlos, Carlange, Yara e Sandra? Como trabalhar sem a presentificação do corpo? O que iria nos garantir como imagem? Essas reflexões ficaram a principio nas entrelinhas. Ao que parecia, surgia o receio de tocar no assunto e de repente a coisa desandar, já que estávamos diante não da estranheza do que se vê pelo semblante do outro, mas do que não se olha, daquilo que nos é tão essencial no campo do imaginário. A expressão que mais manifestava-se no inicio dessa proeza, era:: “não estamos no corpo-a-corpo”, numa conotação que traduzia, seria possível fazer essa ausência funcionar? Garantimos a vocês que realmente foi necessário inventar uma forma de acontecer.
Agora, depois de quatro meses, paramos para falar disso e aqui estamos para relatar a nossa experiência particular de se estar num Cartel que funciona de forma virtual, tomando aqui, virtual em seu significado, ou seja, como o que está pré-determinado e contém todas as condições essenciais à sua realização, segundo o dicionário do Aurélio.
O cartel, assim como toda prática da psicanálise, é algo que foge ao que se chama de comum, seu funcionamento não tem nada de ordinário à prática de um grupo e o seu laço não é constituído em torno de um líder, mas de um tema que interessa aos que se juntam. Pensar e experimentar um cartel on-line são muito mais complexos que tudo isso. Embora a vida internauta seja uma prática do cotidiano globalizado, tivemos no inicio desse cartel uma dificuldade a mais. O que teríamos que fazer frente a um exercício que pede o corpo, ali onde ele não aparece? O universo da psicanálise circula através da fala e, se aproveitando da tecnologia moderna que isola e distancia o encontro do corpo do outros, estamos paradoxalmente no caminho de vencer o desafio de reunir pessoas de diferentes estados, em tempo real, em prol da causa analítica e, mais particularmente, da causa em que, cada um, nela se insere.
Penso ter sido por esse motivo, o fato de termos dado nosso primeiro passo, sem deixar de levar em conta a nossa estranheza.
Houve uma proposta de skape, mas ela foi logo abortada e só agora podemos entender o por quê. Com o skape havia a possibilidade da fala, mas a imagem continuaria ausente. O que adiantaria para nós uma fala sem corpo?
À medida que fomos nos encontrando no msn, foi-se estabelecendo um trabalho de transferência ao tema na tentativa de sair da dificuldade de querer dizer sem a expressão facial e o tom da voz. Dizer sem o tom exigia e exige ainda de nós algo a mais. Estamos assim, cada um no seu ritmo, mas sempre articulando as nossas questões ao que se extrai do texto. Nossa mudez, ganha um lugar especial e nos demos conta de que a escrita poderia fazer em nós o laço, o nó que amarra o furo da ausência do corpo.
Fizemos dessa escrita o nosso corpo, tudo que se diz nesse cartel tem que passar pelo punho, e se podermos enfatizar aqui para vocês, haja punho!!!
Pois bem, na ausência do corpo, inventamos outro corpo: a escrita.
O corpo parecia ir tomando outra forma, fazendo assim, dessa ausência, um lugar de transferência ao trabalho que não esbarra só no tema, mas ao esforço de dizer com a escrita. Parecia que ler os textos, escrever suas observações na tela, se interrogar, ia ganhando algo que se cede para além do corpo, algo que se cede para o Outro. Aquela transferência, tão conhecida nossa, que faz passagem para outra cena, onde se constitui um suposto saber, parecia na tela ilustrar, na escrita, o desejo de saber.
Ora, sabemos a partir de Lacan, no seminário 20, que o corpo é o lugar do Outro e no seminário 23 que a escrita assume um caráter estrutural, naquilo que marca o surgimento do sujeito que, pela diferença, pode, na sua singularidade, se contar, inventando o significante do que está ali para ser lido.
Penso que a partir disso podemos saber que o corpo poderia ir além do imaginário, ou seja, a partir disso podemos perder nossas imagens e buscar a cada letra escrita o encontro com o real de se está num cartel virtual, num cartel on-line, num tempo real onde também acontece o inesperado: “Marlos saiu da conversa” –”Marlos esta na conversa” e de repente, escreve: “gente perdi o que a gente tava dizendo, dá para voltar ai?”, “faltou energia”, “ O PC travou”, etc, etc, etc.
Quando Lacan aborda o nó borromeano no seminário 23, nos fala que nesse nó há um lapso, uma falha, mostrando que diante disso é possível a construção de um quarto elemento que funcionaria como ponto de amarração. A esse ponto de amarração Lacan nomeia de Sinthome. Se a Joyce foi possível uma escrita como ponto de amarração frente à falha do Nome-do-Pai, a nós a escrita nos serve como amarração da presença do Outro que tira de cada um a propriedade do corpo, mas introduz o laço que faz em nós a amarração no desejo de saber. Essa tem sido a nossa invenção, a nossa metáfora, o nosso “esforço de poesia”.
Lacan, ao tomar Joyce teve a cautela de fazer ver que não se tratava da aplicação da psicanálise à arte, função que Lacan sempre se desobrigou, mas o contrário, da aplicação da arte à psicanálise, uma vez que o artista sempre precede o psicanalista e lhe abre os caminhos.(1)
A cada encontro nossa colega de São Paulo, a mais distante de todas, nos envia um relatório. Essa iniciativa foi por sua própria conta! Quando menos esperamos, um belo dia estava lá, nas nossas caixas de e-mails, já desde a nossa primeira discussão teórica, surpreendentemente, um relato do que tinha acontecido no nosso primeiro encontro. Esse relatório, até hoje mantido, é elaborado em forma de conversa, como uma ata, como um ato que presentifica ali um corpo, um trabalho, um efeito, um desejo de fazer algo acontecer. Aquele que foi nomeado de + 1, naquele momento, não pode deixar de perceber a todos o quanto isso anima um cartel e discutimos, na perspectiva lacaniana, quanto o + 1 pode girar, ou seja, que esta função não está colada numa das pessoas que se junta a outras, mas na função que qualquer um ocupa dentro do cartel, quando zela pelo trabalho, não importando em que condições materiais e ideais este cartel esteja funcionando.
Uma das maiores provas desse funcionamento é o desfio de levar a cada letra escrita o desejo de diminuir a distância geográfica a aproximar o trabalho que temos pela frente, sem perder de vista “o vivo do sujeito”, nem se limitar, simplesmente, aos dogmas da tecnologia.
Segundo Cláudio Cardoso Paiva, professor do departamento de comunicação da UFPB, se referindo ao virtual, nos diz: “Estas contribuições têm instigado trabalhos férteis que procuram se orientar metodologicamente nos domínios de uma ”antropologia” da informação e da comunicacão´. Contudo, é o entusiasmo das gerações mais recentes, que utilizam os computadores e a Internet de modo criativo, realizando pesquisas conseqüentes, que nos estimulam a considerarmos pertinente a recepção destas novas tecnologias”.
É no entusiasmo de nossa geração e no espírito do tempo, no qual o psicanalista não arreda seu desejo de sustentar a psicanálise no mundo, que estamos frente ao novo e à disponibilidade de inventar e manejjar o que não cessa de não se inscrever.
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