Enguia
O autor examina as íntimas, esquivas e
elétricas relações entre a psicanálise e a política: se “a psicanálise é
exatamente o reverso da política”, acontece que “o inconsciente é a política”.
Além do mais, “indubitavelmente, a psicanálise não é revolucionaria”, mas “é
subversiva” e “produz danos sensacionais na tradição”.
Por Jacques-Alain Miller *
O inconsciente não conhece o tempo, mas a
psicanálise, sim. A psicanálise dá o que Stendhal chamava “a audácia de não ser
como todo mundo”. Agora, hoje em dia, todo mundo aspira não ser como todo
mundo. Este era, indubitavelmente, o caso de Lacan e seu modo de não ser como
todo mundo foi, por outro lado, frequentemente criticado. Com relação à
política, ele ensinava, sobretudo, a desconfiança a respeito dos ideais, dos
sistemas, das utopias que semeiam o campo político. Não acreditava nas leis da
história. Nenhuma palavra permite crer que mantinha a ideia de uma cidade
radiante, esteja esta situada no passado ou projetada para o futuro. Nem
nostalgia, nem tampouco esperança, mas uma grande sobriedade a respeito da
política, acompanhada de numerosos comentários que iam desde a ironia até o
cinismo, marcados por sarcasmos e provocações, que sublinhavam que a política
é, ao mesmo tempo, cômica e assassina. Das Memórias do cardeal de Retz,
havia retido o seguinte: “Sempre são os povos que pagam o preço do
acontecimento político”. Descrevia também o conquistador, chegando sempre com a
mesma ordem na boca: “Ao trabalho!” Para Lacan, a alienação ao trabalho era um
fato de estrutura, mas que não introduzia uma revolta coletiva propriamente dita,
a luta de classes, encorajando os explorados a combaterem para converterem-se
nos exploradores de amanhã. Resumindo, diríamos que no campo político, Lacan
era contra tudo o que está a favor.
Ademais, a política procede por identificações.
Manipulando palavras-chave e imagens, busca capturar o sujeito enquanto que o
próprio da psicanálise consiste em operar ao inverso, contra as identificações
do sujeito. Uma a uma, a cura as desfaz, as faz cair como as capas de uma
cebola. Confrontar o sujeito com seu próprio vazio, permitindo-lhe, assim,
limpar o sistema que, apesar disso, ordenava suas lições e seu destino. Neste
sentido, a psicanálise é exatamente o avesso da política.
Mas, o inconsciente é outra coisa. Lacan dizia
habitualmente que “o inconsciente é a política”. Não é uma substância escondida
no indivíduo, em seu mundo fechado, que se trataria de forçar. O inconsciente é
uma relação e se produz em uma relação. É por isso que temos acesso a ele em
uma relação com esse outro que é um analista. Na vida psíquica do sujeito, um
outro já está sempre implicado como modelo, objeto, sustentáculo ou obstáculo.
A psicologia individual é, de entrada, psicologia social Se o homem é um animal
político, é por ser, ao mesmo tempo, falante e falado pelos outros. Sujeito do
inconsciente, recebe sempre de um outro, do discurso que circula no universo,
as palavras que o dominam, que o representam e que o desnaturalizam também.
A psicanálise ensina algo sobre o poder, a
influência que se pode exercer. Não é necessário muita coisa para se impor:
essencialmente algumas palavras bem escolhidas. Convertida em uma indústria
capital para o consumo, a publicidade tirou amplamente, proveito disto. Nas
democracias como as nossas, a política já não pode se dirigir àqueles que ainda
chamamos cidadãos, sem passar pela publicidade. O marketing político
transformou-se em uma arte, até mesmo em uma indústria que produz um monte de
siglas, slogans, emblemas, pequenas frases. E
isto, em função dos dados coletados por pesquisas de opinião, sondagens agudas
e grupos de discussão. Escutar o que ali se
diz, serve, em primeiro lugar, para cernir os termos susceptíveis de serem
impostos à opinião. É assombroso que, longe de se ocultar estas manipulações,
exibem-nas. Informado da existência das mesmas, o público quer conhecê-las,
visitar as bambolinas. Não apenas se põe em cena a decoração, mas também
se converte em espetáculo, o avesso da decoração. Ao menos um dos avessos da
decoração.
Os que praticam a política são os primeiros a
saberem que esta não é uma questão de grandes ideais, mas de pequenas frases.
Eles se organizam com isso e os cidadãos parecem querer que assim seja. Que a
política não seja mais idealizada não é uma desgraça da democracia. Sem dúvida,
este é o seu destino, sua lógica e, se assim posso dizer, seu desejo. A
decadência generalizada do absoluto no campo político é notória: algo bom em
oposição ao fanatismo, mas que não abre a via à discussão racional entre
cidadãos desapaixonados. Estamos no reino da opinião. O debate público se
desenvolve sobre um fundo de descrença, de engano, de manipulação declarada e
consentida.
Esta é a regra do jogo, deplorá-lo também faz
parte dele. Ninguém mais denuncia isto como abjeto, exceto alguns maledicentes
ou imprecadores que, por outro lado, reduzimos à impotência. Se por acaso algum
deles têm talento, felicitamo-nos do condimento que aporta o debate público.
Faz parte do mesmo movimento da civilização que revela, sem descanso, o caráter
artificial, construído, de todas as coisas neste mundo: o laço social, as
crenças, as significações. A psicanálise participa disto, já que nenhum outro
discurso tem sido mais potente em sacudir os semblantes da civilização.
Aquele que pratica a psicanálise deve,
logicamente, querer as condições materiais de sua prática. A primeira é a
existência de uma sociedade civil stricto sensu, distinta do Estado. A
psicanálise não existe ali onde não é permitido praticar a ironia. Não existe
ali onde não é permitido questionar os ideais sem sofrer por isso. Em consequência
disso, a psicanálise é claramente incompatível com toda ordem totalitária. Ao
contrário, a psicanálise faz causa comum com a liberdade de expressão e com o
pluralismo. Enquanto que a divisão do trabalho, a democracia e o individualismo
não tiverem produzido seus estragos, não haverá lugar para a psicanálise.
O liberalismo não é, no entanto, a condição
política da psicanálise. Nos Estados Unidos, por exemplo, se a psicanálise
lacaniana interessa aos intelectuais, sua prática real só subsiste. Segundo a
opinião de Freud, a psicanálise se desnaturalizou ao atravessar o Atlântico; os
imigrantes que o difundiram deixaram a Europa para trás como uma má recordação
e só lhes restou conformarem-se com os valores do american way of life. Esta
expressão caiu em desuso, já que este estilo de vida está se tornando, cada dia
mais, o nosso. Se o divórcio das sensibilidades e dos costumes entre Estados
Unidos e França, incluindo toda a Europa, pôde, certamente, cristalizar-se a
nível político, não impediu, de modo algum, a americanização em marcha.
Assim, como tal, a psicanálise é revolucionária
ou reacionária? Trata-se de um Jano, uma isca, que se utiliza explicitamente
nos debates da sociedade nas quais se faz a psicanálise dizer uma coisa e o seu
contrário. Mas, sua doutrina só requer que um analista esteja ali, antes de
tudo, para psicanalizar e, subsidiariamente, para fazer avançar a psicanálise e
difundi-la no mundo. Melhor ainda se para isto, intervém no debate
público.
Indubitavelmente, a psicanálise não é
revolucionária. Sem dúvida, dedica-se mais a por em valores invariantes do que
a depositar suas esperanças em mudanças de ordem política. Pretende operar a um
nível mais fundamental do sujeito, onde os pontos do espaço-tempo estão em uma
relação topológica e já não mais, métrica. O mais distante se revela, de
repente, o mais próximo. Um psicanalista é, de bom grado, partidário do “Nada
novo. Quanto mais isso muda, mais é a mesma coisa”, professa o psicanalista.
Salvo que talvez possa piorar, se alguma vez acreditou-se que podia ser melhor.
A psicanálise não é revolucionária, mas é
subversiva, o que não é o mesmo, quer dizer, vai contra as identificações, os
ideais, as palavras-chave. É bem conhecido que nos preocupamos quando alguém
próximo começa uma análise: tememos que deixe de honrar a seu pai, a sua mãe,
seu parceiro e a seu Deus. Alguns, por outro lado, aspiraram, sem êxito, a uma
psicanálise adaptativa, muito mais que subversiva.
Não nos enganemos, “quanto mais isso muda e mais
é a mesma coisa”, mas muda de todo jeito! Que continue sendo a mesma coisa
significa que o que se ganha por um lado, se perde pelo outro, e isto não se
reabsorve. Se é subversiva, nem por isso a psicanálise é progressista nem
reacionária. Seria, então, sem esperança? Digamos que uma psicanálise opera
mais a partir da esperança. Procede ao modo de ablação da esperança e um certo
alívio resulta disso.
Não apenas os psicanalistas não são militantes da
psicanálise – exceto às vezes, e não necessariamente, para sua felicidade – mas
estão mais propensos a aborrecerem-se com os militantes. O que resulta disso é
que os psicanalistas se mostram frequentemente muito sobrecarregados por sua
operação que sacudiu todos os semblantes, em particular, todas as normas que
moderavam a relação sexual, inserindo-a na família e na procriação. Os
psicanalistas queriam que os semblantes de antes resistissem até o fim dos
tempos. Longe disso! A psicanálise produziu danos sensacionais na tradição. A
estes desastres, somaram-se as possibilidades inéditas que oferecem os avanços
da biologia, da procriação assistida, a clonagem, a decifração do genoma
humano, a perspectiva de que o homem mesmo se converta em um organismo
geneticamente modificado. É claro que o Nome-do-Pai já não é mais o que era.
* Ex-presidente da Associação Mundial de Psicanálise. O texto é transcrição da conferência “Anguille en politique”, proferida na rádio France-Culture em 2005; traduzida para o espanhol por Daniela Fernández, especialmente para Página/12, quando da visita do autor, que participa do VIII Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, “A ordem simbólica no século XXI não é mais o que era”, que acontece nestes dias em Buenos Aires.
Tradução: Maria Cristina Maia Fernandes
Nenhum comentário:
Postar um comentário