sábado, 28 de abril de 2012

Jacques-Alain Miller em Página 12


Enguia
O autor examina as íntimas, esquivas e elétricas relações entre a psicanálise e a política: se “a psicanálise é exatamente o reverso da política”, acontece que “o inconsciente é a política”. Além do mais, “indubitavelmente, a psicanálise não é revolucionaria”, mas “é subversiva” e “produz danos sensacionais na tradição”.

 Por Jacques-Alain Miller *
O inconsciente não conhece o tempo, mas a psicanálise, sim. A psicanálise dá o que Stendhal chamava “a audácia de não ser como todo mundo”. Agora, hoje em dia, todo mundo aspira não ser como todo mundo. Este era, indubitavelmente, o caso de Lacan e seu modo de não ser como todo mundo foi, por outro lado, frequentemente criticado. Com relação à política, ele ensinava, sobretudo, a desconfiança a respeito dos ideais, dos sistemas, das utopias que semeiam o campo político. Não acreditava nas leis da história. Nenhuma palavra permite crer que mantinha a ideia de uma cidade radiante, esteja esta situada no passado ou projetada para o futuro. Nem nostalgia, nem tampouco esperança, mas uma grande sobriedade a respeito da política, acompanhada de numerosos comentários que iam desde a ironia até o cinismo, marcados por sarcasmos e provocações, que sublinhavam que a política é, ao mesmo tempo, cômica e assassina. Das Memórias do cardeal de Retz, havia retido o seguinte: “Sempre são os povos que pagam o preço do acontecimento político”. Descrevia também o conquistador, chegando sempre com a mesma ordem na boca: “Ao trabalho!” Para Lacan, a alienação ao trabalho era um fato de estrutura, mas que não introduzia uma revolta coletiva propriamente dita, a luta de classes, encorajando os explorados a combaterem para converterem-se nos exploradores de amanhã. Resumindo, diríamos que no campo político, Lacan era contra tudo o que está a favor. 

Ademais, a política procede por identificações. Manipulando palavras-chave e imagens, busca capturar o sujeito enquanto que o próprio da psicanálise consiste em operar ao inverso, contra as identificações do sujeito. Uma a uma, a cura as desfaz, as faz cair como as capas de uma cebola. Confrontar o sujeito com seu próprio vazio, permitindo-lhe, assim, limpar o sistema que, apesar disso, ordenava suas lições e seu destino. Neste sentido, a psicanálise é exatamente o avesso da política.   
Mas, o inconsciente é outra coisa. Lacan dizia habitualmente que “o inconsciente é a política”. Não é uma substância escondida no indivíduo, em seu mundo fechado, que se trataria de forçar. O inconsciente é uma relação e se produz em uma relação. É por isso que temos acesso a ele em uma relação com esse outro que é um analista. Na vida psíquica do sujeito, um outro já está sempre implicado como modelo, objeto, sustentáculo ou obstáculo. A psicologia individual é, de entrada, psicologia social Se o homem é um animal político, é por ser, ao mesmo tempo, falante e falado pelos outros. Sujeito do inconsciente, recebe sempre de um outro, do discurso que circula no universo, as palavras que o dominam, que o representam e que o desnaturalizam também.

A psicanálise ensina algo sobre o poder, a influência que se pode exercer. Não é necessário muita coisa para se impor: essencialmente algumas palavras bem escolhidas. Convertida em uma indústria capital para o consumo, a publicidade tirou amplamente, proveito disto. Nas democracias como as nossas, a política já não pode se dirigir àqueles que ainda chamamos cidadãos, sem passar pela publicidade. O marketing político transformou-se em uma arte, até mesmo em uma indústria que produz um monte de siglas, slogans, emblemas, pequenas frases. E isto, em função dos dados coletados por pesquisas de opinião, sondagens agudas e grupos de discussão. Escutar o que ali se diz, serve, em primeiro lugar, para cernir os termos susceptíveis de serem impostos à opinião. É assombroso que, longe de se ocultar estas manipulações, exibem-nas. Informado da existência das mesmas, o público quer conhecê-las, visitar as bambolinas. Não apenas se põe em cena a decoração, mas também se converte em espetáculo, o avesso da decoração. Ao menos um dos avessos da decoração.  
Os que praticam a política são os primeiros a saberem que esta não é uma questão de grandes ideais, mas de pequenas frases. Eles se organizam com isso e os cidadãos parecem querer que assim seja. Que a política não seja mais idealizada não é uma desgraça da democracia. Sem dúvida, este é o seu destino, sua lógica e, se assim posso dizer, seu desejo. A decadência generalizada do absoluto no campo político é notória: algo bom em oposição ao fanatismo, mas que não abre a via à discussão racional entre cidadãos desapaixonados. Estamos no reino da opinião. O debate público se desenvolve sobre um fundo de descrença, de engano, de manipulação declarada e consentida. 

Esta é a regra do jogo, deplorá-lo também faz parte dele. Ninguém mais denuncia isto como abjeto, exceto alguns maledicentes ou imprecadores que, por outro lado, reduzimos à impotência. Se por acaso algum deles têm talento, felicitamo-nos do condimento que aporta o debate público. Faz parte do mesmo movimento da civilização que revela, sem descanso, o caráter artificial, construído, de todas as coisas neste mundo: o laço social, as crenças, as significações. A psicanálise participa disto, já que nenhum outro discurso tem sido mais potente em sacudir os semblantes da civilização. 
Aquele que pratica a psicanálise deve, logicamente, querer as condições materiais de sua prática. A primeira é a existência de uma sociedade civil stricto sensu, distinta do Estado. A psicanálise não existe ali onde não é permitido praticar a ironia. Não existe ali onde não é permitido questionar os ideais sem sofrer por isso. Em consequência disso, a psicanálise é claramente incompatível com toda ordem totalitária. Ao contrário, a psicanálise faz causa comum com a liberdade de expressão e com o pluralismo. Enquanto que a divisão do trabalho, a democracia e o individualismo não tiverem produzido seus estragos, não haverá lugar para a psicanálise.   
O liberalismo não é, no entanto, a condição política da psicanálise. Nos Estados Unidos, por exemplo, se a psicanálise lacaniana interessa aos intelectuais, sua prática real só subsiste. Segundo a opinião de Freud, a psicanálise se desnaturalizou ao atravessar o Atlântico; os imigrantes que o difundiram deixaram a Europa para trás como uma má recordação e só lhes restou conformarem-se com os valores do american way of life. Esta expressão caiu em desuso, já que este estilo de vida está se tornando, cada dia mais, o nosso. Se o divórcio das sensibilidades e dos costumes entre Estados Unidos e França, incluindo toda a Europa, pôde, certamente, cristalizar-se a nível político, não impediu, de modo algum, a americanização em marcha.  
Assim, como tal, a psicanálise é revolucionária ou reacionária? Trata-se de um Jano, uma isca, que se utiliza explicitamente nos debates da sociedade nas quais se faz a psicanálise dizer uma coisa e o seu contrário. Mas, sua doutrina só requer que um analista esteja ali, antes de tudo, para psicanalizar e, subsidiariamente, para fazer avançar a psicanálise e difundi-la no mundo. Melhor ainda se para isto, intervém no debate público. 
Indubitavelmente, a psicanálise não é revolucionária. Sem dúvida, dedica-se mais a por em valores invariantes do que a depositar suas esperanças em mudanças de ordem política. Pretende operar a um nível mais fundamental do sujeito, onde os pontos do espaço-tempo estão em uma relação topológica e já não mais, métrica. O mais distante se revela, de repente, o mais próximo. Um psicanalista é, de bom grado, partidário do “Nada novo. Quanto mais isso muda, mais é a mesma coisa”, professa o psicanalista. Salvo que talvez possa piorar, se alguma vez acreditou-se que podia ser melhor.   
A psicanálise não é revolucionária, mas é subversiva, o que não é o mesmo, quer dizer, vai contra as identificações, os ideais, as palavras-chave. É bem conhecido que nos preocupamos quando alguém próximo começa uma análise: tememos que deixe de honrar a seu pai, a sua mãe, seu parceiro e a seu Deus. Alguns, por outro lado, aspiraram, sem êxito, a uma psicanálise adaptativa, muito mais que subversiva. 
Não nos enganemos, “quanto mais isso muda e mais é a mesma coisa”, mas muda de todo jeito! Que continue sendo a mesma coisa significa que o que se ganha por um lado, se perde pelo outro, e isto não se reabsorve. Se é subversiva, nem por isso a psicanálise é progressista nem reacionária. Seria, então, sem esperança? Digamos que uma psicanálise opera mais a partir da esperança. Procede ao modo de ablação da esperança e um certo alívio resulta disso.   

Não apenas os psicanalistas não são militantes da psicanálise – exceto às vezes, e não necessariamente, para sua felicidade – mas estão mais propensos a aborrecerem-se com os militantes. O que resulta disso é que os psicanalistas se mostram frequentemente muito sobrecarregados por sua operação que sacudiu todos os semblantes, em particular, todas as normas que moderavam a relação sexual, inserindo-a na família e na procriação. Os psicanalistas queriam que os semblantes de antes resistissem até o fim dos tempos. Longe disso! A psicanálise produziu danos sensacionais na tradição. A estes desastres, somaram-se as possibilidades inéditas que oferecem os avanços da biologia, da procriação assistida, a clonagem, a decifração do genoma humano, a perspectiva de que o homem mesmo se converta em um organismo geneticamente modificado. É claro que o Nome-do-Pai já não é mais o que era.

* Ex-presidente da Associação Mundial de Psicanálise. O texto é transcrição da conferência “Anguille en politique”, proferida na rádio France-Culture em 2005; traduzida para o espanhol por Daniela Fernández, especialmente para Página/12, quando da visita do autor, que participa do VIII Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, “A ordem simbólica no século XXI não é mais o que era”, que acontece nestes dias em Buenos Aires.
Tradução: Maria Cristina Maia Fernandes

Nenhum comentário: