domingo, 3 de junho de 2012

A Crônica de Éric Laurent: Investigar e punir, a ética hoje


A investigação das causas internas do autismo se faz num ritmo exaustivo. Cada mês, e mesmo cada semana, apresenta novas hipóteses. Uma semana depois da publicação em Nature dos estudos que colocam em causa a instabilidade ante as mutações “de novo” do esperma de pais idosos, em 9 de abril outra publicação na revista Pediatrics, relança a pesquisa do lado das mães. Ela procede das pesquisas da Universidade da Califórnia Davis e da Universidade Vanderblit. Nesse estudo, foi medida a obesidade das mães como um fator de risco. O objetivo era colocar em paralelo a “epidemia” de obesidade, uma mãe entre três nos EUA se considera obesa, e a “epidemia” de autismo.

Estudaram mil crianças entre dois e cinco anos, autistas ou não, assim como o dossier médico de suas mães. Ao comparar as mães obesas e as que não o são, as obesas tinham antes da gravidez, um risco 60% mais alto de ter um filho autista e dobravam o risco de ter um filho com retardo cognitivo ou comportamental não especificado. O risco é ainda maior quando as mães sofrem de hipertensão antes ou durante a gravidez. Irva Hertz-Picciotto, diretor da divisão de meio ambiente das ciências de saúde pública na Universidade da Califórnia Davis destaca que “o cérebro da criança é essencialmente sensível a tudo o que se passa no corpo da mãe”. Ele acrescenta imediatamente que a causa é multifatorial e que não se deve culpabilizar as mães. Não se sabe por meio de que mecanismo o sobrepeso ou o distúrbio metabólico pode influir no desenvolvimento do autismo. Supõe-se que pode ser por intermédio de um disfuncionamento insulínico e, portanto, da alimentação de açúcar do cérebro do bebê.

Susan Hayman, responsável pelo subcomitê de autismo da Academia Americana de Pediatria julga os resultados desse estudo de maneira muito positiva em seu comentário a um jornalista do Wall Street Journal on-line: “As estatísticas sobre a obesidade são preocupantes, mas é um fator de risco modificável”. Tudo depende de como. Está claro que um setor da pesquisa quer abrir uma nova oficina comportamental. Não apenas as crianças poderiam ser tratadas mediante uma reeducação comportamental, mas também suas mães. É preciso saber quais serão as punições aceitáveis nessa vasta empresa de reeducação alimentar. Outros professores de medicina encontram-se alarmados com o caráter multifatorial da epidemia de obesidade. A pesquisa das predisposições genéticas não dá conta da rapidez da epidemia. Os fatores do meio ambiente podem ser enumerados em profusão: os alimentos pré-preparados, muito açucarados ou salgados, os onipresentes refrigerantes, a desestruturação dos modos de vida e das famílias, as refeições muito frequentes, a eliminação do tabaco, que permitia controlar o peso, o stress no trabalho, etc. Controlar todos esses fatores parece una tarefa gigantesca. Apenas uma ética na medida permitiria propor uma solução, caso por caso. Resistir às buzinas do discurso da saúde pela solução reeducativa massiva não será fácil.

As declarações sem deferência, em Médiapart, da diretora do centro Camus de Villeneuve d’Ascq (ver LQ 192), sobre o vínculo entre reeducação comportamental e castigos mediante eletrochoques, dão uma ideia da vontade de poder daqueles que defendem esses discursos. “Na análise do comportamento, existem procedimentos de castigo por meio de eletrochoques. Todo mundo acha isso escandaloso, mas é aceito pelo governo holandês em certos procedimentos para transtornos severos e como “último recurso”. Isso serve para tranquilizar que “esse castigo é eficaz se o comportamento alterado diminui rapidamente, caso contrário não é uma boa punição. Então, se não diminui, paramos, não são aplicados 80 voltes! Mas, na França, desde quando se fala disso, se pensa em Vol au-dessus d’un coucous. Alguém voou sobre o ninho do cuco. O tema do “atraso francês” não está longe. Temos memória demais na França.
Talvez não se esteja errado. O governo americano, como o governo holandês, começou com os castigos elétricos desde os anos 50, e essas experiências no filme de Milos Forman fornecem uma versão inesquecível com Jack Nicholson num papel que marcou sua carreira. Um processo em curso em New York expressa bem as consequências dessa licença. A mãe de uma criança autista, Cheryl Mc Collins, levou à justiça uma “escola” de Massachusetts que recebe muitos novaiorquinos: o “Judge Rotenberg Center”. O City Magazine “New York” repercutiu o fato. Essa escola se apresenta como o “último recurso” para crianças,  adolescentes e adultos que sofrem de “distúrbios de comportamento”. As 84 crianças e 36 adultos que recebe podem sofrer de autismo, de retardos mentais ou tendências severas de automutilação. Essa escola é o único centro nos EUA onde os eletrochoques são o tratamento de referência. Um tribunal de Massachusetts recebeu esta semana um vídeo de 2002 no qual André Mc Collins, que tinha então 18 anos, depois de se recusar a tirar seu casaco ao entrar numa nova sala de aula, às nove e meia da manhã, recebe como castigo durante o dia 30 eletrochoques, administrados enquanto ele se mantinha amarrado a um dispositivo ad-hoc, até o final do horário escolar, às quatro e meia. Ele passou o fim de semana num estado catatônico. Seu advogado acusa o centro de “danos cerebrais permanentes relacionados à resposta de stress causado por esse dia”. É a primeira vez que um tribunal poderá assistir um vídeo que mostra ao vivo o efeito de um tratamento aversivo mediante eletrochoque, fora de qualquer ficção. O processo não é o único, em outro caso de 2006, um adolescente de 17 anos recebeu choques 79 vezes em 18 meses, com resultados catastróficos.                                               

As palavras da senhora Vinca Rivière, diretora do Centro Camus e responsável pelo master “Análise experimental e aplicada ao comportamento”, em Lille 3, não são tranquilizadoras, como diz. É preciso una vigilância precisa para que não se produzam esses desvios para além do “respeito aos procedimentos” invocados. Isso lembra os resultados da experiência de Stanley  Milgram no início dos anos sessenta na Universidade de Yale, que “buscava avaliar o grau de obediência de um individuo ante uma autoridade que considera legítima e analisar o processo de submissão à autoridade, especialmente quando esta induz a ações que colocam problemas de consciência para o sujeito”, como diz Wikipedia. Nessa experiência tratava-se precisamente de verificar até com que intensidade de “eletrochoques” — cujos efeitos eram simulados por atores, sem que os participantes soubessem — os estudantes iriam castigar os outros, quando estivesse autorizada a punição. Sabe-se que muitos dos poucos estudantes que se prestaram a isso souberam resistir a um processo de intensificação fatal. Somente na França pensou-se as consequências das ordens absurdas de uma intensidade tornada superegoica, “obscena e feroz”.

A psicanálise é uma disciplina crítica que ajuda a todo preço a manter viva a distancia ética a respeito do desejo de conformidade a sintomas perturbadores.  Em 16 de abril, um testemunho no jornal britânico The Guardian, permite verificar isso. O autor, Henry Bond, artista e escritor inglês, que desde os anos 90 teve sua hora de glória com o movimento dos YBA (Jovens Artistas Ingleses) ao lado de Damien Hirst e outros, se apresenta como Artista Asperger e Lacaniano.  Ele tem de fato um master em psicanálise do Middlesex Polytechnics, dirigido por Bernard Burgoyne, e publicou livros com prefácios de Darian Leader ou Slavoj Zizek, como Lacan on the scene, publicado por MIT Press, em 2009.
Ele nos fala de sua psicanálise e de suas sessões de TCC. As TCC, administradas no marco do NHS público lhe ensinaram a melhorar seu “social skills”. Ele aprendeu a levar adiante estratégias para fazer frente à sua “aspereza social”. Ao contrário, em sua psicanálise aprendeu que “é falado pelo real, possuído pela linguagem”. Ele atribui essa citação a Lacan. É uma dimensão da experiência que lhe parece preciosa e a qual teve acesso por seu autismo. Como outros autistas de alto nível, teme que se for encontrada uma causa genética para o autismo, se buscará erradicá-lo como se faz com a síndrome de Down. Ele pensa, entretanto, que será preciso talvez 50 anos para que essa descoberta seja feita e que, daqui até lá, a psicanálise lacaniana ajudará a que permaneçam abertas as questões éticas colocadas pelo autismo. Ele toma por sua conta a observação de um orador num congresso recente sobre o autismo: “Ninguém quer ser amado como ‘normal’, cada um quer ser amado pelo que tem de único”

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