sábado, 11 de maio de 2013

Jacques Lacan O Seminário 6 O desejo e sua interpretação



O que nos mostra Lacan? Que o desejo não é uma função biológica; que não está articulado a um objeto natural; que seu objeto é fantasístico. Por isso, o desejo é extravagante. Ele é fugidio a quem se propõe a assenhoreá-lo. Ele os engana. Mas também, se não é reconhecido, fabrica o sintoma. Em uma análise, trata-se de interpretar, quer dizer ler no sintoma a mensagem de desejo que ele contém.
Se o desejo desbarata, em contrapartida, ele suscita a invenção de artifícios que fazem o papel de bússola. Uma espécie animal tem sua bússola natural, que é única. Na espécie humana, as bússolas são múltiplas, são montagens significantes, discursos. Dizem o que é preciso fazer: como pensar, como gozar, como se reproduzir. Porém a fantasia de cada um permanece irredutível aos ideais coletivos.
Até uma época recente, nossas bússolas, diversas como são entre si, indicavam um mesmo norte: o Pai. Acreditava-se em um patriarcado antropológico e invariante. Seu declínio foi acelerado com a igualdade de condições, a ascensão do poder do capitalismo, o domínio da tecnologia.
Estamos na fase de saída da era do Pai.
Outro discurso está em vias de suplantar o anterior. A inovação no lugar da tradição. Mais do que a hierarquia, a rede. O atrativo do advir substitui o peso do passado. O feminino sobrepõe o viril. Ali onde tínhamos uma ordem imutável, os fluxos transformacionais franqueiam incessantemente os limites.
Freud é da era do Pai. Ele trabalhou muito para salvá-lo. A Igreja acabou se dando conta. Lacan seguiu a via aberta por Freud, mas ela o levou a formalizar que o Pai é um sintoma. Ele o mostra aqui a partir do exemplo de Hamlet.
O que se guardou de Lacan – a formalização do Édipo, o foco colocado no Nome-do-Pai – foi somente seu ponto de partida. O Seminário 6 já o reformula: o Édipo não é mais a única solução do desejo, é apenas sua forma padronizada; esta aqui é patogênica, não esgota o destino do desejo. De onde vem o elogio da perversão que termina o volume. Lacan lhe confere o valor de uma rebelião contra as identificações que garantem a manutenção da rotina social.
Este Seminário anuncia “os rearranjos dos conformismos anteriormente instaurados, até sua ruptura”. Nós estamos nisso. Lacan fala de nós.
Jacques-Allain Miller

Campo Freudiano
Coleção fundada por Jacques Lacan

Capa: Alegoria com Vênus e Cupido, Bronzino (v.1545), óleo sobre madeira.
            Londres, National Gallery. ÓGetty Images.