Há uma teoria espontânea do trauma. O que não podia acontecer,
aconteceu. Impensável! Inimaginável! Insuportável! Demais.
“Perco o controle” – Diante do impossível realizado o sujeito está
perdido, não é mais o que ele era, nem para si nem para os outros. Nenhuma
resposta vale. O sintoma explode.
A medicina, apoiada na ciência moderna, busca então uma solução – a
pílula do dia seguinte, a preparação antecipada, a verbalização imediata. É a
resposta pelo apagamento da memória – que tudo possa voltar a ser o que era
antes e que os homens voltem a se ocupar dos seus afazeres tal como o
imperativo do laço social exige. Não aconteceu porque não deveria ter
acontecido. A questão surge: como viver depois do trauma sem o trauma?
Não se tira nenhuma lição do trauma.
Como o trauma faz parte da existência e não pode ser eliminado, a
psicanálise opta por uma estratégia diferente, mais pragmática. Nenhuma
alteração da memória, nenhum apagamento, nenhuma contra programação, nenhuma
catarse, poderão eliminar o real. Mesmo supondo que tais soluções sejam
possíveis, os danos colaterais seriam grandes demais e inaceitáveis do ponto do
visto ético.
Então, o que propõe a psicanalise? Ela considera que o trauma
aconteceu, que ele modificou o sujeito e que ele se apresenta como avesso de um
ato. E por isso que ela escolhe tirar do trauma um ensinamento. Desde a sua
origem, a psicanálise, os analistas, Freud antes de todos, tiveram que
reconhecer uma evidencia clínica: a realidade psíquica não coincide de modo
algum com a realidade objetiva, seja ela fatual ou do discurso.
Mais ainda, a noção de trauma exige uma nova definição do fato e do
evento que seja congruente com o sujeito do inconsciente. Lembremo-nos do
celebre exemplo citado na Interpretação dos
Sonhos revisto por Lacan.
Um pai perdeu seu filho, perda cruel, trauma no sentido comum. Exausto,
ele pediu a uma pessoa familiar que se ocupasse de velar alguns instantes o
corpo do filho amado. Mas, por sua vez, esse homem adormeceu ao lado da criança
que, ela, dormia o seu sono derradeiro. De repente, um barulho: o fogo começou
a queimar o corpo do filho amado. Esta é a realidade. Como é que o inconsciente
responde? Por um pesadelo. A criança se aproxima e murmura “Pai, não vês que
estou queimando?”. Onde está o trauma? A impossível voz do morto, eis o que
verdadeiramente desperta o pai.
Uma imagem indelével, a erupção de um terror, a exacerbação de uma
emoção, uma palavra eternamente inarticulável, são múltiplas as referencias às
feridas que não se apagam, “perdas imaginarias no ponto mais cruel do objeto”.
A expressão é de Lacan que celebra, na perda, a relação do trauma aos objetos,
deixando o sujeito desnorteado, em um mundo que perdeu o sentido.
Aqui inicia-se o tratamento, no intervalo da fratura do sujeito, da
perfuração da sua realidade. Sobre estes pontos de fixação, a maquina de
produzir sentido se precipita e se esgota, confrontada ao que cegamente, o
inconsciente real, não cessa de repetir.
Todo mundo delira, isto é, dá seu próprio sentido, porque todo mundo é traumatizado.
Mas o delírio não liberta do trauma. Quando isso se repete, em quais condições um eu pode advir?
À universalização do delírio dos Uns-sozinhos, responde a generalização
do trauma. O mal estar correlacionado ao sintoma cedeu seu lugar ao trauma
relacionado à rejeição da marca, na medida em que o simbólico perde seu poder
diante do real. A utopia dominante não é mais o recurso ao pai, mas ao risco
zero com a docilidade geral que ele implica. Porém, não se leva ai em conta
essa “coisa obscura” que está em nós. Cabe à psicanálise atribuir-lhe seu justo
lugar, sempre singular, sempre contingente.
Christiane Alberti, Marie-Hélène Brousse
Nenhum comentário:
Postar um comentário