segunda-feira, 21 de dezembro de 2009



A Diretoria do CEPP deseja a todos Boas Festas e um 2010 bastante produtivo.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

A PSICANÁLISE HOJE, SEGUNDO JUDITH MILLER



A filha de Jacques Lacan
fala das modas e dos modos de diagnosticar, da tendência a medicar as crianças e dos limites entre o público
e o privado. E de suas diferenças com Anna Freud.

Por Diego Rojas
Quem poderia suspeitar que a delgada mulher que sustenta um livro em seus braços e se nega a soltá-lo enquanto tomamos suas fotos que ilustram esta entrevista, é Judith Miller, a filha de Jacques Lacan? A presidenta da Fundación del Campo Freudiano se aferra ao livrinho, uma compilação de textos lacanianos escritos em português. “Só uma foto sem ele”, roga o fotógrafo, mas ela se nega. “É meu tesouro”, assegura, e toda a sessão transcorre enquanto Miller abraça o ditoso livro. Sabe-se, as neuroses não reconhecem fronteiras; por que a filha do homem que repensou Freud e a esposa de Jacques Alain Miller, seu discípulo dileto, seria imune a elas? Miller esteve em Buenos Aires para participar do XVI Encuentro Internacional del Campo Freudiano e o Encuentro Americano de Psicoanálisis Aplicado de Orientación Lacaniana. Durante um descanso, compartiu a seguinte conversação com Veintitrés.

Certos diagnósticos psicológicos parecem alcançar a categoria de modas. Os ataques de pânico, a bipolaridade. Inclusive, na Argentina, certas revistas assinalaram que a gestão de Cristina Fernández estava marcada por sua suposta bipolaridade.

Há uma diferença entre “moda” e “modo”. Diagnosticar os atos do governo ao diagnosticar a senhora Kirchner como bipolar é uma nova maneira de fazê-lo. É uma certa maneira de não ter respeito a sua pessoa. Essa falta de respeito socava uma diferença que me parece fundamental entre o privado e o público. Está na moda falar do privado como se a intimidade estivesse exposta diante dos olhos dos demais. E os responsáveis pela política e pelos governos costumam ser objetos destes diagnósticos. É uma desvalorização da singularidade e a subvalorização desta pessoa singular, que o é ainda que seja um chefe de Estado. A classificação é uma maneira de dizer que uma pessoa é similar a muitas outras. A psicanálise faz o contrário da moda.

Por que?

Porque compreende a divisão entre o privado e o público: não se poderia fazer associação livre de maneira efetiva sem resguardar o segredo. Buscar a singularidade, aquilo que faz com que cada um não se pareça com ninguém, é o final da análise. Esta singularidade absoluta é acessível. Por isso, a psicanálise não aceita nem o “modo” nem a “moda” atuais: são parte do que chamamos o mal estar da cultura. A psicanálise rechaça estas colocações e diz por que é perigoso mesclar a identidade de cada um com a identidade de outros. Os direitos humanos são universais e cada humano tem os mesmos direitos que os outros, mas isso também se traduz em que cada um tenha as mesmas debilidades que os outros e isso não é verdade. Cada um tem suas próprias debilidades, seus problemas, seus sintomas. Promover uma norma é errôneo porque sabemos que as normas são também uma forma da “moda”. Não há normas universais. Lacan disse que o discurso da psicanálise vai no sentido oposto ao discurso da moda.

Ir na contra mão não tem consequências para a psicanálise?

Este posicionamiento produz que a psicanálise, para existir, deva combater ataques muito agressivos do tipo político, epistêmico e administrativo, por exemplo, na França. Ganhamos a primeira batalha, mas a luta continua. O reverso não é o mesmo que o anverso da tela e a psicanálise assinala esta característica. O modelo universal responde às leis do mercado. Os laboratórios estão produzindo remédios e é preciso buscar as enfermidades para vender estes remédios, inventam-se categorias novas de classificação com fins de mercado. Estes manejos não podem assegurar a saúde mental da sociedade. Daí o incômodo da psicanálise.

Nos Estados Unidos, 10 por cento das crianças toma Ritalina.

É triste. As crianças são alimentadas com Ritalina para que tenham paz escolar e familiar, para colocá-los em frente da tela da TV, bem comportados. Isto produz efeitos que ainda não conhecemos bem. Quando estas crianças forem adultas terão atravessado uma drogadição. Mas não é tão fácil “normalizar” um ser falante. Freud disse que quando se expulsa o sintoma pela porta, ele volta pela janela. Se com Ritalina a criança dorme às oito da noite em lugar de duas da manhã, quando acordar continuará tendo os mesmos problemas.

Hoje existem crianças criadas em famílias distintas das que Lacan descreveu. Se Lacan outorga à figura do pai, uma importância vital, em uma família formada por duas mães, por exemplo, o desenvolvimento psíquico continua sendo o mesmo?

Não é uma dificuldade para a psicanálise porque desde seus primeiros escritos sobre o tema, Lacan explicou que cada família é um fato de cultura e que não tem nada a ver com uma natureza constituinte da família. O nome do Pai, precisamente, não está dado pelo pai biológico, mas é uma figura que funciona em cada caso, de maneira diferente. O nome do Pai é um semblante. Parece-me difícil entender que alguém possa dizer que há um laço natural entre a mãe e a criança ou entre o pai e a criança. Não tem sentido.

Zizek e Laclau reconhecem os aportes de Lacan na hora de repensar o marxismo. Inclusive, Badiou diz que Lacan é para o marxismo, o que Hegel era para os revolucionários de 1850.

Não li Laclau, mas meus colegas me falaram sobre sua obra. Lacan sempre ofereceu aportes ao marxismo, a partir das intervenções de Althusser e seus seguidores. Lacan leu a Marx e essa leitura lhe permitiu dar conta do plus de gozo. Sempre houve uma ida e volta entre a teoria marxista e a teoria psicanalítica. Lacan tem referências do início onde o peso da história e as organizações sociais são, sem dúvida, levadas em conta. O mestre antigo não é o mestre moderno e o mestre moderno tem diversas caras. Essas caras são históricas. Nossa tarefa hoje, e a dos marxistas também, é de dar conta da diferença entre o discurso do mestre capitalista que desenvolve a produção industrial e o capitalismo atual, que produz dinheiro a partir de dinheiro, um capitalismo financeiro. É diferente e é preciso ver as consequências dessas diferenças.

Zizek conjuga com Lacan com a troca social quando assinala que o desejo, que não tem lugar na realidade, pode ter uma tradução política quando se pensa em São Paulo e o fim da ressurreição, que não tem possibilidade real empírica, mas que se transforma em um impulso à ação.

Não sei se o desejo impulsiona ninguém a nada. Abrir um seminário de Lacan é como abrir um livro de Freud e o desejo do leitor está implicado em sua leitura. Penso que um analista lacaniano impulsiona a desejar. É verdade que para alcançar o desejo também é preciso atuar. Mas a psicanálise não é uma ideologia. A responsabilidade do próprio desejo de cada pessoa é o que a psicanálise permite, que se seja responsável pelos próprios sonhos.

Buenos Aires, além de ser uma cidade psicanalisada, é um centro de produção lacaniano. Na UBA, a Faculdade de Psicologia conta com uma maioria de programas que dão conta desta orientação. Como se vê, da França, este fenômeno?

Os psicanalistas franceses lacanianos sabem que há uma escola dessa orientação na Argentina. Trabalhamos com os colegas argentinos. Há uma interlocução entre os psicanalistas lacanianos e suas escolas, entre os psicanalistas franceses e os argentinos. Há um refrão em francês que se refere às carícias que se fazem a contrapelo, nos gatos. Não vou acariciar os colegas argentinos desse modo (“Não vá nos dourar a pílula”, assinala uma lacaniana argentina presente na entrevista). Os amigos argentinos sabem que a psicanálise neste país é muito mais acessível que na França e que eles o desenvolveram muito bem.

Anna Freud se considerava uma continuadora da obra de seu pai. A senhora contribui para o desenvolvimento do pensamento de seu pai. Pensou alguma vez neste paralelismo?

Quando pensei neste tema, que tem retornado muitas vezes na minha vida, pude chegar à conclusão de que foram duas experiências muito distintas. A obra de Anna Freud é uma das primeiras experiências da traição que conheci em minha vida. Traiu a obra de seu pai. Por isso, essa comparação não é tão desejável.

A senhora é a presidenta do Campo Freudiano. É a filha de Lacan e a esposa do discípulo mais relevante, Jacques Alain Miller. Como conjuga sua vida pessoal com o que seu pai e esposo e seu próprio trabalho significam no âmbito cultural e intelectual?

Começamos esta entrevista assinalando os limites entre o público e o privado e não creio que seja correto saltar essas barreiras.

Tradução: Maria Cristina Maia Fernandes

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Saúde Mental



"A meus olhos, a saúde mental é o estado de uma pessoa capaz de conhecer seus limites e amá-los. Ser psiquicamente saudável significa viver relativamente feliz consigo mesmo apesar das inveitáveis provas, experiências e restrições que a vida nos impõe."
J.-D. Nasio
[in Um psicanalista no divã, Jorge Zahar Editor, 2003, p22]

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O significante do impossível

Por Jacques Lacan e Claude Lévi-Strauss
Jacques Lacan: – Se quisesse caracterizar em que sentido fui sustentado e transportado pelo discurso de Claude Lévi-Strauss, diria que é no acento que ele colocou sobre o que chamarei a função do significante, no sentido que este termo tem em linguística, na medida em que este significante não só se distingue por suas leis, senão que prevalece sobre o significado ao que as impõe.

Claude Lévi-Strauss nos mostra, por todas as partes, onde a estrutura simbólica domina as relações sensíveis. Ele nos mostrou que as estruturas do parentesco se ordenam segundo uma série que as possibilidades da combinatória explicam em última instância; ao ponto de que quase todas estas possibilidades se realizam em algum lugar, nas estruturas que registramos no mundo. Quer dizer que, por um lado, é possível responder por aquelas que não encontramos. devido a algum impasse ao qual levaria seu uso, e que, por outro lado, se existem classes possíveis que permanecem vazias, deve-se esperar encontrar algum dia que as complete.

Finalmente, o que faz que uma estrutura seja possível são razões internas ao significante; o que faz que certa forma de intercâmbio seja concebível o não, o são razões propriamente aritméticas.

O segundo passo que, graças a ele, eu já tinha franqueado, é aquilo que devemos aos seus desenvolvimentos sobre o mitema: uma extensão à noção do mito desse acento posto sobre o significante. A análise dos mitemas tal e como ele nos propõe realizá-la, consistiria em buscar estes elementos significantes, estas unidades significantes no nível do mito – onde elas se chamam mitemas, assim como no nível do material essencial temos os fonemas – para reencontrar ali uma sorte de linguística generalizada.

Muito me impactou, nesta primeira análise do mitema, o caráter avançado das fórmulas que ele conseguiu encontrar, já em condições de extrair das linhagens heroicas certas combinações: por exemplo, como um agrupamento de términos que se produz na primeira geração e se reproduz, mas em uma combinação transformada, na segunda. Digamos que o que acontece na geração de Édipo pode ser homologado à geração de Eteocles e Polinices segundo um modo de transformação previsível em seu rigor; então, a falta de arbitrariedade do mito se manifesta no fato de que em ambos os níveis encontramos uma coerência igual, que se corresponde ponto a ponto um nível com o outro.

Como Claude Lévi-Strauss não ignora, tentei, me atrevo a dizer que com um êxito total, aplicar sua grade aos sintomas da neurose obsessiva, e especialmente à admirável analise que fez Freud do caso do Homem dos Ratos, em uma conferência que titulei “O mito individual do neurótico”. Cheguei inclusive a formalizar estritamente o caso segundo uma fórmula dada por Claude Lévi-Strauss, onde se lê o que chamarei de signo de uma espécie de impossibilidade da resolução total do problema do mito. O mito está lá para nos mostrar a colocação em equação, sob uma forma significante, de uma problemática que por si só deve deixar necessariamente algo em aberto, que responde ao insolúvel, e sua saída, reencontrada em suas equivalências, que fornece – essa seria a função do mito – o significante do impossível.

Os significantes estão feitos para serem seriados, para serem organizados, para realizar-se uma escolha. Esse é o fundo sobre o qual se inscreve a experiência analítica, inclusive a experiência etnográfica: você encontrou lá o que podemos encontrar em nós.

Interessa-nos o sistema de significantes na medida em que organiza, na medida em que é a andamiagem de tudo isso e determina ali várias vertentes, pontos cardinais, inversões, conversões e o jogo da dívida.

Certamente, esta ordem de estudo envolve por si só tal mudança de perspectiva que permite reclassificar os problemas de um modo completamente diferente. Por exemplo, interrogar-se qual será exatamente o sistema de transformação do significante nas diferentes manifestações do simbolismo que a análise tem revelado no psiquismo: provavelmente não se apresente em todos os lugares do mesmo modo que na neurose obsessiva; é de um modo mais completo ou descompleto em outros registros? De aqui para frente podemos reencontrá-lo no sonho: e, se tivessem contado com esta chave, os autores que se interessaram na função do que chamaram sonhos em dois tempos, ou sonhos redobrados, teriam sido mais pertinentes em suas colocações, menos toscos em seu recurso às instâncias psíquicas em sua forma entificada para explicar a necessidade da reduplicação de um mesmo tema e o que ali se esgota. Isso não faz mais do que acrescentar a intensidade do problema, pois, se isso funciona ao nível do sonho ao que nos conduz a respeito da atividade mental? Isto renova por completo o alcance das perguntas.

Claude Lévi-Strauss: - O problema de hoje é o das relações ente a mitologia e o ritual, problema geralmente escamoteado sob o pretexto de que o mito é de ordem da representação, e o rito, da ordem da ação. Mas isto só seria verdadeiro se as ações, os gestos do rito, fossem ações e gestos verdadeiros, ou seja, se culminassem em um resultado. Você falou recentemente do significante e do impossível; se o ritual não produz resultado, é preciso concluir disso que consiste em pseudo-gestos executados, não em razão de um resultado concreto, mas porque são um apoio de significação. Nesta perspectiva, mesmo se tratando de dois sistemas de signos diferentes, de dois códigos diferentes, tanto no plano do mito como no do rito nos encontramos ante um código; alguma vez caracterizei o mito como uma metalinguagem e o rito como uma para-linguagem, mas, em ambos os casos, linguagem. Então, por que existem ali duas linguagens? É o problema que tentei colocar. Acho que é possível fazer progredir sua solução mostrando que esta assimilação entre o mito e o rito está tão justificada que o tipo de combinações que uma sociedade realiza em forma de mito, aquela que está do lado a realiza em forma de rito. As razões pelas quais se produzem estas eleições diferentes não tocam o essencial da interpretação simbólica, e envolvem a respectiva história destas populações. Não penso situar-me assim à zaga das minhas hipóteses procedentes. Vejo ali, pelo contrário, um meio de estendê-las e desenvolvê-las já que se trata de englobar no reinado do simbolismo o domínio do ritual, o qual se havia deixado de lado até agora.

*Intervenção de Lacan e resposta de Lévi-Strauss, trás uma exposição de este último, denominada “Sobre as relações entre a mitologia e o ritual”, na Sociedade Francesa de Filosofia, dia 26 de maio de 1956. Extraído do texto incluído em “O mito individual do neurótico”, que distribui nestes dias editorial Paidós.

Tradução: Blanca Musachi

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Comentário sobre “A Teoria do parceiro”. J. A . Miller.

Por Margarida Assad, psicanalista e Membros da Escola Brasileira de Psicanálise - EBP

Esse texto é uma ampla parte do curso dado por Miller em colaboração com Laurent no ano de 1996/1997, O Outro que não Existe e seus comitês de ética.
Penso que aí já se anunciavam as transformações do ensino de Lacan e, que Miller vem nos transmitindo desde então em seus cursos, marcando o segundo e o ultimíssimo Lacan.
A premissa é que não há um saber no real, o que se articula a não haver um saber sobre a relação entre os sexos. Assim, diz Miller, se há sintoma então não há saber no real sobre a sexualidade.

Para desenvolver essa questão, Miller nos fala da parceria do sujeito com a verdade que se apresenta para Descartes na relação do homem com Deus. Em primeiro lugar nos trazendo a solução cartesiana para que o homem possa se relacionar com um Deus que não engane, que não se manifeste e não deseje, ou seja, um deus silencioso, um deus da ciência. Por outro lado, Descartes, também aborda um deus atormentado, furioso, é o deus bíblico.
Como jogar a partida com a verdade com esse Deus-janus?
Essa parceria nos aponta para a parceria com o Outro. No início do seu ensino Lacan, colocava um problema para o sujeito: o de ter seu desejo reconhecido pelo Outro. Mas o conceito de Outro em Lacan se modifica, deixando de ser o Outro com a marca do significante fálico para aceder a um lugar de furo, de não resposta, de silêncio. O Outro sexual também se modifica e o sujeito terá que se relacionar com seu gozo, seu objeto a, semblante de objeto.

O parceiro então é o gozo; e o parceiro sexual será escolhido em função de como ele elabora seu saber sobre sua posição de exilado da relação sexual. Desta forma, é o sintoma, que passa a ocupar o lugar formal do núcleo de gozo. Surge uma nova teoria sobre o amor. Um amor que não passa pelo narcisismo, mas pelo inconsciente, ou seja, pela elucubração do saber da não relação sexual. Há o sintoma como um recurso para saber fazer com o outro sexo, que se torna um revestimento para o objeto a. O parceiro é assim o invólucro formal do núcleo de gozo. O que leva Lacan a dizer que no nível do sintoma o sujeito é sempre feliz.
Assim, se já podíamos pensar em um Deus janus, um que engana e um que não engana, podemos pensar em um objeto janus, um objeto fálico e um real, semblante de objeto. Mas também podemos falar em um sintoma janus, pois, como nos diz Miller, ele é o que não vai bem, mas é também o único lugar onde isso rola...
Com essas considerações podemos propor algumas questões sobre o tema de nosso colóquio:
Como explicar a parceria com um objeto da pulsão no nível do fundamento sintomático do casal?
Quais transformações podem ser pensadas sobre a pulsão quando o final de análise não se esgota na travessia da fantasia? Ou, se não há travessia da pulsão o que é a cura?
É possível amar seu sintoma? Fazer bom uso dele é amá-lo? O que se ama, quando há sinthoma e não sintoma?

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Jacques Lacan e a Psicanálise do Século XXI

Confiram a fala de Jorge Forbes na conferência de encerramento de seu programa no Café Filosófico (27/8/09), sobre a Psicanálise do século XXI.

http://www.youtube.com/watch?v=Xva3Coue9-c

Como Lacan se tornou psicanalista…

JEANNE JOUCLA

Esse título é uma brincadeira? Sim...e não, pois o próprio Lacan evoca esse « como » por ocasião de uma de suas entrevistas nas universidades norte-americanas em Yale, em 1975. Veremos que sua conclusão é surpreendente!

Lacan é convidado nas universidades norte-americanas. Em Yale, diante de um público de universitários e de estudantes, é um pouco aos trancos e barrancos : « Gostaria, em primeiro lugar, de lançar uma questão, precisamente aos que escolheram colocar-se como psicanalistas [...] como eles chegaram ao que pode, depois de tudo, ser razoavelmente chamado de seu...trabalho » …

« Agora, deixem-me responder minha questão : como me tornei psicanalista? »

Ele evoca, então, sua tese de doutorado em medicina em 1932, A psicose paranóica em suas relações com a personalidade, « um ensaio de rigor » antes de tudo que, diz ele, « eu me permito levar a sério ». Depois, ele faz a aproximação com Freud, escutando muito seriamente as histéricas e que descobriu o inconsciente; ele prossegue perguntando-se sobre as formações do inconsciente e sobre o fato de que, no tratamento, o que conta é o relato que se faz dela - um material linguageiro, então.

Lacan, depois desses desvios, reitera sua questão « […] gostaria de ter uma idéia de como alguém se decide a autorizar-se psicanalista nos Estados Unidos? Gostaria de ter uma idéia do que corresponde, aqui, ao que intituí na minha Escola e que chamo de « o passe ». Ele precisa: « isso consiste em que, no ponto onde alguém se considera suficientemente preparado para ousar ser analista, ele possa dizer a outrem […] o que o provocou a receber pessoas em nome da análises… ? » Silêncio…

Ele continua: « Vocês devem admitir que a descoberta do inconsciente é uma coisa muito curiosa, a descoberta de uma forma de saber muito especializada, intimamente ligada ao material da linguagem…que cola na pele de cada um pelo simples fato de ser humano…»

Lacan retoma, e é a terceira vez: « Agora, se alguém quiser me responder...eu o convido a dizer a verdade…Vocês podem me dizer simplesmente que vocês pertencem a uma associação psicanalítica, e que isso lhes pareceu ser uma bela situação…»

Depois, a última frase cai como um cutelo: « Mas o fim da verdade, a verdade verdadeira, é que entre homem e mulher, isso não funciona ».

Vamos parar nesta frase da qual imaginamos o efeito surpreendente que ela teve sobre a silenciosa platéia – e da qual medimos, várias décadas mais tarde, a pertinência cortante!

Estamos em 1975, ou seja, 8 anos depois da invenção do passe descrita na proposição de 67, e apenas 6 ans depois de seu funcionamento.

Tradução: Eucy de Mello

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Agnès Aflalo: Observações sobre o tema

Fazer uma análise. A condição para se tornar analista é fazer uma psicanálise. Para isso, é preciso encontrar um analista. Ora, O psicanalista não existe. O que existe é um ato do qual somente os efeitos de só depois poderão legitimar se houve uma análise. A pergunta “como se torna analista?” deriva-se então em diferentes questões, como esta do testemunho exposto, que permite verificar a pertinência da decisão de funcionar como analista. Lacan formalizou um fim lógico da experiência que passa pelo testemunho do passe diante de um júri fechado. O tema das Jornadas que vocês escolheram demanda um testemunho pouco distante do passe, posto que se trata de expor seu próprio percurso, e da decisão tomada de ocupar o lugar da variável na função de psicanalista. Há como relançar a experiência, se os testemunhos forem efetivamente ordenados em sua diversidade.

O fato. O momento da instalação precede freqüentemente o momento lógico do fim da experiência. É um fato que o analista só se autoriza de si mesmo, mas, também de alguns outros e é também um fato numa Escola de Lacan.

Nunca parar de pôr o paradoxo a trabalhar. É preciso um psicanalista para fazer existir o inconsciente. E não há psicanálise sem psicanalista. Fazer existir o inconsciente depende do ato analítico.

A regulação do desejo na análise. Alguém se torna analista porque assim o deseja. Esse desejo pode datar de antes da análise – na adolescência, sim, como foi meu caso, onde a leitura de Freud fez acontecimento. Mas, isto não basta. Esse desejo se decide por acaso no decurso da análise. Ele se impõe como alternativa de uma escolha forçada (as únicas que contam): “isso, ou nada mais”. Tornamo-nos analistas quando estamos habitados pelo desejo de que a psicanálise não desapareça conosco - quando se decide que a experiência subjetiva da análise é de tal forma insólita, que vale a pena ser transmitida a outros.

Tirar as conseqüências radicais da inexistência do Outro- mas não por meio de fazer uma análise sem a presença real daquele que se dedica a fazer o analista. A psicanálise e os psicanalistas, isso faz dois, mas não por meio de fazer existir o Discurso Analítico sem psicanalista.

O que faz alguém analista é, in fine, uma vicissitude do sintoma- se a decisão está tomada, basta decifrar o querer-dizer do sintoma, e o que resta do querer gozar é suficientemente esvaziado para alojar a queixa de um outro. Em outras palavras, decidir de se fazer o parceiro de um outro sinthoma que não o seu, para que se complete o trajeto que vai do Outro ao outro (l’(a)utre).

Tornar-se analista e permanecer analista: relançar a aposta ética. Isso depende do ato para cada paciente, e a cada sessão. Isso implica em reinventar a análise com cada um, a fim de que os efeitos de verdade desencadeados pelo ato possam se construir em um saber singular que toque o real do sintoma. Isso implica em supervisões, e a retomada da análise, quando os restos ativos do sintoma disto necessitem.

Não parar de acreditar no inconsciente, e de se fazer responsável pelo sintoma. É saber que o real do inconsciente não pára nunca de engendrar seu próprio desconhecimento. Isso é verdade antes, durante e depois da análise. Tornamo-nos analistas quando consentimos com a ascese prescrita pela causa analítica, que prescreve se desfazer deste desconhecimento engendrado pelo real, e, portanto, de nunca estar desobrigado. É dar seu lugar ao inconsciente pós-analítico, e não somente para retomar um período de análise, mas também interpretar outras formações do inconsciente, se for necessário, como o fato de analisar a lógica do ato falho.

A Escola de Lacan. Tornar-se analista numa Escola de Lacan é decidir fazer-se responsável com outros da transmissão do Discurso analítico. Isso comporta passar pelo ensino de Freud, de Lacan, sem fetichisar seus conceitos. Quando a Coisa analítica não lhes deixa mais em paz, e que decidiu de fazer dela sua causa, e que ela impulsiona a reinventar a psicanálise, mas sem uma série de outros que tomaram a mesma decisão, e por razões similares.

A questão é atual, pois isto é necessário para que o discurso analítico não desapareça. Ora, para que a questão possa continuar a se colocar, é preciso que a psicanálise não seja decretada fora da lei pelo mestre que nos governa. Tornamo-nos analista quando temos a idéia de que o psicanalista é responsável por fazer existir o discurso analítico. Isso implica em analisar o mal-estar contemporâneo.

As XXXVIII Jornadas acontecerão nos próximos dias 7 e 8 de novembro em Paris, no Palais de Congrés

ECF 1 Rue Huysmans Paris 6éme. Tel. + 33 (0) 1 45 49 02 68

Para se inscrever acessar www.causefreudienne.org

Tradução: Elizabete Siqueira

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Bonita aposta

Judith Miller,Psicanalista.

Ponhamo-nos, nestas Jornadas, na hora da surpresa, sabendo que a maioria das decisões são vividas como demasiado tardias. Não é uma razão para não tomá-las.

Esta me permite saber por que o título destas Jornadas faziam com que me coçasse sem as cócegas. Sem dúvida, sou demasiada heideggeriana: o “se” mata a surpresa que remete a um caminho já traçado.

Felizmente, Jacques Lacan encontrou o espírito freudiano: a noção de caminho obrigado, de cursos e a da análise chamada didática, com seus aparatos de bens necessários e outras enfatuações. Ver o texto mordaz dos Escritos. Extrair dali, suas conseqüências.

Uma análise não está pré-programada, reserva surpresas.

Não há prejuízos, não há ideal, tampouco. O passe não é um, não prejulga nada, nem sequer não voltar ao trabalho de analisante, por um pequeno lance, aqui, ali.

A pergunta seria ao menos dupla. Quem é analisante, quem entra em análise atualmente e o que pode produzir-se aí? À primeira, numerosas respostas, caso por caso. Declino algumas que posso ver (sem saber nada disso).

- Estão os que crêem fazer uma análise e não o fazem, porque aquele que pretende permiti-la, não o permite. Não há análise sem analista. A questão se torna: haveria que demonstrar que o “ato” verifica que alguém teve o lugar de analista. O caso é que nem todos aqueles que querem fazer uma análise têm a oportunidade de encontrar esse alguém.

- Estão os que sofrem e que têm a coragem de não contentar-se com isso, de se colocarem ao trabalho analítico, o aprendem. Saboreiam seguramente e vão saborear ainda mais de outro modo, esse trabalho tem efeitos e não vejo porque os analistas se envergonhariam dizendo que são de cura, dado que em medicina que tem a ver com curar, um enfermo não deixa de ser por isso, menos mortal; a melhora, a satisfação de que se trata, não equivalem nem à serenidade, nem a alguma “normalidade”, nem a uma saúde mental, ...nem...nem.

- Estão os que tomam gosto por esse trabalho, que se transforma indispensável, fizeram bem em decidir-se, às vezes por necessidade estrutural, às vezes por debilidade (quando?), às vezes por outras vias.

- Outros consideram, em determinado momento, que terminaram, pode ser algo provisório ou definitivo, o que não implica por a trabalho seu inconsciente - ensinando, por exemplo - porém há outras maneiras a explicitar também, entre elas, depois de tudo, analisar os demais.

Não existe os que fazem uma análise por pura curiosidade intelectual, nem para encontrar seu caminho profissional, volta à casinha do começo.

- Estão os que não se decidem por se colocarem a trabalho de analisante. Estão equivocados? O equívoco, como cada um sabe, mata. Sem dúvida, entre eles, muitos cedem sobre seu desejo. Não todos, alguns se arranjam sem saber como. Medem as contingências que os têm permitido, os encontros, as ocasiões falhadas e aquelas exitosas.

- Se a psicanálise é preciosa hoje, é por ser intempestiva, por preservar-se das receitas, dos programas, por apreciar o inesperado e o anódino e por acolhê-los sem causar danos, por ter tato frente ao mais secreto, dando conta disso com justeza e por meio do detalhe singular. Racionalista de outro modo, termina sendo poética.

Encontrar as surpresas, bonita aposta. Não consolam nem evitam a vaidade do que constitui o sal da vida, um pequeno nada, decisivo. Em que?

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Algumas considerações de Laurent

Zaeth Aguiar do Nascimento – Correspondente da Delegação Paraíba da EBP

Laurent aponta-nos as características da subjetividade contemporânea e nesta “percebe-se claramente que o declínio do ideal se acompanha das exigências do gozo”. Permeando a subjetividade contemporânea apresentam-se o hedonismo de massa e o fetichismo da mercadoria generalizada.

Neste sentido, constatamos que o hedonismo de massa que caracteriza o momento atual da civilização é responsável pelo desaparecimento da particularidade do sintoma. A visão hedonista do mundo remete ao acesso ao gozo “para todos”. Laurent acrescenta os dois tipos de relação com o gozo: querer mais gozo e querer a particularidade do sintoma e indica-nos um outro aspecto da experiência de gozo que se diferencia da overdose, que é a experiência do todo e que seria a alloverdose implicando um gozo ilimitado, o todo. Se contrapondo a esta versão do gozo, “respondem os pequenos furos particulares de cada sujeito liberado da tirania de gozar de “tudo” (p. 173)”. Miller (Curso de Orientação Lacaniana, curso 20; ano 2003-2004 – inédito) indica-nos a que ponto a tirania do objeto a na atual civilização é uma tirania que não tem mais laço com a singularidade de cada sujeito, por isto se chama de tirania.

Diante deste quadro da civilização, voltamos a nos questionar qual a ação do analista? Laurent indica-nos que o analista “não pode pretender aliviar o sujeito contemporâneo de sua culpa em relação ao ideal”, pois o sujeito contemporâneo já está aliviado (ele é um sujeito light) e que “o importante não é o aparente alívio do sujeito, mas o peso de sua relação com o gozo” (p. 171). Neste sentido, cabe ao analista, no que diz respeito ao gozo, “reenviar o sujeito à sua particularidade” (p. 172) que diz respeito ao sintoma. O programa de ação do analista na civilização atual é fazer acreditar no sintoma que remete ao singular.

Outra ação do analista na civilização do lugar da psicanálise hoje, diz respeito ao que Laurent denomina de “analista-cidadão”. Desta forma, resta ao analista praticar a psicanálise na cidade, sair da posição de analista intelectual, “Há que se passar do analista reservado, (..) a um analista que participa, (...) sensível às formas de segregação, a um analista capaz de entender qual foi sua função e qual lhe corresponde agora” (Laurent, 2007, p. 143).

terça-feira, 14 de julho de 2009

O sintoma – acontecimento de corpo

Iordan Gurgel, Psiquiatra; Analista Membro da Associação Mundial de Psicanálise e da Escola Brasileira de Psicanálise

O corpo é inconveniente, é um conflito: inicialmente é desgarrado e só encontra unidade através da imagem validada pelo Outro. Ele não está constituído de entrada; é com a incorporação da linguagem que é concebido. A entrada do significante negativiza o gozo primeiro, original, real que reinava antes da linguagem (Lacan em Radiofonia, 1970). A ação do significante torna o corpo um deserto, um vazio de gozo. Impõe-se então a incorporação da libido que acontece nos orifícios (ditas zonas erógenas) e envolve o corpo, com a função de recuperar no exterior do corpo o gozo perdido no seu interior. Em conseqüência, esta disposição pulsional, determina os objetos libidinais separados do corpo: o seio, as fezes, o olhar, a voz (semblantes do objeto a).

O primeiro período do ensino de Lacan sobre o sintoma, é o de retorno a Freud, onde prevalece a sobredeterminação simbólica e é conseqüente à noção do inconsciente estruturado como uma linguagem. O sintoma é um significante; é uma metáfora – expressão subjetiva do poder da palavra sobre o corpo; é uma mensagem enigmática que o sujeito toma como vinda do real e não dele próprio. A condição de mensagem é graças ao artifício da experiência analítica que introduz seu operador, o Sujeito suposto Saber. Sem ele, o sintoma não diz nada a ninguém. Neste período, a relação ao corpo é dada pelo imaginário, depósito de gozo.
O segundo período, que começa em 1964 (Os quatros conceitos da psicanálise), corresponde à articulação realizada entre sintoma e fantasma; prevalece o objeto a e sua articulação com o Real – entre sintoma e gozo. Coloca em evidência a pulsão e a modulação do sintoma pela repetição e satisfação. A vinculação do sintoma ao corpo é através do fantasma, cujo complemento corporal, em sua fórmula, é dado pelo objeto a.

O último ensino de Lacan é marcado pela relação do sintoma à letra, como irredutível. O inconsciente como um saber cifrado, cujo exercício é o gozo. Se o fantasma é o que recobre a falta no Outro, encontra um limite no sintoma, que é índice do fracasso do fantasma e um modo de tratar a falta. O sintoma é tomado como signo (como uma versão significante), e com uma versão letra (produtora de gozo). Há um limite da psicanálise em articular o fora do sentido da letra com o significante que lhe dê sentido.
Nos três momentos distintos do ensino de Lacan, observamos que o sintoma sempre está articulado ao corpo e o que varia é o conceito de conexão: metáfora, gozo e letra.
Neste percurso, o sintoma passa do modelo de mensagem – versão freudiana do sintoma como mensagem a decifrar, compatível com a noção lacaniana do inconsciente estruturado como uma linguagem – à modalidade de gozo do sujeito – sintoma-letra que é imune a eficácia simbólica (é a passagem da lingüística para a topologia).

No seminário (XXIII, 1975/6) O sinthoma, a teoria do nó borromeu é reforçada – entendida como a estrutura essencial do sujeito – que tem no sinthoma o quarto nó que enlaça o RSI (e sempre ameaça desfazer-se). Esta concepção é o que permite ao sujeito viver, já que organiza um modo particular de gozar. Agora o sintoma é colocado no centro da clínica e já não se faz a diferença entre o sintoma e o fantasma – é a política da recusa do sentido , a política do real, correlativo ao conceito de falasser – termo que tão bem resolve a dicotomia corpo-significante.
Tomar o sintoma como acontecimento de corpo pressupõe os efeitos do discurso que afeta o corpo e deixa marcas indeléveis. O sujeito sintomatiza, não se reconhece aí; portanto, não se identifica ao sintoma. Esta característica é que faz o corpo falar – propriedade do homem, o falasser – e por outro lado, cria a disfunção, da qual o sujeito pode se queixar. Tratar então do corpo, implica a assunção da história do sujeito, marcada pela contingência.

Fragmento do texto "O SINTHOMA COCA COLA" apresentado na XVI Jornada Clínica da EBP-RJ , 2005

domingo, 28 de junho de 2009

“Traço de espírito”

Maria Cristina de Távora Sparano
ProfªDrªdo Departamento de Filosofia e profª do Mestrado em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí-UFPI


A análise do filme “Um homem bom” (Good) teve como foco a conexão filosofia e psicanálise.
A ação do filme tem como cenário a Alemanha nazista e a ascensão nacionalista dos ideais de Hitler, principalmente em relação à raça ariana e à perseguição aos judeus. A personagem principal, John Halder tem como “traço de espírito” (a witz freudiana, no dizer de Lacan) - o engano – porém, com a particularidade de não causar o riso como no chiste, mas o espanto, pois a ação é dramática e não cômica.
Halder se enreda em situações inesperadas e inusitadas, é tomado por elas, deixando-se levar no limite do patético. Um exemplo disso, no filme, é o tema do romance que Halder escreveu como obra de ficção onde a personagem “por amor” a quem sofre recorre à eutanásia. O elogio a essa prática é aproveitado pela propaganda nazista e Halder ofuscado por ela, cede, ele mesmo é objeto do chiste.
Em filosofia, atitudes como as de Halder são analisadas à luz da razão e é por esse ponto de vista que podem ser criticadas. A racionalidade diz da impossibilidade de nossas ações serem incoerentes, i. é, as ações são o resultado de uma conduta racional e de acordo com princípios do conhecimento. Não posso agir contra aquilo que sei que é o melhor. Essa é uma postura ética e tem na ética aristotélica sua melhor dimensão. Na Ética a Nicômaco, texto de Aristóteles dedicado à Ética, temos os princípios de uma ética finalista que se convencionou chamar de “ética do bem”. No entanto, nesse mesmo texto, mais precisamente no cap. VII, Aristóteles fala de uma situação em que o homem é negligente com o fim de suas ações. Essa situação tem por nome “acrasia”. Ações acráticas são tidas como ações de incontinência moral ou concupiscência. Nos velhos termos de nossas avós são fruto de “fraqueza de vontade”, pois uma vontade forte, um caráter forte, não se deixa se levar pelas situações contingentes da vida, mesmo sendo convenientes ou inevitáveis. Essa conveniência é a isca que suborna um homem “fraco de vontade”. Halder é assim, sabe o que é bom e justo, mas é levado pela situação. Não resta dúvida que se atormenta um pouco, mas não acredita nas evidências, como a perseguição nazista aos judeus. Sua crença é verdadeira. O limite entre a verdade e o engano o leva ao auto-engano. No entanto, isso não o livra da angustia e se refugia, toda vez que é tomado por ela, na fantasia e então, ouve uma música, Mahler...
Freud na conferência 31 (1932) fala da “crise do eu” onde se evidencia a divisão da estrutura psíquica em: eu, super eu e isso. O centro da personalidade psíquica é o eu erguido como anteparo diante da morte e da finitude. O eu é aquela instância que tem como antítese o outro, que pode ser até ele mesmo. Assim, o eu pode ser o observador, mas também o observado quando tomado como objeto. A consciência moral tem essa função observadora e regula as ações do eu, vulgarmente chamado de super eu. Já os instintos do eu, a parte inacessível da personalidade, que não conhece nem o bem nem o mal, nem o justo nem o injusto estão presentes no conflito e na divisão da personalidade, são as forças do isso.
Freud diz que o eu obedece a três senhores: o mundo externo, o super eu ou consciência moral e ao isso. Assim também é Halder, submetido às circunstâncias da história (nazismo), às circunstâncias de sua própria história pessoal, a seus ideais e a seus impulsos mais básicos. Ao tentar agradar aos três senhores, só tem uma saída, a angústia e a fantasia.
A abertura ao inconsciente é o que Lacan chama de “traço de espírito” e que se revela nas ações da personagem quando este se engana diante das situações incontroláveis de sua vida. É uma possibilidade para a assunção do sujeito, do sujeito do inconsciente. Como ensina Freud, na mesma conferência: Wo es war soll ich werden*

* onde o isso era o eu pode advir

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Obama: Mestiço e hermafrodita, tem melhor?

por Jacques-Alain Miller

Como o senhor explica a Obamania ?

Pelo fato de Bush ter se tornado um objeto fóbico. Depois do diabólico Nixon do Watergate, a América já havia se entregado a um bom menino que plantava amendoins, Jimmy Carter. Bush fez muito pior que Nixon, instalou-se, com grande prazer, no papel de "inimigo do gênero humano": recusa do protocolo de Kyoto, desprezo pelas instituições internacionais, política de guerra preventiva, direito de torturar, culto da força, chauvinismo, etc. Cheney, seu vice-presidente, foi apelidado de "Darth Vader". O duo conseguiu fazer dos USA o novo “Império do Mal”. Obama é para os americanos a redenção. A bondade em cartaz. Escuta, consenso, respeito ao outro, às diferenças, aos pobres, aos fracos, “todo mundo: ele é bonito, ele é gentil”.

Sim, mas a fascinação por Obama vai além dos Estados-Unidos, é um fenômeno planetário.

Porque os Estados Unidos é a única potência planetária que resta. A Bushfobia era mundial e inverteu-se logicamente em Obamania universal. Obama é o homem-espelho do Universo, "o homem-microcosmo", como se dizia no Renascimento, aquele que representa o mundo em sua diversidade, que reconcilia, em sua pessoa, as raças e os sexos: ele é africano, é americano, é negro, é branco, é homem, mas, ao mesmo tempo bem na moda, muito manequim, feminino, esguio, fluido, "um gato", o contrário de um McCain, deficiente, confuso, remendado, cabeça quente, uma cara mutilada, ostentando uma virilidade agressiva que já estava pura e simplesmente desgastada. Mestiço e hermafrodita, tem melhor?

Com a Obamania não se está mais na rubrica política: fala-se de “esperança”, evoca-se “milagres”, comparam seu “Yes we can” com o “Não tenham medo” de João-Paulo II.

Com efeito, Obama sabiamente cultivou uma imagem de salvador e de redentor do mundo que ele prometeu – vejam bem – “curar” e “mudar”. Sua genialidade foi não recuar diante da maluquice e ir buscar, sem vergonha nem hesitação, no estoque dos mais antigos mitos, as mais antigas crenças da humanidade. E isso funciona, mesmo na idade da ciência, mesmo quando se crê não mais acreditar nisso. Ao mesmo tempo, sua campanha usava com mestria as mais recentes tecnologias. Representou cientemente o Messias, modernizando o papel com a ajuda de uma retórica completamente hollywoodiana: ele fala como num filme.

Obama é atualmente o homem mais amado do planeta. Mas já se diz que a decepção é inevitável e será à altura desse amor.

Isso é política água com açúcar. Obama fez carreira em Chicago, onde os melosos não duram muito tempo. Tudo indica que ele, pelo menos, não se toma por Obama. Seu primeiro recruta?, seu chapa, um outro de Chicago, Rahm Emanuel, que será seu verdadeiro número 2: um celerado hiper-eficaz, que não livra a cara de ninguém. Ele irá se agitar nos bastidores enquanto, em cena, nosso São João Boca de Ouro nos cantará cantigas de ninar.

Tradução: Vera A. Ribeiro
Revisão: Sérgio Laia.

sábado, 13 de junho de 2009

Comunicado

Comunicamos que a atividade do curso de Introdução à Teoria Lacaniana do dia 27.06.09, será transferida para o dia 04.07.09 às 9h no mesmo local.
Atenciosamente,

Direção

quinta-feira, 28 de maio de 2009


"Amar é dá o que não se tem".
J.Lacan

domingo, 17 de maio de 2009

FRACASSO ESCOLAR: UM GOZO DE NÃO QUERER SABER

Sandra Conrado
Psicanalista,Membro da Escola Brasileira de Psicanálise.

Do ponto de vista da psicanálise, o fracasso escolar, entre as bulimias, anorexias e depressões, está inserido no que chamamos “novos sintomas”. Embora, diferentemente desses sintomas, o fracasso escolar existem há tempos, sua novidade é que hoje ele surge também como uma resposta a esse modelo atual de denunciar o declínio dos ideais na cultura. Para que se estuda hoje? Não é raro se ouvir dos pais: “para concorrer, para ser o melhor, para ter melhor lugar no mercado, etc”.
Se o fracasso escolar está inscrito na ordem de um sintoma é porque ele se coloca, por outro lado, na via de um gozo que incomoda e, por isso, também apela ao analista como aquele que pode produzir uma resposta para seu mal-estar.
É em busca dessa resposta que produzi esse trabalho
Um dia, numa sala de aula de professores de criança, fiz a afirmação de que o fracasso escolar, do ponto de vista psicanalítico, era visto como um gozo de não querer saber. Depois de uma discussão acirrada, cuja polêmica se deu por causa do termo gozo, um professor, muito entusiasmado diz: “acho que não se trata de um gozo, mas de uma tortura. Discordo de você!”. Ora, dizendo a esse professor que estávamos discutindo a mesma coisa, trouxe apenas que, entre os termos gozo e tortura faltava apenas a noção de inconsciente. O gozo é inconsciente, embora, a tortura sobre como mal-estar para a criança, pais, professores, escola e os que encontram-se ao seu redor.
Para falar sobre essa questão vou me subsidiar do campo freudiano e de seu conhecimento do sintoma, do gozo, do saber e da transferência, os quais, sendo lido por Lacan, nos trazem uma imensa contribuição.
Na situação clínica ele aparece muito claramente e não sei se é tão diferente do que temos nas escolas, onde a criança parece ficar um tanto quanto alheia ao referencial do Outro, que na última etapa de seu ensino, Lacan nos mostrou como inexistente.
Ao justificar o conceito de inconsciente na metapsicologia, Freud nos diz que na vida mental do indivíduo há sempre um outro alguém envolvido, Outro que lhe confere o estatuto de uma inferência. Ele diz:
“todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo e que não sei ligar ao resto de minha vida mental, devem ser como se pertencessem a outrem” [1]
Lacan, ao longo do seu ensino, nos fala do Outro de três maneiras: primeiro como absoluto - o Outro concreto. Depois como Outro do desejo – inconsistente; e, na última fase de seu ensino, o Outro inexistente e, por isso, impossível de dar a resposta ao sujeito.
Trago esse três momentos do Outro em Lacan na tentativa de especular a condição da escola. Em que acredita a educação? Entre outros aspectos que os professores ensinem os conteúdos. No ideal da educação o professor precisar ser bem concreto, um Outro absoluto que dê conta de um saber.
Na minha experiência com professores de ensino fundamental, por ocasião da disciplina Psicologia da Aprendizagem num curso de Pedagogia, ouvi várias vezes essa pergunta: “como faço para os meus alunos gostarem de estudar?”. Uma pergunta que não deixa de carregar uma cota de angústia, pois, como poder, do lado do professor que não tem a consistência do saber, resgatar o desejo da ignorância, se a educação não admite em seu meio, sujeitos barrados?
Pelos ensinamentos de Freud e Lacan pude, nessa experiência, tirar muito proveito dela, situando-me dentro da dificuldade do que é o modelo pedagógico, mas, sobretudo do que é a angústia de um professor diante do fracasso escolar, que na visão de muitos deles, é do aluno.
É nesse sentido, de como fazer, que apontamos a inexistência do Outro. Nossa sociedade tem sofrido por isso e a escola como instrumento dela não está isenta desse processo. Há hoje em dia uma descrença. “Se o Outro não existe, em quem vamos acreditar?”
Na verdade o Outro nunca existiu, o que fizemos foi dar uma entidade a ele através de um supereu que almejava ideais em torno de um nome, o Nome-do-Pai como nos ensinou Lacan. Só que hoje, esses ideais mudaram de configuração.
Retomando a questão do professor e a sua angústia diante do fracasso escolar, diria: não é por causa da inconsistência do Outro que o professor não tenha uma resposta. A falta de resposta cria um complicador sério, dando muitas vezes margem ao espontaneismo. A escola é uma estrada, ela tem um fim, um lugar a se chegar e todo processo deve seguir uma direção. O professor pode dar uma resposta, o que é muito diferente de dar o “saber como fazer” ou o “saber como verdade”.
O filme “Sociedade dos Poetas Mortos” nos mostra um exemplo disso. Um professor que exerce certa função para os alunos, no sentido de provocar não só a transferência ao saber particular e o valor do subjetivo, mas que não sustentou as conseqüências dos seus atos. Ele foi expulso da escola, os alunos punidos e, entre tudo isso, uma passagem ao ato: o suicídio.
Na análise, por exemplo, não é porque um sujeito possa se servir da associação livre que seu tratamento deixe de ter uma direção. Se estamos nesse ponto de que o Outro não existe, a psicanálise se posiciona diferente desses encaminhamentos onde se visa modelos espontaneistas. A posição ética da psicanálise é a de que sejamos responsáveis pelo que fazemos. Se frente ao Outro que não existe não temos resposta, insisto: isso é um complicador, na medida em que cada um vá poder se autorizar de si mesmo ao que bem entende. O que a psicanálise diferencia nisso, e ai vai a minha questão, é que a resposta não tenha que ser dita nem com o saber ponto, nem com o espontaneismo, mas, como diz Lacan, com uma suposição.
Se esse “Outro que não existe” não puder ser questionado como lugar de saber suposto, corre-se o risco de um cinismo e isso traz um imenso perigo para qualquer processo. Um sujeito, principalmente uma criança, na posição de construção de saber, não suporta ficar à toa, à deriva. O lugar do professor é fundamental. A questão, nos diz Lacan:
“consiste em saber em que lugar é preciso está para fazer o sujeito sustentar esse saber•””. [2]
Penso que ao longo dos tempos a Pedagogia sempre trabalhou no sentido de encontrar uma saída com a intenção de oferecer formas de um melhor ensino e uma melhor aprendizagem. Ampliam-se conceitos, mudam-se outros. O alvo das tentativas de mudança tem sido geralmente o professor. Nos fins dos anos 60 tiram ele e o seu bureau de cima das plataformas, depois trocam seu nome para o de educador, na tentativa de tirar-lhe a pompa do saber todo. A medicina é chamada para criar as patologias escolares, assim ficaria mais fácil para a escola, pois o problema da insuficiência fica sob a responsabilidade da criança. As Universidades continuam fazendo pesquisas, mais formação, mais informação, mais estudo. Vira e mexe e a dificuldade continua. Hoje, o problema do fracasso escolar bate a porta dos consultórios dos psicanalistas. E há quem diga que bom seria se voltar ao modelo clássico. Outros criticam Vygostky por ter defendido a intervenção pedagógica.
Freud nos diz que há três missões impossíveis: governar, analisar e educar, impossível por que ele tinha a clareza do real do educar. Então, nessa perspectiva, o que a psicanálise pode oferecer como contribuição à Educação, sobretudo quando ela aparece como um fracasso para sustentar o desejo de saber, é um novo posicionamento diante do real do gozo de não querer saber, mas de não querer saber da ignorância.
A questão, dentro do meu ponto de vista, é a desconsideração que a educação tem com relação à ignorância. Para a ignorância a escola faz vista grossa, quando na verdade ela é um elemento real. Cito Lacan
“A ignorância, acabo de dizer, é uma paixão, não é para mim como uma menos valia, tampouco um déficit. É outra coisa, a ignorância está ligada ao saber”[3]
Podemos perguntar até que ponto um professor pode suportar essa condição de ignorância se o Outro da educação vocifera “saiba!” O gozo é isso, é o logotipo de um sujeito alienado, que sem desejo de saber, ignora a ignorância como arma contra o impossível do educar.
Talvez, antes de questionar porque o aluno não aprende, a saída do professor seja a de produzir um saber sobre o seu ato de educar. Ninguém tem a resposta de como fazer, o Outro não existe e é inútil pensar que os programas de qualificação bastam para inserir o professor no cerne da dificuldade da aprendizagem.
Outro aspecto que podemos destacar, como operador da aprendizagem, diz da possibilidade de uma virada nessa transferência que se estabelece entre professsor-aluno, pois ao invés dessa relação imaginária de um que ensina e outro que aprende, a transferência pode ser estabelecida como um ato de criação, onde a palavra não tenha um único sentido, que ela possa ir além, sustentar muitas funções e envolver muitos sentidos.
Na escola, em função da transferência, o professor pode dispor de um manejo onde o aluno possa sair de uma ação não pensada, para outra onde ele possa expressar melhor o seu pensamento. Como diz Vygotsky:
“tornar-se consciente de uma operação mental significa transformá-la do plano da ação para o pano da linguagem, isto é, recriá-la na imaginação de modo que possa ser expressa em palavras” [4]
A ação impulsiva de uma criança na escola não é sem intenções. O que ela deseja nessa intenção é saber de uma forma melhor o que está fazendo, só que num espaço mais elaborado (Mrech, 1980). Fracassar na escola pode ser uma forma de manifestar a falta de compreensão da ação dos outros sobre ela e nisso produzir um sofrimento, uma dificuldade, um sintoma especificamente escolar.
O fracasso não é da criança, nem do professor, ou do diretor em si, mas da estrutura escolar. A sua causa é da ordem de uma conjuntura onde todos nós estamos inseridos – a escola na civilização atual – naquilo que se tem de mais real: o gozo de não querer saber do desejo, o gozo de não querer saber da ignorância, da douta ignorância, lembrando aqui, mais uma vez, Lacan. Será que o fracasso não é uma denúncia de que diante da inexistência do Outro, há que haver uma nova invenção para barrar o gozo imaginário do mestre, que sem desejo, comanda o devoramento ao saber tudo para ser feliz e realizado? A ansiedade, a angústia, a preocupação de aprender, sintoma do estudante, cedeu lugar às depressões e ao inominável - o aprender parece sem sentido e sem lugar. O efeito disso é um gozo superegóico, devorador, que na falta de um referencial, produz atualmente um alheiamento, quero dizer, produz a falta de algo com valor significante que não esteja pronto, que não seja dado, para que simbolizações ou como nos diz Freud, para que sublimações sejam feitas.
Freud nos diz:
“Quando os educadores se familiarizarem com as descobertas da psicanálise, será mais fácil se reconciliarem com certos fatos do desenvolvimento infantil e, entre outras coisas, não correrão o risco de superestimar a importância das ulsões socialmente imprestáveis ou perversas que surgem nas crianças”[5]
É óbvio que um professor não vai poder dar conta de alguns predicados dos psicanalistas, mas por outro lado ele pode se dá ao privilégio de ensinar com perdas e nisso proporcionar um resto, um lugar vazio apto ao desejo, para que aí possa se operar uma transferência ao saber e consequentemente à aprendizagem.
O psicanalista em meio a toda essa estrutura deve apostar no professor como:
Primeiro: agente de sustentação e de criação para garantir, no sujeito infantil, a clareza de que o que fracassa não é ele, mas o que dele se pretenda atender aos ideais devoradores dessa cultura que exige a perfeição;
Segundo: agente do desejo de saber para que o aluno possa dizer: “você é aquele que me transmite, mas que ao fazer isso, me surpreende e me conduz ao novo”.

Referências Bibliográfica:

Barros, R. Conferência “O Inconsciente Hoje” , João Pessoa, março/2000
Freud, S – Artigos sobre a Metapsicologia, vol. XIV, Imago, Rio de Janeiro,, 1980
_____- O interesse Cientifico da Psicanálise, vol. XII, Imago, Rio de Janeiro, 1980
Lacan, J. - “O Saber Psicanalítico”, Seminário Mimeografado
_____ - ”Radiuofonia” (CEF do Recife), Seminário Mimeografado
Teixeira Lopes, E.M (org) –“A Psicanálise Escuta a Educação”, Autêntica, Belo Horizonte, 1998
Mrech, L. M – “Psicanálise Educação – Novos Operadores de Leitura”, Pioneira, São Paulo, 1999
1- Freud, S – Artigos sobre a Metapsicologia, vol. VIX, p. 195
2 – Lacan, J – O Saber Psicanalítico, seminário inédito, p. 26
[3] Idem, p. 10
[4] APUD Leny Magalhães Mrech. Psicanálise e Educação. Novos Operadores de leitura p. 65
[5] Freud, S – O Interesse da Psicanálise para as Ciências Não-Psicológicas, vol. XIII, p. 225

terça-feira, 12 de maio de 2009

dEsEnrEdoS



Conheçam a revista eletrônica dEsEnrEdoS. Trata-se, dentre outras coisas, de uma revista de cultura e literatura. Fiquem à vontade para comentar, criticar, sugerir, participar...

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quarta-feira, 6 de maio de 2009


" O desejo do analista não é da ordem do fazer. O desejo do analista não é desejo de cura. A posição do analista é de desapego". (J.A.Miller)

sábado, 2 de maio de 2009

PSICANÁLISE E LITERATURA: Dom Quixote de La Mancha, o Cavaleiro da Triste Figura.

Pensar no engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha pela via da psicanálise, uma figura que em si não possui humor, mas cuja seriedade oferece-nos um prazer humorístico, remete originalmente a uma figura cômica, uma criança grande. Suas fantasias originárias dos livros de cavalaria se sobrepõem à realidade. Sabe-se que o autor não tinha maiores pretensões acerca dele e que essa criação gradualmente cresceu além das primeiras intenções do criador. Mas depois que o autor equipou essa figura ridícula com a mais profunda sabedoria e os mais nobres propósitos, tornando-o representação simbólica de um idealismo que acredita na realização de seus objetivos, que toma suas promessas literalmente, essa figura deixa de ter efeito cômico.

Nessa perspectiva há um dito de D. Quixote: “ Sei perfeitamente que estou enfeitiçado e isso basta para me tranqüilizar a consciência” (p. 72). Uma reflexão acerca do mecanismo do humor reproduz-se como fórmula análoga àquelas referentes ao prazer cômico e aos chistes. Entretanto, o prazer nos chistes parece proceder de uma economia relativa à inibição, sendo que o prazer no cômico, uma economia relativa à ideação (catexia) e o prazer no humor está relacionado ao sentimento (afeto). Enquanto que o chiste é uma contribuição feita ao cômico pelo inconsciente, o humor seria a contribuição feita ao cômico pela intervenção do supereu. Quando o prazer humorístico alcança uma intensidade comparável ao chiste, o supereu está repudiando a realidade e servindo a uma ilusão.

No que se refere ao aspecto topológico Freud define a metapsicologia pela síntese de três pontos de vista: Dinâmico, Tópico e Econômico – entendendo por este último “ a tentativa de acompanhar o destino das quantidades de excitação (energia psíquica) e de chegar a uma estimativa relativa de sua grandeza”. O ponto de vista econômico consiste em considerar os investimentos psíquicos em sua mobilidade, nas variações da sua intensidade, nas oposições que entre eles se estabelecem. Para Freud a descrição completa de um processo psíquico somente é possível com a apreciação da economia dos investimentos. Uma explicação dinâmica da atitude humorística consiste em retirar a ênfase psíquica de seu eu, transpondo-a para o supereu. Os motivos dessa exigência do pensamento freudiano encontram-se, por um lado, num espírito científico e num aparelho conceitual inteiramente impregnados de noções energéticas e por outro, na experiência clínica, um certo número de dados que, para ele só uma linguagem econômica pode explicar. O que Freud entende por economia libidinal é a circulação de valor que opera no interior do aparelho psíquico, a maior parte das vezes num desconhecimento que impede o sujeito de perceber, a satisfação sexual no sofrimento do sintoma. Deste modo, a hipótese econômica está constantemente presente na teoria freudiana, na qual a idéia princeps é a de aparelho psíquico, cuja função é manter no nível mais baixo possível, a energia que ali circula. Este aparelho executa um certo trabalho descrito por Freud de diversas maneiras: transformação da energia livre em energia ligada, adiamento da descarga de afeto, elaboração psíquica das excitações. Esta elaboração pressupõe a distinção entre representação e quantum de afeto ou soma de excitação, esta susceptível de circular ao longo de cadeias associativas, de investir determinada representação. Daí o aspecto econômico de que se revestem as noções de condensação (metáfora), um dos modos essenciais do funcionamento dos processos inconscientes.

O lingüista Roman Jakobson chegou a relacionar os mecanismos inconsciente descritos por Freud com os processos retóricos da metáfora e metonímia, considerados os dois pólos fundamentais de toda linguagem. Assim relacionou o deslocamento com a metonímia, onde a ligação de contigüidade é que está em causa, enquanto que o simbolismo corresponderia à dimensão metafórica, onde reina a associação por semelhança.

Vale enunciar outro momento do livro:“ Considerou Sancho que, sendo louco o seu patrão, e de uma loucura que fazia tomar uma coisa pela outra” (p.94). Uma representação única representa por si só várias cadeias associativas, em cuja interseção ela se encontra. Do ponto de vista econômico, é investida das energias, que ligadas a estas diferentes cadeias, se adicionam nela. A condensação (processo primário) é uma característica do pensamento inconsciente (efeito de censura). Como no deslocamento, a condensação é para Freud um processo que encontra seu fundamento na hipótese econômica. Determinadas imagens, particularmente no sonho, só adquirem vivacidade na medida em que, produtos da condensação estão fortemente investidas. O deslocamento refere-se à hipótese econômica de uma energia de investimento suscetível de se desligar das representações e de deslizar por caminhos associativos. Esse fenômeno é visível na análise do sonho,na formação do inconsciente. “ A estranha loucura que o acometia, apenas quando se tratava de assuntos de cavalaria, a partir de inúmeros livros que lera”. (p.74). O deslocamento tem função defensiva evidente: numa fobia, por exemplo, sobre um objeto fóbico permite localizar, circunscrever a angústia.

Jacques Lacan, retomando e desenvolvendo as indicações de Jakobson assimila o deslocamento à metonímia e a condensação à metáfora. O desejo humano sendo estruturado pelas leis do inconsciente e constituído como metonímia.

“ Que mal fiz eu em lê-los, crê-los e imitá-los? Quem está enfeitiçado como eu, não tem a liberdade para fazer de sua pessoa o que quiser (p. 74). As palavras de Quixote demonstram a sobreposição da fantasia à realidade, sendo quixotismo, uma expressão utilizada para quem toma esta postura. A fantasia, segundo Freud é um roteiro imaginário em que o sujeito está presente e representa, de maneira deformada pelos processos defensivos, a realização de um desejo e, em última análise, de um desejo inconsciente.

No texto “ Formulação sobre os dois princípios do princípio mental “ (1911), Freud opõe ao mundo interior, que tende para a satisfação pela ilusão, um mundo exterior que impõe progressivamente ao sujeito, por intermédio do sistema perceptivo, o princípio da realidade.

“ Cavaleiro andante, generoso, que ao invés de ficar só na corte imaginando aventuras, enfrenta o sol, o frio, as inclemências do céu e nada teme, nem gigante, cuja cabeça toca as nuvens.”(p.93). A importância da fantasia na etiologia das neuroses, cenas infantis patogênicas encontradas no decorrer da análise, levam Freud a percebê-la de forma diversa do que anteriormente fora mencionado, na medida em que a realidade aparentemente material dessas cenas não passava de “realidade psíquica”.

“ Já te disse que os encantos mudam umas coisas em outras, dando-lhes aparência diversa da verdadeira” (p. 130). No sentido psicanalítico a “ realidade psíquica” é uma forma especial que não pode ser confundida com a “ realidade material”. No texto inaugural da psicanálise, “ A interpretação dos sonhos” (1900), Freud analisa a fantasia e mostra que a sua estrutura é comparável à do sonho. A fantasia está na mais estreita relação com o desejo, na medida em que o desejo tem a sua origem e o seu modelo na vivência de satisfação. Na medida em que o desejo é articulado à fantasia, também é lugar de operações defensivas, dando oportunidades de defesa mais primitivos como: retorno sobre a pessoa (introjeção), a inversão de uma pulsão em seu contrário, a negação e a projeção.

Em “Conversações Clínicas com Miller” (2008), há o relato de um caso no qual há a construção do mito de si próprio como “o cavaleiro da armadura enferrujada”, onde o sujeito experimenta um ciúme patológico em tom delirante. A armadura enferrujada como uma metáfora da dificuldade desse sujeito, que na identificação com o pai denomina-se “ eu sou infiel”, caracterizando um ponto de basta enquanto metáfora paterna. Dom Quixote pela melancolia que lhe causara a tristeza prolongada, fora vencido. À liberdade de Sancho, sobrepõe-se a solidão do fidalgo, que perdendo o sentido da própria existência, é tragado por sua melancolia (p.217). Miller repensa a figura de Dom Quixote na clínica, com um possível diagnóstico de uma psicose extraordinária, onde no final recupera a razão e tem que procurar um sentido para sua existência. Não pensando enquanto cura, porém como algo que permite ao sujeito dar sentidos à própria vida.

“ D. Quixote queria experimentar as asperezas do mundo e assim conquistar a imortalidade” (p.137). Nesta obra de ficção, fundadora da literatura moderna, na qual o personagem conta sua própria estória, percebe-se Quixote desejando amar, Sancho enriquecer (p.132). Pensar a psicanálise pela via das artes, em especial através da literatura, permite uma aproximação com o quotidiano de nossas vivências, bem como interlocução com outros campos do saber, possibilitando um diálogo mais amplo acerca de conceitos psicanalíticos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CERVANTES, Miguel. Dom Quixote – Tradução Ferreira Gullar. Ed. Revan, R.J.
FREUD, Sigmund. Edição Standard das obras completas. Ed. Imago, RJ.
- A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901) Vol. VI
- Os Chistes e sua relação com o inconsciente (1905). Vol. VIII
- “Escritores Criativos e devaneios” (1907). Vol. IX
- O Ego e o ID (1923). Vol. XIX
- “O Humor” (1927). Vol XXI

MILLER, Jacques-Alain
Efeitos Terapêuticos Rápidos em Psicanálise: Conversação Clínica com Jacques Alain Miller em Barcelona. Belo Horizonte: EBP - Scriptum Livros, 2008.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

O CARNAVAL DOS MEDOS

Jacques-Alain Miller

Le Point: Pesticidas, poluição do ar, antenas retransmissoras, telefones celulares, reaquecimento climático, recessão....Por que, em nossas sociedades ocidentais, o medo parece progredir mais que alhures ?

Jacques-Alain Miller: Porque são as mais « tecnicizadas ». O sociólogo Ulrich Beck o mostrou, a técnica dá à luz uma « sociedade do risco » : quando você se desloca a cavalo, tudo depende de sua própria habilidade e de seu conhecimento do animal em questão ; quando você toma um avião, sua segurança está fora de você, pois sua vida depende de uma rede de sistemas complexos nos quais você deve confiar a priori. Mas a sociedade do risco se torna uma sociedade do medo desde que a ciência cesse de inspirar confiança. É o caso dos dias de hoje : cada um está intimamente persuadido de que o grande « sujeito suposto saber » não sabe tudo, que ele é furado como um gruyère e que avança e produz às cegas.

Nossas sociedades só aceitam o risco sob condição de quantificá-lo : a gente se pergunta quantos cânceres serão provocados pelos pesticidas ou pelos telefones celulares....

Com efeito. O sujeito suposto saber tem agora o desafio de prever o futuro. Amanhã não se fará mais apenas o diagnóstico das doenças que vocês tiverem, elas lhes serão preditas a partir da decodificação do genoma de vocês. Disso decorre a emergência de novos medos, inéditos, puros produtos do cálculo estatístico.

Nossa saúde e, em particular, nossa alimentação, é o que mais nos preocupa. Como o senhor explica esse medo?

É o que resulta do « pôr-se em segurança » como atitude fundamental do homem contemporâneo. Cada um é para si mesmo seu bem mais precioso. Cada um se relaciona consigo mesmo como com um objeto, com um ter, não com um ser. O impasse é que a saúde é perfeitamente aleatória. Não há ciência da saúde, dizia Canguilhem, o epistemólogo da biologia. A saúde é um mito.

Fala-se de indivíduos medrosos, podemos também falar de sociedades medrosas ?

O medo é a paixão das sociedades de mercado. Há sociedades na quais se mata ou nos matamos por um nada, nas quais a vida conta pouco aos olhos da vingança e em que domina o desdém para com a morte. Uma vez que o comércio apagou o sentido do sagrado e o ponto de honra, qual é único soberano bem que lhes resta? É o bem- estar. Doravante, o que domina é o desejo de cada um de se pôr ao abrigo, em segurança. A insegurança se torna o mal absoluto. O culto da felicidade engendra o reino do medo. Não mais se compreende a morte, recusa-se inclusive o envelhecimento, sonha-se em fazer a eternidade descer à terra e em benefício do indivíduo.

O homem brinca de se amedrontar?

Sim, esse carnaval dos medos tem certamente uma dimensão lúdica : um medo enxota o outro, há medos que estão na moda, inventa-se medos, o público pede medo. Mas o que não é uma brincadeira, é, aquém desses medos multiformes e sempre renascentes, o que eles expressam e camuflam a um só tempo : uma angústia social difusa cujo objeto está velado.

E de onde provém essa angústia ?

Da tecnização generalizada da existência. Doravante, ela polui as próprias fontes da vida, está em condições de remanejar a natureza da espécie. Suspeitamos que o avanço irresistível da ciência esteja, sem o saber, a serviço da pulsão de morte. O medo da bomba atômica não é mais o que era, porém, o último de nossos medos midiáticos datados é mais sutil, insinua-se no mais íntimo : recessão alarmante da produção espermática, crescimento indevido dos cânceres do testículo e das malformações masculinas. Pois bem, aí está o objeto escondido da angústia. SOS – falo !

Tradução : Vera A. Ribeiro

sexta-feira, 10 de abril de 2009

COMUNICADO

A diretoria do Círculo de Estudo Psicanalítico do Piauí - CEPP comunica que em virtude das inúmeras solicitações reabre as inscrições para o cargo de ADERENTE a todos que queiram se vincular e trabalhar a psicanálise.
Para tanto, os interessados devem escrever uma carta endereçada a diretoria do CEPP, sobre o seu desejo pela psicanálise, bem como, o seu percurso com a mesma. O endereço eletrônico é: cepp.teresina@gmail.com
Informo que uma vez admitidos no CEPP os Aderentes contribuem mensalmente com a quantia de R$ 50,00. Acrescento também que os Aderentes têm o direito de participar, sem ônus, dos cursos promovidos pelos Membros.

domingo, 5 de abril de 2009

Sobre Educação

Carlange de Castro
Psicanalista,Especialista em Psicologia Clinica,Correspondente da EBP, Diretora do CEPP

A educação adquire o relevo de sua época, mudando conforme o tempo. No mundo globalizado, a educação ainda tateia seu lugar. Muito diferente dos modelos tradicionais, na situação moderna, como argumenta Forbes, o que ocorre é que saímos de uma sociedade vertical, hierárquica, para uma sociedade horizontal, em que a lei está em baixa, e tentar retomá-la é antiquado, “traumatiza”, e isso se apresenta com clareza na educação. A estrutura familiar atual mostra-se com uma nova configuração em que há uma queda do referencial masculino e da figura paterna. Com relação à educação de crianças e adolescentes, tornou-se banal presenciar filhos determinando e comandando a dinâmica familiar. Alunos ameaçando professores, diretores, comportamentos que fogem ao chamado bom senso, mas que se configuram como lugar comum. Pais que detestam dizer “não”, abdicando da razão em defesa do filho, transmitindo que tudo se explica, na compreensão ilimitada, reforçando um comportamento irresponsável na ascensão da vida adulta.

Freud postulou o antigo poder patriarcal, mas é Lacan que coloca o pai no contexto de função, sendo uma figura essencialmente simbólica que separaria a criança da mãe, instaurando a lei que corta os laços incestuosos que a une aos filhos. A criança, pela própria dependência infantil, faz Uno com a mãe. Essa relação apresenta-se para a mãe e filho como algo estritamente prazeroso, mas, para que o desenvolvimento desse filho possa ocorrer sem prejuízo, se faz necessária a separação, que é bastante difícil para a mãe. Somente o limite imposto pela função paterna à voracidade materna retira a criança da dependência da mãe, possibilitando ao filho uma realidade ordenada por obrigações e proibições. Ora, é através desse dispositivo que a criança vai assimilar os registros sociais e poder entrar no circuito educacional, pois educação não é sinônimo de escola ou pedagogia, mas refere-se ao meio social em que o sujeito está inserido e a forma como ele se articula a esse meio. É através da função paterna que a criança entra nos padrões das leis, articulando desejo e lei, fatores que a sociedade tende a manter como disjuntas. Ser pai é essencialmente ser responsável.

A flexibilidade encontrada na educação, bem como, no mundo moderno, reforçam um imaginário que tudo pode apontando ao um real de excesso, que apresenta como contraponto o mal-estar cotidiano gerando angústia e sintomas, situação recorrente que busca concordância nos remédios, psicoterapias e escolas.

Por associar educação e escola, muitas famílias têm deslocado essa função para uma instituição que não pode exercer a árdua tarefa de educar, já que a doutrina pedagógica articula educação à aprendizagem, postulando um saber completo que busca desenfreadamente respostas, numa direção que aponta no sentido do não saber fazer. Pensar no processo educativo é articulá-lo ao plano da subjetividade, e a psicanálise avança nesse sentido quando coloca a questão da verdade do sujeito, perguntando pelo seu desejo que a própria educação recusa insistindo em apontar a questão do sujeito da verdade.

Educar é educar as pulsões, logo observamos que tal tarefa não tem garantias, já que no inconsciente algo sempre escapa impossibilitando o seu alcance, nos deixando enquanto resto a linguagem e a tentativa de comunicação, pois a mesma é atravessada o tempo todo pelo mal-entendido, por aquilo que não faz sentido. Assim, seu desafio maior é suportar o risco que é da ordem do não explicável dentro de um processo que anseia explicação para tudo.

Referências Bibliográficas:
Freud Sigmund, Obras psicológicas completas, vol: VII, edição Standard, Rio de Janeiro: Imago, 1996
Freud Sigmund, Obras psicológicas completas, vol: XXII, edição Standard, Rio de Janeiro: Imago, 1996
Jorge Forbes: Silêncio das Gerações
http://www.jorgeforbes.com.br/br/contents.asp?s=23&i=74
Mezan, Renato: Freud, Pensador da Cultura

segunda-feira, 30 de março de 2009

Politicas do Sinthoma e o desejo do analista

Iordan Gurgel, Psiquiatra; Analista Membro da Associação Mundial de Psicanálise; Membro e Presidente da Escola Brasileira de Psicanálise

I - Política
Política é um significante que se refere mais ao universal e está sustentado nos ideais, sistemas e utopias, em contraponto ao particular da clínica e mais ainda do sujeito. A questão inicial é como pensar uma política do sinthoma?
Esta questão está, não só no âmago da experiência analítica – é a política da direção do tratamento, função do desejo do analista – mas também se constitui como determinante na diferença entre as orientações dos grupos analíticos. Por exemplo, a política da orientação lacaniana do final de análise como identificação ao sintoma se opõe à identificação ao analista da orientação da IPA. Mas, também nos diferenciamos da política da ciência, do discurso do mestre e seu consentâneo, o capitalista, que opera com o fantasma, com o fetiche, e enfrentamos o senso comum, que diz existir coisas obscuras que devem ser esclarecidas.
A posição política de Lacan, diz Miller , era ser contra tudo que é a favor, porque ...a política procede por identificação, ela manipula significantes mestres... para manipular o sujeito. Poderiamos então deduzir que a política vai contra a psicanálise, que busca a queda das identificações do sujeito, esvaziar o gozo do sintoma e atravessar a fantasia que impulsionava seu destino. Mas, paradoxalmente o inconsciente é a política! disse Lacan para chamar atenção da estrutura do inconsciente: trans-individual, sintonizada com o discurso do Outro e dessubstanciada, que mais se assemelha com uma relação, ou com algo que se produz em uma relação, assim como na política.
Lacan, na Direção do tratamento, diz que o analista é menos livre em sua estratégia do que em sua tática e mais: ele é menos livre ainda no que domina a estratégia e a tática, isto é, a política. Formular uma ética que elevasse o desejo do analista ao vértice da experiência era a consigna deste texto que predominou em toda obra e clínica de Lacan. A força deste instrumento na direção do tratamento procede de tudo o que o analista não deve fazer e consiste em não se servir da força que lhe dá a situação de linguagem instituída pela demanda do sujeito que sofre . Lacan foi enfático: é o desejo do analista que mantém a direção da análise; ele dirige a cura e não o paciente, condição necessária para estabelecer uma política do sinthoma.
Anos depois, em A Terceira, Lacan reafirma : o poder é sempre um poder ligado à palavra...a política repousa sobre o fato de que todo mundo fica demasiado contente em ter alguém que lhe diga: em frente, marche – aliás sem se importar para onde. No discurso do mestre há alguém que faz semblante de comandar e isto é da estrutura mesma deste discurso em oposição ao discurso do analista.

II – Política do Sintoma

Toda a produção humana (cultura, religião, ciência), pode ser entendida a partir da falha estrutural do simbólico em relação ao real. A política se revela como uma modalidade particular de modalizar o encontro com o real . Uma outra maneira de pensá-la é como a possibilidade de poder se convier com o diferente e para tanto é necessário que este diferente mude de posição, o que nos aproxima da concepção do sintoma com o qual devemos conviver em uma parceria infinita e que não nos faça sofrer como dantes.
A importância da psicanálise está em intervir, desde a subjetividade do sujeito, naquilo que lhe faz sintoma a partir da vida cotidiana. O sintoma é o que denuncia que há o real, que nem tudo é construído e programado, além de ser o elemento verdadeiramente clínico, considerando que as formações do inconsciente: sonho, lapso, chiste, ato falho não são motivos de tratamento . Em um primeiro momento ele é reconhecido, endereçado ao Outro; é um dado elemento da realidade social compartilhada. Lacan o define como um fato – dado fundamental da experiência analítica – e tomá-lo como fato é colocá-lo no âmbito da política.
O acontecimento Freud introduziu o reconhecimento das pulsões e a questão quanto à satisfação: o mal-estar, as doenças e os sintomas, que são substitutos da satisfação das pulsões. Em conseqüência, se o sintoma é uma satisfação disfarçada, é possível decifrá-lo e esta era a política freudiana para o sintoma, que esbarrou no rochedo da castração. É, para Freud, a condição de ser sobredeterminado e ocultar uma verdade, que o sintoma estaria fadado a sempre perseguir um sentido e escapar dele, acrescentou Lacan.
Assim, a política do sintoma, fundante da clínica psicanalítica, é sua inserção clínica do sentido gozado (que está na fala), que é decifrável, enquanto formação propriamente semântica. A aparente resolução deste sintoma esbarra na constatação que mesmo quando decifrado ele persiste o que nos remete a uma nova formulação de sua política.

III – Políticas do Sinthoma:

Um passo a mais é considerar a política do sinthoma, que implica um avanço conceitual a partir do final do ensino de Lacan, que contempla a conjunção do atravessamento do fantasma à identificação ao sintoma, mas principalmente a separação entre o real e o fora sentido. Esta condição é de uma relevância extraordinária, porque nos ajuda a pensar a relação entre a psicanálise pura e aplicada, demonstrando mais aproximações que separações e afastando-as definitivamente das psicoterapias . A psicanálise pura é como deveria ser – se conclui com o Passe – e a aplicada é tal como é. Esta é a psicanálise aplicada ao sintoma que é reduzido de gozo, mas não se atinge o fantasma para atravessa-lo . A psicanálise pura é levada até suas últimas conseqüências, até um ponto de detenção que se apresenta como algo particular a cada sujeito que passou pela experiência: um despertar, um entusiasmo, uma iluminação, uma verdade, um encontro, enfim um ponto de real, uma suposição de saber no real .
Esta nova concepção política é tributária da enunciação de Lacan (em Joyce, o sintoma): o gozo próprio ao sintoma exclui o sentido – isto é demonstrado na experiência analítica quando se verifica a impotência da interpretação. O sintoma não é uma metáfora, mas funciona como um ponto de basta quanto a metonímia do desejo – ele faz barreira ao desejo. Mesmo decifrado o sintoma subsiste – esta é a política própria ao sintoma, persistir. A política do sinthoma não inclui a clínica apenas como tudo o que se diz em uma análise, e sim como o impossível de dizer, de suportar e se baseia no modelo obsessivo do sintoma – é fundamentalmente real já que resiste ao dizer. É sintoma não porque tem uma significação e sim porque se repete . Algo se resolve do sintoma não porque se encontrou uma significação última, mas porque se encontrou o impossível de se explicar.
No seminário O sinthoma, a teoria do nó borromeu é reforçada com a introdução do sinthoma como o quarto nó que enlaça o RSI (e sempre ameaça desfazer-se). Agora o sinthoma é colocado no centro da clínica e já não se faz a diferença entre sintoma e fantasma – é a política da recusa do sentido que aponta para o real, correlativo ao conceito de falasser .
Dizer política do sinthoma e associá-la à psicanálise pura extrapola o campo da política institucional para tomá-la no mais íntimo da relação analítica e fazê-la tributária do desejo do analista. Trata-se de uma política da direção do tratamento e suas conseqüências, que ultrapassa a lógica edípica, passa pela operação redução, que permite ir além da interpretação, põe um limite ao sentido, e nos defronta com a passagem do inconsciente transferencial para o real .

IV - Desejo do Analista:

A passagem do sintoma para sinthoma necessita de um operador, o desejo do analista. Em relação a psicanálise pura a política é esta transformação. Podemos pensar o desejo do analista enquanto função analítica que estabelece a política da direção da cura e vai de encontro a rebeldia do sintoma. É um desejo que não se sustenta no fantasma – este já foi atravessado e incorporado no sinthoma – tampouco está impregnado do gozo do sintoma, e sim modulado por um saber fazer aí; é o desejo de separar o sujeito de suas identificações, dos significantes amos que o coletiviza.
Um exemplo clínico, a partir de um relato de Passe , nos apresenta um sujeito que vivia em dificuldades na sua relação com o grupo analítico – não estar a altura de suas tarefas. O surgimento do desejo do analista a partir de uma intervenção do analista, dentro de um contexto político-sintomático, levou-o a questionar se isso era possível de demonstrar e transmitir. Ao perceber que o trabalho analítico produziu uma mudança em sua posição subjetiva, antes sustentada pelo horror ao saber, deu um passo adiante e, ao considerar-se como exceção no grupo, abriu-lhe as portas para defrontar-se com o Outro barrado e aparecesse a perda de gozo que sustentava sua posição no grupo. O que apresentamos como ilustrativo é o que foi destacado pelo sujeito: pôr o desejo do analista – em sua vertente clínica e epistêmica – à prova e trabalhar pela Escola, constituindo-se assim, no caso, uma passagem da política-sintoma para a Escola-Sinthoma.
Para se instituir uma política do sinthoma é necessário verificar sua aplicabilidade considerando os princípios do ato analítico :
- O analista não se identifica com nenhum dos papéis que o analisante queira que ele represente, tampouco com nenhum ideal da civilização. Nenhum lugar pode lhe ser atribuído a não ser o da questão sobre o desejo.
- A decifração do sentido nas trocas entre analisante e analista não é só o que está em jogo.
- Quando o analisante fala, ele quer, para além do sentido daquilo que diz, alcançar no Outro o parceiro de suas expectativas, crenças e desejos. Ele visa o parceiro de sua fantasia. O psicanalista esclarecido pela experiência sobre a natureza de sua própria fantasia, leva isso em conta. Ele se abstém de agir em nome dessa fantasia.
- Não há tratamento standard. A experiência da psicanálise tem apenas uma regularidade: a da originalidade do cenário através do qual se manifesta a singularidade subjetiva e a produção de sua singularidade, sua exceção.
- A melhor definição da duração do tratamento é «sob medida». Um tratamento é levado adiante até que o analisante esteja suficientemente satisfeito com aquilo do qual fez a experiência. Visa-se não a aplicação de uma norma, mas sim um ajuste do sujeito consigo mesmo.
- A relação entre os sexos não tem uma solução que possa ser «para todos». Nesse sentido, ela permanece marcada com o selo do incurável, nela, sempre haverá algo que falha. O sexo, no ser falante, decorre do «não-todo».
- É no passe que o analista atesta a superação de seus impasses.
Se na política do social é o povo que sempre paga os gastos do acontecimento político para a política do sinthoma, no âmbito da psicanálise pura, o analista paga com seu desejo – renúncia ao desejo de poder, que lhe impõe não se utilizar dos meios que ele dispõe, a sugestão e a identificação – ao ser causado e trabalhar pela causa analítica, implicando-se, não só com a clínica, mas também com o Outro social e o compromisso com sua época.
Estamos na política, seja na formação do analista, na direção do tratamento e suas conseqüências: a psicanálise aplicada, a psicanálise pura e o Passe. Mas, especialmente, la política del analista es la del sinthoma, eso que le permite situarse más allá del ideal unificante y de la norma adaptativa que el Otro quiere implantar .

Citado por Miller em O.Lacaniana 40, p. 11.
Conforme Xavier Esqué, Una política del síntoma. XI Jornadas Castellano-Leonesas de Psicoanalisis.

terça-feira, 24 de março de 2009

Considerações acerca do III Colóquio: Psicanálise e Sintoma

Carlange de Castro
É psicanalista, especialista em psicologia clínica
e diretora do CEPP.

Caminhar. Foi essa a palavra que surgiu durante o III Colóquio: Psicanálise e Sintoma que aconteceu nos dias 20 e 21 de março como abertura das atividades do CEPP. Para esse momento esteve conosco Iordan Gurgel, psiquiatra, analista e presidente da Escola Brasileira de Psicanálise.

Iordan Gurgel, no primeiro dia, faz uma contextualização da psicanálise e a diferença entre o saber universitário (um saber completo e articulado a um mestre), e o saber psicanalítico, que é inerente ao sujeito.

Durante o seminário, Psicanálise e Sintoma, Iordan pontua o sintoma como uma formação do inconsciente, que a partir do acumulo de significantes e sentidos, vai estruturando-o na tentativa de tamponar uma falta que é estruturante. Para o sujeito, o sintoma se apresenta como enigma, uma mensagem a ser cifrada, impossibilitando o sujeito de dizer algo sobre seu sintoma, provocando mal-estar. Iordan articula o saber médico com o da psicanálise afirmando que ambos não possuem a cura dos sintomas, o que existe é uma forma de tratar que depende mais do sujeito que do analista. A responsabilização do sintoma é do sujeito e não da medicação, sendo “a análise uma possibilidade de esvaziar o sintoma de gozo”. Desta forma, o sintoma é a via de entrada em uma análise. Não apenas um sintoma de ordem clinica, mas algo que provoque no sujeito um desconforto.

Na direção do tratamento, a psicanálise vai trabalhar como operativo que cause no sujeito o desejo de saber, modificando o estatuto do saber direcionado ao outro para direcionado a si, visando que o sujeito possa dar conta da relação particular do seu desejo.

Comprometido com esse ideal, o CEPP segue caminhando no campo da psicanálise, articulando-se a vários saberes, construindo o caminho para nossos próximos encontros.

domingo, 8 de março de 2009

Entrevista de Jacques-Alain Miller

Psychologies Magazine, outubro 2008, n° 278
Entrevista realizada por Hanna Waar

Psychologies: A psicanálise ensina alguma coisa sobre o amor?

Jacques-Alain Miller: Muito, pois é uma experiência cuja fonte é o amor. Trata-se desse amor automático, e freqüentemente inconsciente, que o analisando dirige ao analista e que se chama transferência. É um amor fictício, mas é do mesmo estofo que o amor verdadeiro. Ele atualiza sua mecânica: o amor se dirige àquele que a senhora pensa que conhece sua verdade verdadeira. Porém, o amor permite imaginar que essa verdade será amável, agradável, enquanto ela é, de fato, difícil de suportar.

P.: Então, o que é amar verdadeiramente?

J-A Miller: Amar verdadeiramente alguém é acreditar que, ao amá-lo, se alcançará a uma verdade sobre si. Ama-se aquele ou aquela que conserva a resposta, ou uma resposta, à nossa questão "Quem sou eu?".

P.: Por que alguns sabem amar e outros não?

J-A Miller: Alguns sabem provocar o amor no outro, os serial lovers - se posso dizer - homens e mulheres. Eles sabem quais botões apertar para se fazer amar. Porém, não necessariamente amam, mais brincam de gato e rato com suas presas. Para amar, é necessário confessar sua falta e reconhecer que se tem necessidade do outro, que ele lhe falta. Os que crêem ser completos sozinhos, ou querem ser, não sabem amar. E, às vezes, o constatam dolorosamente. Manipulam, mexem os pauzinhos, mas do amor não conhecem nem o risco, nem as delícias.

P.: "Ser completo sozinho”: só um homem pode acreditar nisso...

J-A Miller: Acertou! "Amar, dizia Lacan, é dar o que não se tem". O que quer dizer: amar é reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o que se possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que vai além de si mesmo. Para isso, é preciso se assegurar de sua falta, de sua "castração", como dizia Freud. E isso é essencialmente feminino. Só se ama verdadeiramente a partir de uma posição feminina. Amar feminiza. É por isso que o amor é sempre um pouco cômico em um homem. Porém, se ele se deixa intimidar pelo ridículo, é que, na realidade, não está seguro de sua virilidade.

P.: Amar seria mais difícil para os homens?

J-A Miller: Ah, sim! Mesmo um homem enamorado tem retornos de orgulho, assaltos de agressividade contra o objeto de seu amor, porque esse amor o coloca na posição de incompletude, de dependência. É por isso que pode desejar as mulheres que não ama, a fim de reencontrar a posição viril que coloca em suspensão quando ama. Esse princípio Freud denominou a "degradação da vida amorosa" no homem: a cisão do amor e do desejo sexual.

P.: E nas mulheres?

J-A Miller: É menos habitual. No caso mais freqüente há desdobramento do parceiro masculino. De um lado, está o amante que as faz gozar e que elas desejam, porém, há também o homem do amor, feminizado, funcionalmente castrado. Entretanto, não é a anatomia que comanda: existem as mulheres que adotam uma posição masculina. E cada vez mais. Um homem para o amor, em casa; e homens para o gozo, encontrados na Internet, na rua, no trem...

P.: Por que "cada vez mais"?

J-A Miller: Os estereótipos socioculturais da feminilidade e da virilidade estão em plena mutação. Os homens são convidados a acolher suas emoções, a amar, a se feminizar; as mulheres, elas, conhecem ao contrário um certo “empuxo-ao-homem”: em nome da igualdade jurídica são conduzidas a repetir “eu também”. Ao mesmo tempo, os homossexuais reivindicam os direitos e os símbolos dos héteros, como casamento e filiação. Donde uma grande instabilidade dos papéis, uma fluidez generalizada do teatro do amor, que contrasta com a fixidez de antigamente. O amor se torna “líquido”, constata o sociólogo Zygmunt Bauman (1). Cada um é levado a inventar seu próprio “estilo de vida” e a assumir seu modo de gozar e de amar. Os cenários tradicionais caem em lento desuso. A pressão social para neles se conformar não desapareceu, mas está em baixa.

P.: “O amor é sempre recíproco”, dizia Lacan. Isso ainda é verdade no contexto atual? O que significa?

J-A Miller: Repete-se esta frase sem compreendê-la ou compreendendo-a mal. Ela não quer dizer que é suficiente amar alguém para que ele vos ame. Isso seria absurdo. Quer dizer: “Se eu te amo é que tu és amável. Sou eu que amo, mas tu, tu também estás envolvido, porque há em ti alguma coisa que me faz te amar. É recíproco porque existe um vai-e-vem: o amor que tenho por ti é efeito do retorno da causa do amor que tu és para mim. Portanto, tu não estás aí à toa. Meu amor por ti não é só assunto meu, mas teu também. Meu amor diz alguma coisa de ti que talvez tu mesmo não conheças”. Isso não assegura, de forma alguma, que ao amor de um responderá o amor do outro: isso, quando isso se produz, é sempre da ordem do milagre, não é calculável por antecipação.

P.: Não se encontra seu ‘cada um’, sua ‘cada uma’ por acaso. Por que ele? Por que ela?

J-A Miller: Existe o que Freud chamou de Liebesbedingung, a condição do amor, a causa do desejo. É um traço particular – ou um conjunto de traços – que tem para cada um função determinante na escolha amorosa. Isto escapa totalmente às neurociências, porque é próprio de cada um, tem a ver com sua história singular e íntima. Traços às vezes ínfimos estão em jogo. Freud, por exemplo, assinalou como causa do desejo em um de seus pacientes um brilho de luz no nariz de uma mulher!

P.: É difícil acreditar em um amor fundado nesses elementos sem valor, nessas baboseiras!

J-A Miller: A realidade do inconsciente ultrapassa a ficção. A senhora não tem idéia de tudo o que está fundado, na vida humana, e especialmente no amor, em bagatelas, em cabeças de alfinete, os “divinos detalhes”. É verdade que, sobretudo no macho, se encontram tais causas do desejo, que são como fetiches cuja presença é indispensável para desencadear o processo amoroso. As particularidades miúdas, que relembram o pai, a mãe, o irmão, a irmã, tal personagem da infância, também têm seu papel na escolha amorosa das mulheres. Porém, a forma feminina do amor é, de preferência, mais erotômana que fetichista : elas querem ser amadas, e o interesse, o amor que alguém lhes manifesta, ou que elas supõem no outro, é sempre uma condição sine qua non para desencadear seu amor, ou, pelo menos, seu consentimento. O fenômeno é a base da corte masculina.

P.: O senhor atribui algum papel às fantasias?

J-A Miller: Nas mulheres, quer sejam conscientes ou inconscientes, são mais determinantes para a posição de gozo do que para a escolha amorosa. E é o inverso para os homens. Por exemplo, acontece de uma mulher só conseguir obter o gozo – o orgasmo, digamos – com a condição de se imaginar, durante o próprio ato, sendo batida, violada, ou de ser uma outra mulher, ou ainda de estar ausente, em outro lugar.

P.: E a fantasia masculina?

J-A Miller: Está bem evidente no amor à primeira vista. O exemplo clássico, comentado por Lacan, é, no romance de Goethe (2), a súbita paixão do jovem Werther por Charlotte, no momento em que a vê pela primeira vez, alimentando ao numeroso grupo de crianças que a rodeiam. Há aqui a qualidade maternal da mulher que desencadeia o amor. Outro exemplo, retirado de minha prática, é este: um patrão qüinquagenário recebe candidatas a um posto de secretária. Uma jovem mulher de 20 anos se apresenta; ele lhe declara de imediato seu fogo. Pergunta-se o que o tomou, entra em análise. Lá, descobre o desencadeante: ele havia nela reencontrado os traços que evocavam o que ele próprio era quando tinha 20 anos, quando se apresentou ao seu primeiro emprego. Ele estava, de alguma forma, caído de amores por ele mesmo. Reencontra-se nesses dois exemplos, as duas vertentes distinguidas por Freud: ama-se ou a pessoa que protege, aqui a mãe, ou a uma imagem narcísica de si mesmo.

P.: Tem-se a impressão de que somos marionetes!

J-A Miller: Não, entre tal homem e tal mulher, nada está escrito por antecipação, não há bússola, nem proporção pré-estabelecida. Seu encontro não é programado como o do espermatozóide e do óvulo; nada a ver também com os genes. Os homens e as mulheres falam, vivem num mundo de discurso, e isso é determinante. As modalidades do amor são ultra-sensíveis à cultura ambiente. Cada civilização se distingue pela maneira como estrutura a relação entre os sexos. Ora, acontece que no Ocidente, em nossas sociedades ao mesmo tempo liberais, mercadológicas e jurídicas, o “múltiplo” está passando a destronar o “um”. O modelo ideal do “grande amor de toda a vida” cede, pouco a pouco, terreno para o speed dating, o speed loving e toda floração de cenários amorosos alternativos, sucessivos, inclusive simultâneos.

P.: E o amor no tempo, em sua duração? Na eternidade?

J-A Miller: Dizia Balzac: “Toda paixão que não se acredita eterna é repugnante” (3). Entretanto, pode o laço se manter por toda a vida no registro da paixão? Quanto mais um homem se consagra a uma só mulher, mais ela tende a ter para ele uma significação maternal: quanto mais sublime e intocada, mais amada. São os homossexuais casados que melhor desenvolvem esse culto à mulher: Aragão canta seu amor por Elsa; assim que ela morre, bom dia rapazes! E quando uma mulher se agarra a um só homem, ela o castra. Portanto, o caminho é estreito. O melhor caminho do amor conjugal é a amizade, dizia, de fato, Aristóteles.

P.: O problema é que os homens dizem não compreender o que querem as mulheres; e as mulheres, o que os homens esperam delas...

J-A Miller: Sim. O que faz objeção à solução aristotélica é que o diálogo de um sexo ao outro é impossível, suspirava Lacan. Os amantes estão, de fato, condenados a aprender indefinidamente a língua do outro, tateando, buscando as chaves, sempre revogáveis. O amor é um labirinto de mal entendidos onde a saída não existe.

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(1) Zygmunt Bauman, L’amour liquide, de la fragilité des liens entre les hommes (Hachette Littératures, « Pluriel », 2008)

(2) Les souffrances du jeune Werther de Goethe (LGF, « le livre de poche », 2008).

(3) Honoré de Balzac in La comédie humaine, vol. VI, « Études de mœurs : scènes de la vie parisienne » (Gallimard, 1978).

Tradução de Maria do Carmo Dias Batista.